Analisar a situação financeira da Apple neste início de 2016 pode ser um exercício digno de um conto de fada. Em seu balanço referente ao quarto trimestre de 2015, a empresa teve lucro de US$ 18,4 bilhões, um dos maiores da história, e nunca vendeu tantos iPhones em apenas três meses: foram nada menos que 74,4 milhões de smartphones, resultado que empolga até mesmo quem já está acostumado a esperar grandes números da empresa de Cupertino, na Califórnia. Para enxergar a real situação da empresa, porém, é preciso ir um pouco além.
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O mesmo balanço financeiro da Apple mostra que 68% de suas receitas, atualmente, são geradas pelo iPhone. Isso não seria um problema, não fosse a desaceleração na demanda: as vendas do smartphone cresceram menos de 1% em relação ao mesmo período de 2014, o que gerou certo desconforto entre os investidores. Dependendo do ponto de vista, a Maçã pode parecer vermelha e tenra como a da Branca de Neve – ou envenenada como a da madrasta. “Você pode olhar para um lado ou outro da Apple – e os dois estarão certos”, diz o diretor de pesquisas da consultoria Gartner, Brian Blau.
Lançado em 2007, no momento em que o tocador de músicas iPod e a linha de computadores Mac eram os produtos mais vendidos da Apple , o iPhone se tornou, ao longo dos últimos anos, o principal dispositivo vendido pela empresa fundada por Steve Jobs e Steve Wozniak. Afinal, nada menos que quase 7 em cada 10 dólares faturados pela empresa são com vendas do iPhone. No entanto, hoje ele parece sofrer de algo que diz respeito a todo o mercado de smartphones.
Antes cheios de novidades, como câmeras melhoradas, conexão 4G ou maior capacidade de armazenamento, os smartphones têm recebido novas versões que trazem inovações cada vez mais marginais ou com utilização ainda incipiente para os usuários. É o caso, por exemplo, da tecnologia de reconhecimento de impressão digital, introduzida no iPhone 5S (de 2013), que terá peso enorme na segurança quando os pagamentos móveis se popularizarem.
“Nós nos acostumamos a ver uma inovação muito grande nos smartphones nos últimos anos. Agora, ele vai ter evoluções e continuará no mercado, mas o aparelho não deve mudar muito da forma como já existe hoje”, explica o pesquisador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), Renato Franzin. Para ele, o descolamento entre ritmo da inovação e o do mercado fez a Apple criar novos produtos somente para atender às necessidades do varejo. “Quando você olha para um modelo S da Apple, como o 6S, ele não traz inovações que tornem seu antecessor obsoleto. Mas, como o usuário se acostumou a trocar de aparelho todo ano e muitas vezes a operadora o força a isso, esses modelos continuam vendendo bem.”
A manobra, no entanto, tem irritado usuários que eram fiéis à marca. “No começo, eu trocava de iPhone todos os anos e depois comecei a alternar os anos. Os modelos S não acrescentam muito e o preço aumentou consideravelmente nos últimos meses”, diz o engenheiro químico Felipe Petniúnas, de Niterói, no Rio de Janeiro. Ele é dono de um iPhone 6. Por essas e outras, não faltam exemplos de quem trocou o iPhone por um aparelho com sistema operacional Android, do Google.
Principal fabricante a apostar no Android, a Samsung se tornou uma rival à altura da Apple – chegando a ultrapassá-la em muitos mercados no segmento premium. Segundo uma fonte do varejo que preferiu não se identificar, “há tempos a Apple não é a marca mais vendida em nossas lojas. Pelo menos há dois anos a Samsung passou disparado, investindo em ponto de vendas e melhorando a qualidade dos seus aparelhos, além de ter mais variedade de modelos”.
Atrasado. Outro motivo que tem feito investidores se preocuparem com os próximos momentos da Apple é a ausência, dentro da linha de produtos da empresa, de um produto com potencial para substituir o iPhone como principal produto da empresa nos próximos anos.
