Se pudesse, Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, deletaria o dia 17 de março de 2018. Foi naquele sábado que uma reportagem conjunta dos jornais The Observer e The New York Times jogou luzes sobre a consultoria política Cambridge Analytica, que usou indevidamente dados de 87 milhões de usuários da rede social para campanhas como a de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016. O escândalo abriu portas para o Facebook sangrar na pior crise de sua existência, mas parece não ter sido suficiente para transformar a empresa até aqui.
Para analistas ouvidos pelo Estado, pouco importa o plano anunciado recentemente por Zuckerberg, dizendo que o futuro da empresa está em mensagens criptografadas. Segundo eles, a empresa segue adiante sem resolver os problemas escancarados pelo caso Cambridge Analytica. São vários: de exploração comercial de informações pessoais à quebra de privacidade, passando por influência políticas, notícias falsas e barreiras de seguranças frágeis.
Não foi só uma crise de imagem própria: o Facebook pôs todo o setor tecnológico em xeque. “O caso afetou a forma como as pessoas enxergam o funcionamento das redes sociais”, diz Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Procurado pelo Estado, o Facebook não esteve disponível para responder ao pedido de entrevista.
Aprendizado. Após o escândalo, instalou-se uma lupa de reguladores e críticos sobre as gigantes de tecnologia. Temendo ser “asfixiada” pela regulação, a empresa tomou medidas para transmitir a imagem de que aprendeu a lição. Mudou políticas de privacidade, simplificou configurações e tentou implementar uma mistura de inteligência artificial com aumento na equipe de moderadores humanos para aumentar a segurança na plataforma.
Com a preocupação, aumentou gastos e reduziu suas projeções de ganhos. Ao fazê-lo, porém, perdeu 20% de seu valor de mercado, na maior queda diária da história de Wall Street. O que assustou os investidores não era o uso de dados dos usuários, mas a perspectiva pessimista de crescimento. Em janeiro, porém, ao anunciar projeções otimistas, o sinal se inverteu: as ações chegaram a subir 10,8% em um só dia.
Se na matemática o resultado pode não ser o mesmo, no aspecto moral o último ano do Facebook parece um jogo de soma-zero. “Não vi nenhuma mudança genuína”, diz David Kirkpatrick, autor do livro O Efeito Facebook. Para Bart Willemsen, diretor da consultoria Gartner, a explicação é simples: “a única coisa que pode mudar a posição do Facebook e prevenir episódios como os do passado é modificar o modelo de negócios”, diz. “Hoje há um conflito: quando há impacto positivo para anunciantes, há prejuízo para a privacidade dos usuários – e vice-versa.”
Desvio de rota.
Há duas semanas, algo parece ter mudado o rumo do Facebook: a carta, em tom de manifesto, na qual Zuckerberg delineia que o futuro do Facebook está em mensagens criptografadas, integrando o WhatsApp, o Instagram e o Facebook Messenger em um só sistema. Supostamente, haverá mais privacidade para os usuários, mas, para os especialistas, é “um plano para inglês ver.”
“É um tipo diferente de privacidade”, diz Kirkpatrick. “A privacidade que preocupa as pessoas é que seus dados não serão protegidos, não a das mensagens”. Na visão dele, oferecer mensagens criptografadas não muda o fato de que dados estão sendo coletados – e especialistas desconfiam até do grau de privacidade que o serviço pode oferecer no futuro.
Isso porque, ao serem criptografadas, as mensagens têm seu conteúdo intacto. Porém, seguem gerando informações úteis – os chamados metadados, que identificam os usuários, onde estão e até o horário da troca de mensagens. São dados que o WhatsApp pode ceder a investigações policiais – para Willemsen, do Gartner, também podem ser oferecidas a anunciantes.
Em uma superplataforma de mensagens, não é difícil imaginar que um usuário passe a receber anúncios de sofás em seu celular após trocar mensagens com o perfil de uma loja de móveis no Instagram – mesmo que a rede não saiba o que foi conversado. “A privacidade não diz respeito só ao conteúdo da mensagem, mas sobre qualquer informação dos indivíduos. É complexo”, diz o analista do Gartner.
Entenda o escândalo do uso de dados do Facebook pela Cambridge Analytica
Seja como for, é um caminho polêmico e que gerou baixas: no último ano, a empresa viu as saídas de Jan Koum, fundador do WhatsApp, e de Kevin Systrom e Mike Krieger, do Instagram. Na última semana, foi a vez do diretor de produto Chris Cox e do líder do WhatsApp, Chris Daniels. Todos desistiram por discordar do chefe sobre o rumo da plataforma. Mais do que saídas, o êxodo mostra que o Facebook segue construído à imagem e semelhança do pensamento de Zuckerberg.
Esconder o conteúdo das mensagens também pode ser benéfico para a rede fugir da regulação – um debate que se intensifica nos EUA e na Europa. “Governos não conseguem olhar para o que acontece dentro de um sistema criptografado”, diz Kirkpatrick. Outro problema nesse aspecto é o fato de que a empresa “lavaria suas mãos” para o conteúdo veiculado em seus apps, sem sofrer críticas por influência política em eleições ou disseminação de notícias falsas, como ocorreu em larga escala no WhatsApp durante as eleições de 2018.
Assim, o Facebook se prepara para o futuro, mas sem abandonar os monstros no armário que o levaram adiante: o uso de dados e certo descontrole sobre o que se passa em sua plataforma. Pode dar certo novamente. Mas se dar errado, o barulho da crise não vai parar de reverberar.