Botar nas estradas bólidos movidos à combustão não é mais suficiente para as gigantes do setor automotivo. Para muitos especialistas, o setor vive a maior transformação da história - e as soluções no horizonte parecem saídas das telas do cinema: veículos elétricos, sistemas de direção autônoma e carros voadores. Para dar esse cavalo de pau tecnológico, muitas montadoras vêm flertando com o Vale do Silício para absorver rapidamente tecnologia e ganhar capital. Com parcerias e compras improváveis, quem parece estar chegando veloz e furiosa nessa disputa é a sul-coreana Hyundai.
O grande trovão indicando o mundo futurista da Hyundai ocorreu no começo deste ano. O jornal IT Korea publicou que a empresa está para fechar um acordo com a Apple para a fabricação de carros autônomos, que seriam lançados já em 2024 nos EUA. A gigante da tecnologia americana não se pronunciou a respeito, mas a montadora confirmou que as duas foram à mesa de discussões, sem nada decidido. Pelo que indicam os rumores, está sendo desenvolvida uma bateria de “outro nível” para o carro, que usaria as câmeras LiDAR (que medem profundidade de objetos, utilizadas atualmente nos iPhones 12 Pro) para se movimentar pelas ruas. Mais detalhes, no entanto, são escassos.
Antes disso, porém, a empresa já vinha pavimentando o caminho para o futuro. Na edição do ano passado da CES, principal feira de tecnologia dos EUA, a sul-coreana revelou um protótipo de táxi aéreo que serviria para abastecer a frota do Uber, que desde 2016 tenta tirar da gaveta projetos de veículos voadores para circular já na próxima década. Testes de voo não foram realizados e, por enquanto, a iniciativa ainda não decolou -- mas o sonho de voar pelos céus das grandes cidades permanece. A parceria ganhou ainda mais importância depois que a Uber, em dezembro do ano passado, vendeu a Uber Elevate, divisão interna responsável por cuidar do projeto de táxis aéreos, para a startup americana Joby Aviation, especializada em carros de voos verticais com passageiros.
Antes da virada do ano, outro anúncio inusitado: a Hyundai comprou 80% da Boston Dynamics, empresa que faz sucesso na internet com vídeos de seus robôs altamente desenvolvidos, lembrando da série Black Mirror. Mesmo em uma transação que girou US$ 880 milhões (a Boston pertencia ao fundo de investimento Softbank), a empresa nunca conseguiu definir os seu modelo de negócios. Parece ser uma situação diferente da montadora sul-coreana, que imagina ser capaz de usar a tecnologia na automação das fábricas e no desenvolvimento de carros, drones e, claro, robôs.
Parceria
Essas parcerias e compras estratégicas fazem parte de um movimento geral de aquisições, fusões e parcerias da indústria automotiva para ganhar força e investir em pesquisa e inovação, diz Ricardo Bacellar, líder de setor automotivo da KPMG no Brasil.
Outras colaborações do mercado incluem a General Motors e a Microsoft, que planejam lançar veículos autônomos. Além disso, a própria GM é dona de parte das ações da Lyft, maior concorrente do Uber nos Estados Unidos. A montadora chinesa Geely anunciou neste mês parcerias com as conterrâneas Baidu e a Tencent para um carro inteligente e conectado.
Ao contrário das fabricantes de celulares e de outros gadgets, que apresentam grandes saltos em seus produtos em um ou dois anos, as montadoras têm de lidar com ciclos mais longos de inovação por conta das grandes cadeias de produção que envolvem a fabricação de novos carros.
“Antes, as ondas de inovação no setor tinham frequência mais espaçada, mas que vêm se acentuando nos últimos anos”, conta Bacellar. A pressão para anunciar novidades tem feito com que as empresas do Vale do Silício, especialistas em análise de grandes volumes de dados e na criação de interfaces amigáveis, sejam as associações favoritas do ramo automobilístico. “E essas parcerias reduzem o custo da onda de inovação para as montadoras.”
A simbiose entre Vale do Silício e montadoras vai muito além também da necessidade de unir o software e imensos volumes de dados às fábricas de carros de décadas de experiência no currículo. Para as primeiras, representa o futuro e a expansão dos negócios para um novo nicho. Para as últimas, é a sobrevivência num setor em que chegam cada vez mais concorrentes, como as aéreas Embraer, Airbus e Boeing - todas têm projetos de carros voadores.
Hugo Braga, professor e membro do Núcleo de Inovação e Empreendedorismo na Fundação Dom Cabral, explica as vantagens para a Hyundai nos movimentos que tem feito. A Apple pode compartilhar o conhecimento adquirido nas áreas de realidade virtual e realidade aumentada, tecnologias essenciais para se integrar aos sensores dos carros inteligentes. Já o Uber detém os dados de mobilidade urbana de consumidores de todo o mundo, o que pode servir de base para entender como os veículos podem se tornar mais eficientes em quilômetros rodados, por exemplo. A excelência em robótica da Boston Dynamics, por sua vez, será útil na automação das fábricas, essencial para poupar mão de obra e aumentar a eficiência de produção.
“Nesse cenário, a Hyundai entra no mercado com alta adoção de tecnologias e isso faz dela uma empresa mais tecnológica, e menos de produção industrial, como é hoje”, afirma Braga. Por outro lado, a parceria reafirma o valor da companhia no ramo, sem ter de enfrentar a concorrência com desenvolvimentos próprios feitos pela Apple, Google ou Uber.
Questão de percepção
O movimento das parcerias das empresas da indústria automobilística com as de tecnologia também tem outra função: passar uma mensagem positiva ao mercado financeiro.
“A associação da Hyundai com a Apple é extremamente relevante para o mercado financeiro, que vive de percepções”, diz Antônio Jorge Martins, coordenador dos cursos automotivos da Fundação Getúlio Vargas. “No momento em que se joga com a Apple, a empresa dá um passo monumental em dizer que vai sobreviver no futuro.”
A estratégia parece ter funcionado. No dia em que saiu o primeiro rumor da parceria entre Hyundai e Apple, em 7 de janeiro, as ações da montadora deram um salto de 19% no pós-mercado da Bolsa sul-coreana.
Para Raul Colcher, membro do Instituto dos Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE) e sócio e presidente da Questera Consulting, é difícil que o movimento de parcerias entre montadoras e Big Techs seja freado. Mas o choque cultural na maneira de fazer negócios e nos ritmos de desenvolvimento pode impedir que as colaborações saiam tão facilmente. “Todas essas empresas querem abocanhar o máximo que der, mas eles vão ter de cooperar, mesmo com choques de estilo e culturas empresariais diferentes.”
Bacellar, da KPMG, concorda. “O modelo de inovação de erro e acerto dessas empresas de tecnologia é impossível de ser reproduzido na indústria automotiva. O que acontece se der uma tela azul na rodovia?”.