Lançado em abril de 2015, o Apple Watch teve vendas razoáveis em seus primeiros meses – segundo a Apple, mais de 7 milhões de unidades vendidas desde o lançamento. O produto, porém, ficou abaixo da expectativa dos analistas: pouco antes de chegar ao mercado, a previsão é de que mais de 34 milhões de relógios seriam vendidos no primeiro ano. Em seu último balanço, a Apple não informou quantas unidades foram comercializadas – um indício, para especialistas, de que o negócio não vai bem. Nos EUA, o Apple Watch é vendido a partir de US$ 349; aqui no Brasil, o modelo mais básico do relógio é vendido a R$ 2,9 mil. Mas não é só o preço alto que atrapalha o desempenho do produto.
Ao contrário do que aconteceu com o iPhone, que uniu diversos dispositivos (celular, tocador de mp3, câmera fotográfica) em um só aparelho, o Apple Watch é um dispositivo dependente do celular. “Quem queria que o relógio substituísse o telefone está decepcionado. Quem queria funcionalidades novas além do smartphone também não ganhou em nada com o Apple Watch. O relógio ainda depende muito do smartphone para funcionar e, na melhor das hipóteses, é só um atalho para uma função do celular”, diz Franzin.
Com medo de que o mercado de smartphones pare de crescer, o varejo espera que a empresa traga inovações no futuro. “O varejo precisa que a indústria acorde. A gente pode sacrificar margens de lucro e se virar nos 30, mas se a indústria não fizer lançamentos surpreendentes, ficamos de mãos atadas”, disse uma fonte do mercado.
Para Brian Blau, da Gartner, é cedo para condenar o relógio inteligente da Apple ao posto de “brinquedinho caro”. “A Apple melhora significativamente seus dispositivos com o tempo. O primeiro iPhone não era um dispositivo tão transformador na época que foi lançado. O Watch já é um líder na categoria de relógios inteligentes. Daqui a cinco anos, imagino que vamos fazer piada sobre esse primeiro modelo e suas funções.”
Primeira nova categoria de dispositivos da empresa lançado sob o comando de Tim Cook, o insucesso – até aqui – do Apple Watch faz muitos questionarem se a ausência de Steve Jobs faz falta à Apple. “A Apple sempre vai sentir falta de Steve Jobs”, diz Franzin. “No entanto, dizer que a morte dele afetou a inovação é subestimar todos os engenheiros e desenvolvedores da Apple que trabalham lá há anos.”
Sem pessimismo. Apesar da dependência do iPhone e da ausência de um substituto à altura parece ser muito cedo prever um futuro sombrio para a Apple. “Ela vive de ciclos de inovação e parece que estamos no momento entre um ciclo e outro”, diz o consultor da Gartner. “Além disso, a visão pessimista vem dos investidores, que em geral não pensam além do lucro a curto prazo. Se a empresa não continua crescendo, eles já acham que é o fim do mundo.”
É preciso levar em consideração, ainda, que uma empresa capaz de lucrar US$ 18 bilhões em apenas três meses é altamente sólida e que o iPhone segue sendo um grande produto de consumo. Enquanto uma grande inovação em hardware não aparece, a empresa também tem investido em serviços: alguns dos principais lançamentos da empresa nos últimos tempos incluem o aplicativo Apple News e o serviço de streaming de música Apple Music, que já tem 15 milhões de usuários, sendo 6,5 milhões assinantes.
No último balanço, os serviços representaram 8% da receita apenas, mas registraram crescimento de 28% em relação ao quarto trimestre de 2014. “É algo que veremos a Apple expandir ainda mais nos próximos anos. Ela sabe que precisa criar produtos interessantes para reter seus clientes”, diz Blau. Ele também aposta no potencial da Apple no setor de realidade virtual. Nas últimas semanas, cresceram os rumores de que a companhia norte-americana contratou uma nova equipe para investir no desenvolvimento de óculos e aplicativos para realidade virtual. “É uma nova fronteira que a Apple deve explorar cada vez mais”, diz o consultor.