Vinte minutos depois de as autoridades invadirem o escritório do Uber em Amsterdã, em abril de 2015, a tela do computador de Ligea Wells ficou misteriosamente em branco. A assistente executiva escreveu uma mensagem para o chefe avisando sobre mais um dos acontecimentos estranhos naquele dia já movimentado.
“Olá!”, digitou ela em mensagem que faz parte de uma coleção valiosa de mais de 124 mil registros do Uber não revelados antes. “Meu laptop desligou depois de se comportar de modo esquisito.”
Mas o comportamento do computador dela não era nenhum mistério para alguns de seus superiores.
O então CEO do Uber, Travis Kalanick, tinha ordenado que o sistema de computadores em Amsterdã fosse desconectado da rede interna da empresa, tornando os dados inacessíveis às autoridades enquanto fiscalizavam a sede europeia, mostram documentos.
“Acione o botão de emergência o mais rápido possível, por favor”, pediu Kalanick por e-mail, ordenando que se desconectassem os laptops do escritório e outros dispositivos.
O Uber ter lançado mão do que pessoas do setor chamam de “kill switch” foi um exemplo claro de como a empresa empregava ferramentas tecnológicas para impedir que autoridades investigassem as práticas de negócios da empresa, enquanto ela prejudicava a indústria global de táxis, de acordo com os documentos.
Durante aquele período, como a avaliação de mercado do Uber ultrapassava os US$ 50 bilhões, inspeções do governo ocorriam com tanta frequência que a empresa distribuiu um manual para que os funcionários soubessem o que fazer quando acontecessem. O guia tinha 66 passos a serem seguidos, incluindo “levar as autoridades para uma sala de reuniões sem qualquer arquivo” e “nunca deixá-las sozinhas”.
Esse manual, assim como as trocas de mensagens de texto e e-mails relacionados àquela fiscalização em Amsterdã, fazem parte do “Uber Files”, um tesouro de 18,7 gigabytes de dados obtidos pelo jornal britânico Guardian e compartilhados com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, um grupo de veículos de imprensa sem fins lucrativos que ajudou a liderar o projeto. Os arquivos, que abrangem o período de 2013 a 2017, incluem 83 mil e-mails, apresentações e mensagens.
Os documentos revelam que o Uber desenvolveu vastos sistemas para confundir investigações oficiais, indo bem além do que se sabe em relação aos esforços para enganar autoridades. Em vez de apenas desenvolver um software para conectar motoristas e clientes que queriam se deslocar, a Uber se aproveitou de habilidades tecnológicas em muitos casos para ter uma vantagem secreta sobre as autoridades.
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Por meio de respostas enviadas por escrito, o Uber reconheceu que a empresa deu passos em falso durante o intervalo de tempo a que os arquivos se referem, uma época na qual Kalanick, destituído do cargo pelo conselho em 2017, liderava a empresa.
“Não temos e não vamos dar desculpas por comportamentos do passado que claramente não estão em sintonia com nossos valores atuais”, disse a vice-presidente sênior da empresa, Jill Hazelbaker. “No lugar delas, pedimos ao público que nos julgue pelo que fizemos nos últimos cinco anos e pelo que faremos nos próximos.”
O uso do ‘kill switch’
O Uber discutiu ou invocou o “kill switch” mais de uma dezena de vezes em pelo menos seis países ao longo de um período de dois anos, de acordo com os novos documentos e reportagens em relação à ferramenta. Eles mostram que o Departamento Jurídico do Uber nos EUA estava ciente do uso do “kill switch”.
No período abrangido pelo Uber Files, a empresa estava sob expansão agressiva em países como Espanha, França, Holanda e Bélgica, muitos dos quais proibiam o transporte pago em veículos particulares.
As autoridades reguladoras entraram em ação para interromper as atividades, realizando inúmeras fiscalizações, em esforço para provar que o Uber desrespeitava a lei.
Jill Hazelbaker, vice-presidente sênior do Uber
No entanto, dentro dos escritórios do Uber, agentes da lei ficavam surpresos ao descobrir que computadores paravam de funcionar. Essa foi a experiência de um indivíduo presente em uma fiscalização em Paris, no dia 16 de março de 2015, que falou sob condição de anonimato.
