Há quem diga que futebol sem torcida não é futebol. Para a Sportheca, “fábrica de startups” focada em engajamento de fãs de clubes como Flamengo, Corinthians e Grêmio, a máxima não poderia ser mais verdadeira. Criada em 2019, a companhia abriga diferentes empresas de tecnologia focadas em ajudar clubes a entender o engajamento digital de torcedores para transformar a paixão pela camisa em renda para os times.
A OneFan, uma das startup sob o guarda-chuvas da Sportheca, quer transformar a tradição da torcida em um ativo valioso para os cofres dos clubes. E isso inclui o que a startup chama de “torcedor de sofá”: aquele fã que não vai ao estádio ou que mora longe da sede do seu clube, mas que sempre assiste e consome conteúdos do time do coração.
“Temos a tendência de achar que torcedor é só o cara que vai ao estádio. Só que existe todo o resto dos torcedores que não vão ver os jogos ao vivo, ou que estão em outras regiões. Isso tem um potencial gigantesco de engajamento e monetização que era subexplorado”, explica Eduardo Tega, CEO da Sportheca, ao Estadão.
A empresa se propõe a desenvolver o engajamento do fã e oferecer a entidades esportivas um sistema operacional em que elas podem trabalhar com os dados dos torcedores. Isso é feito por um app que concentra todas as experiências do fã com o clube que, muitas vezes, ficavam esparsas com o time — compra de ingressos, de camisas e produtos do time, site de notícias, canais no YouTube e pay-per-view.
Uma das ideias é oferecer um benefício em que o fã troca sua “atenção” por pontos, consumindo conteúdos gerados pelos times e por parceiros. A cada determinado tempo, o torcedor pode ganhar uma moedinha virtual no app, que pode ser acumulada e trocada por produtos ou experiências. De acordo com a empresa, essa é uma das estratégias que permite que o clube conheça mais sobre esse torcedor, sendo possível desenvolver estratégias comerciais mais assertivas.
Atualmente, a OneFan atende Corinthians, Flamengo, São Paulo, Coritiba, Fortaleza e Grêmio, além do Comitê Olímpico Brasileiro. Fora do Brasil, a empresa é responsável pelo serviço no Osasuna, time da primeira divisão de futebol espanhola (La Liga), na Federação Romena de Futebol e na Seleção de Rugby dos EUA.
Posicionada no mercado
Segundo um mapa fabricado pela Liga Ventures, existem mais de 160 startups de esportes espalhadas por cerca de 50 cidades em todo o Brasil. Destas, a maior parte se concentra na área de gestão de jogos, torneios e eventos - Sportheca procura ocupar esse nicho com a startup OneMatch.
Embora sportechs (startups voltadas para o universo esportivo) sejam mais recentes do que as fintechs, elas vem ganhando atenção dos clubes ao propor outras maneiras de gerar receitas e engajamento dos torcedores. “As sportechs ainda estão no estágio anterior de maturidade, mas não quer dizer que o mercado não esteja vivendo um momento de expansão”, afirma Ivan Martinho, professor de Marketing Esportivo da ESPM. “O mercado esportivo está cada vez mais aprendendo a abrir espaço para essas iniciativas tecnológicas, entendendo que as startups vieram para ficar e que é um ciclo de desenvolvimento”.
No Corinthians, por exemplo, esse trabalho já está sendo feito. Um software está sendo usado pelo clube para gerenciar desde a plataforma de sócio torcedor, o Fiel Torcedor, até o app do time. Com isso, cada torcedor que utiliza o recurso recebe um código da OneFan para usar em plataformas que ofereçam serviços relacionados ao time.
“Do ponto de vista de tecnologia e inovação, é uma indústria que tem muito para crescer, é um mar de oportunidades. E diferentemente de outros negócios, (esse crescimento) ser no Brasil é excelente. O mercado europeu escuta e analisa muito o que é feito por aqui em relação a isso”, afirma Tega. “Quando você tem uma tecnologia que resolve alguma questão de um time do tamanho do Flamengo, por exemplo, isso se transforma em uma enorme credencial para conversar com clubes da Europa”.
É um movimento incomum para as startups brasileiras, que, normalmente, enfrentam grandes obstáculos para internacionalização.
Profissionalizar para faturar
Para Francisco Clemente, líder de Mídia e Esportes da KPMG no Brasil, a profissionalização na gestão dos clubes tem oferecido um terreno fértil para a inovação, o que contribuiu para aumentar o protagonismo das sportechs. “As startups têm a capacidade de transformar fãs em dinheiro e em recursos para o clube. Os recursos são investidos em jogadores ou na infraestrutura, que por sua vez engajam mais fãs, e você entra num ciclo virtuoso”, observa o especialista. “O que elas buscam é isso: como transformar essa paixão em resultado”.
Isso é um passo importante em uma indústria que, em geral, ainda opera em moldes mais tradicionais - em alguns casos, longe do profissionalismo. “No cenário de grandes entidades esportivas, federações, confederações, elas são geridas de uma forma um pouco mais à moda antiga, vamos dizer assim, na grande maioria das vezes”, analisa Martinho, da ESPM. O professor acredita que nesse movimento de transformação as sportechs vão promover uma aculturação. “Elas vão comprovando o seu valor e mostrando para entidades uma mentalidade mais jovem, que não tem a ver com a idade, mas com mentalidade”, complementa.
O movimento deve impactar diretamente no faturamento dos clubes brasileiros, que pode crescer exponencialmente caso consigam atingir toda a base de torcedores, incluindo aqueles que não podem ir aos estádios, por exemplo. As torcidas de alguns times são estimadas em milhões de pessoas – mas o clube nem sempre tem uma maneira direta de se conectar a elas. “Hoje os principais clubes no Brasil tem faturamento de mais de R$ 10 bilhões, esse número pode dobrar ou triplicar, e quem vai ajudar nisso são as startups”, defende Clemente.
Para os torcedores, é uma oportunidade de interagir mais com o clube além dos jogos no estádio. Os que não vivem na mesma cidade do time para o qual torcem podem ter outras maneiras de expressar a paixão pelo clube. “Os torcedores estão ávidos por isso. Eles querem se relacionar mais, querem buscar essa interação, estão dispostos a consumir mais”, pontua Clemente.
Ao mesmo tempo em que há espaço para desenvolvimento das startups, os diálogos com clubes e grandes entidades precisam estar em um estágio avançado, o que representa um desafio no setor, avaliam os especialistas. “Hoje em dia os investidores estão olhando com mais cuidado para empresas que já conseguem atingir o break-even, que é o equilíbrio operacional entre custos, despesas e receitas. Isso cria uma dificuldade grande”, reflete Martinho.
Acompanhando essas grandes empresas de perto, Clemente concorda: “A conversa precisa ser de alto nível, precisa ter um business case robusto, muitas vezes precisa ter tecnologia e infraestrutura pesada por trás”.