Naquele mesmo mês, em Amsterdã, sede europeia da empresa, os executivos do Uber estavam preocupados com medidas drásticas iminentes e uma provável fiscalização pelas autoridades de transporte para coletar provas, mostram os documentos.
O Uber estava se preparando e fazendo coisas como levar documentos para outros locais e reunir uma lista de funcionários do escritório “para garantir que a estratégia do botão de emergência atingisse a todos”, de acordo com um e-mail da época de Zac De Kievit, executivo jurídico europeu.
O Uber também estava finalizando seu manual com os passos a serem seguidos no caso de uma fiscalização, compartilhado por e-mail com funcionários na Europa. O guia formalizava muitas das estratégias que seriam adotadas contra fiscalizações das autoridades, revelam os documentos.
Visitas inesperadas
Em várias ocasiões, incluindo duas vezes em Montreal em maio de 2015, autoridades entraram nos escritórios do Uber e encontraram dispositivos como laptops e tablets sendo reiniciados ao mesmo tempo, mostraram os documentos.
O botão de emergência ajudou a impedir a ação das autoridades ao desconectar os dispositivos do sistema interno do Uber. Apesar de ter sido usado intencionalmente, o “kill switch” foi controlado de forma centralizada pelo departamento de TI do Uber em São Francisco e por meio de outro lugar na Dinamarca, para proteger os trabalhadores locais que poderiam ser acusados de obstrução de justiça ou obrigados a desativá-lo, disseram dois ex-funcionários. De acordo com os documentos, o Uber usou a estratégia para cortar o acesso a dispositivos que poderiam ter sido apreendidos durante as fiscalizações, às vezes ao mesmo tempo em que autoridades procuravam por provas nos escritórios da empresa.
Alguns funcionários se envolveram em táticas para ganhar tempo e permitir que o “kill switch” pudesse ser acionado antes de a polícia colocar as mãos nos dispositivos, pedindo, entre outras estratégias, que a polícia ou as autoridades fiscais esperassem juntas em uma sala sem computadores até que os advogados do escritório local chegassem.
O Uber nunca foi acusado criminalmente de obstrução da justiça, e a empresa disse que desligou as máquinas basicamente para que os investigadores não vissem mais do que estavam autorizados. Quando eles solicitavam documentos específicos depois, a empresa costumava fornecê-los, disseram ex-funcionários.
Especialistas jurídicos europeus disseram que o uso de uma ferramenta como o “kill switch” é legal apenas antes de um órgão do governo ter a papelada que lhes permite procurar por documentos específicos. Depois disso, cortar o acesso pode violar as leis nacionais, afirmaram.
“Se uma fiscalização por parte de um supervisor ou de investigador da economia já começou, e ficou claro que cópias de registros estão sendo solicitadas, uma empresa não pode mais intervir tornando-as inacessíveis”, disse Brendan Newitt, do escritório De Roos & Pen, na Holanda. “O mesmo se aplica se os investigadores já tiverem iniciado, por exemplo, uma pesquisa em um computador ou na rede para conseguir os registros.”
Na França, um promotor envolvido na investigação inicial poderia acrescentar outras acusações com base no uso de um “kill switch”, “se descobrir que ele não foi acionado de modo automatizado, que houve uma ação humana para a desconexão e que há o desejo de obstruir a justiça”, disse Sophie Sontag Koenig, professora da Universidade Paris Nanterre e especialista em tecnologia.
Jill, da Uber, disse que “a empresa não tem um ‘kill switch’ projetado para impedir investigações das autoridades reguladoras em nenhum lugar do mundo” e que não faz uso de um botão de emergência desde que o substituto de Kalanick, Dara Khosrowshahi, tornou-se CEO em 2017.
Embora o software que isola dispositivos remotamente seja comum para que as empresas possam recorrer a ele no caso de laptops perdidos ou roubados, o Uber disse que “tal software nunca deveria ter sido usado para impedir ações regulatórias legítimas”.
Um porta-voz de Kalanick disse que ele “nunca autorizou quaisquer ações ou programas que obstruíssem a justiça em qualquer país” e classificou como “completamente infundada” qualquer alegação de que “orientou, participou ou esteve envolvido” em qualquer atividade de obstrução de justiça. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA