No final de 2008, enquanto o Google estava sob avaliação de órgãos antitruste sobre um acordo de publicidade com o seu rival Yahoo e enfrentava processos judiciais envolvendo reivindicações de patentes, marcas registradas e direitos de autor, os seus executivos enviaram um memorando confidencial.
“Acreditamos que a informação é boa”, disseram os executivos aos funcionários no memorando. Mas, acrescentaram, os reguladores governamentais ou os concorrentes podem aproveitar as palavras que os funcionários do Google escrevem de forma casual e impensadamente entre si.
Para minimizar as chances de que um processo judicial revelasse comentários potencialmente incriminatórios, o Google orientou seus funcionários a evitar especulações e sarcasmos e a “pensar duas vezes” antes de se comunicarem sobre “temas sensíveis”. “Não comentem antes de terem todos os fatos”, instruíram os executivos da companhia.
A tecnologia também foi ajustada. A configuração da ferramenta de mensagens instantâneas da empresa foi alterada para “off the record” (confidencial, para não ser divulgado). Uma frase imprudente seria apagada no dia seguinte.
O memorando marcou o início de uma campanha de 15 anos do Google para transformar a exclusão na configuração padrão em suas comunicações internas. Enquanto armazenava as informações do mundo, o gigante da internet cultivava uma cultura corporativa que buscava minimizar a geração e retenção de seus próprios registros.
Entre as práticas adotadas estavam o uso de sigilo legal como escudo universal, a imposição de restrições à sua própria tecnologia e alertas constantes de que descuidos poderiam prejudicar até mesmo as empresas mais bem-sucedidas.
A forma como o Google desenvolveu essa cultura de desconfiança foi detalhada a partir de centenas de documentos, exposições de provas e depoimentos de testemunhas em três julgamentos antitruste contra a empresa do Vale do Silício ao longo do último ano. Os autores das ações — a Epic Games em um caso, e o Departamento de Justiça nos outros dois — buscavam provar comportamento monopolista, o que exigiu uma análise minuciosa de e-mails, memorandos e mensagens instantâneas de centenas de engenheiros e executivos do Google.
Os documentos e depoimentos revelaram que o Google tomou diversas medidas para restringir as comunicações internas. A empresa incentivava os funcionários a incluir restrições em documentos e sempre adicionar um advogado do Google na lista de destinatários, mesmo quando não havia questões legais envolvidas e o advogado nunca respondia.
Empresas que antecipam litígios são obrigadas a preservar documentos. No entanto, o Google isentou as mensagens instantâneas de retenção legal automática. Caso funcionários estivessem envolvidos em um processo judicial, cabia a eles ativar manualmente o histórico de bate-papo. De acordo com as evidências apresentadas nos julgamentos, poucos o faziam.
O Google está longe de ser a única empresa que tenta manter formas mais recentes de comunicação fora dos tribunais. Com o crescimento do uso de mensagens instantâneas e de texto como ferramentas no ambiente corporativo, as empresas e os reguladores têm se confrontado cada vez mais sobre como essas comunicações podem ser usadas como prova judicial.
Há uma geração, uma conversa casual ou uma ligação telefônica poderiam ser comprometedoras, mas as palavras se dissipavam no ar. Alguém poderia lembrar das palavras, mas sempre seria possível negá-las. Talvez, os ouvintes tenham entendido errado ou interpretado mal.
As empresas gostariam que as mensagens instantâneas fossem tão efêmeras quanto uma conversa presencial. Um comentário feito por mensagem de texto a um subordinado sobre as implicações de uma fusão é apenas conversa, argumentam eles. No entanto, para reguladores e litigantes, essas mensagens são um alvo legítimo.
Em agosto, a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês), que está processando para barrar uma fusão de US$ 25 bilhões entre as redes de supermercados Albertsons e Kroger, afirmou que vários executivos da Albertsons demonstraram “uma prática generalizada” de apagar mensagens de texto relacionadas aos negócios, violando exigências legais de preservação.
Segundo a FTC, algumas dessas mensagens sugeriam que pelo menos um executivo acreditava que os preços poderiam aumentar como resultado da fusão. O juiz concluiu que a Albertsons “não tomou medidas razoáveis” para preservar as mensagens, mas não aplicou sanções à rede. A Albertsons não quis comentar.
Já em abril, a FTC alegou em um processo antitruste contra a Amazon que executivos da empresa usaram a ferramenta de mensagens de desaparecimento Signal para discutir questões relacionadas à concorrência, mesmo após serem obrigados a preservar todas as comunicações do caso. A Amazon rebateu, afirmando que as acusações de destruição de informações eram “infundadas e irresponsáveis”.
O Google tem enfrentado as críticas mais amplas por suas ações, com juízes dos três casos antitruste repreendendo a empresa por suas práticas de comunicação.
O juiz James Donato, do Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Norte da Califórnia, que presidiu o caso da Epic Games, afirmou que havia “uma cultura sistêmica enraizada de supressão de evidências relevantes dentro do Google”. Ele acrescentou que, após o julgamento, pretendia descobrir quem era responsável, dentro do Google, por permitir esse comportamento. O juiz Donato não quis comentar.
A juíza Leonie Brinkema, do Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Leste da Virgínia, que supervisiona o caso antitruste do Google envolvendo tecnologia de publicidade, disse em uma audiência em agosto que as políticas de retenção de documentos da empresa “não são condizentes com o funcionamento de uma entidade corporativa responsável.” Ela ainda declarou: “É provável que uma enorme quantidade de evidências tenha sido destruída.”
O Departamento de Justiça pediu à juíza Brinkema que aplique sanções, o que implicaria uma presunção de que o material desaparecido seria desfavorável ao Google nas questões em julgamento, incluindo o poder monopolista e se seu comportamento foi anticoncorrencial. As alegações finais no caso estão previstas para segunda-feira, 25.
Em um comunicado, o Google afirmou que leva “muito a sério nossas obrigações de preservar e produzir documentos relevantes. Há anos respondemos a investigações e litígios e educamos nossos funcionários sobre o privilégio legal.” A empresa disse ter fornecido “milhões de documentos” apenas nos casos do Departamento de Justiça.
“O Google tinha uma política corporativa de cima para baixo de ‘não salve nada que possa nos fazer parecer mal’”, disse Agnieszka McPeak, professora da Faculdade de Direito da Universidade Gonzaga, que escreveu sobre destruição de evidências. “E isso faz o Google parecer mal. Se eles não têm nada a esconder, as pessoas pensam: por que estão agindo como se tivessem?”
A longa sombra da Microsoft
O Google foi fundado em setembro de 1998, alguns meses depois que a Microsoft, a empresa de tecnologia mais dominante da época, foi processada pelo Departamento de Justiça por violações antitruste. Para provar que a Microsoft estava monopolizando ilegalmente o mercado de navegadores, o departamento não precisou procurar muito para encontrar memorandos comprometedores.
“Precisamos continuar nossa jihad no próximo ano”, escreveu um vice-presidente da empresa ao CEO da Microsoft, Bill Gates, em um dos memorandos. Em outro, um executivo, tentando convencer a Apple a eliminar um recurso, disse: “Queremos que você esfaqueie o bebê”.
A Microsoft perdeu o caso, embora a sentença tenha sido parcialmente revertida em apelação. Ainda assim, foi uma experiência quase fatal para fazer a próxima geração de empresas de tecnologia, incluindo o Google, a desconfiar tanto de documentos quanto de comentários impensados.
O problema era que a tecnologia tornou muito fácil produzir e preservar uma abundância de ambos. O Google produziu 13 vezes mais e-mails por funcionário do que a média das empresas antes de completar uma década de existência, testemunhou Kent Walker, principal advogado da empresa, no julgamento da Epic. O Google se sentia sobrecarregado, disse ele, e estava claro para a empresa que as coisas só piorariam se mudanças não fossem feitas.
O memorando de 2008, que determinava que as mensagens de chat seriam automaticamente apagadas, foi assinado por Walker e Bill Coughran, um executivo de engenharia. Eles observaram que o Google tinha “uma cultura de e-mail e mensagens instantâneas”. Suas ferramentas de mensagens instantâneas, inicialmente chamadas Talk, depois Hangouts e, mais tarde, Chat, foram rapidamente adotadas pelos funcionários.
O Chat era onde os engenheiros podiam se expressar de forma mais livre, mas com segurança. Como um funcionário do Google escreveu em uma conversa que foi exibida no tribunal, a necessidade de ser cauteloso “resulta em uma comunicação escrita menos interessante, às vezes até menos útil. Mas é por isso que temos chats off-the-record”.
O Google, como muitas empresas, lida com tantos processos judiciais que alguns funcionários estão sujeitos a vários litígios ao mesmo tempo. Alguns podem estar em litígio durante toda a sua carreira.
Lauren Moskowitz, advogada da Epic, perguntou para Walker, durante seu depoimento, como funcionava, na prática, deixar os funcionários no controle do processo.
“Você esperava que seus funcionários, centenas, milhares de funcionários parassem o que estavam fazendo para cada mensagem instantânea que enviavam ou recebiam todos os dias e revisassem uma lista de tópicos em alguma retenção legal para decidir se deveriam tomar uma ação para alterar a configuração padrão no Chat antes de realizar o restante de seus negócios?”, disse Moskowitz.
Walker respondeu que a política havia sido “razoável na época.”
À medida que o Google crescia, seu vocabulário se tornava mais restrito. Em um memorando de 2011 intitulado “Noções básicas de antitruste para a equipe de pesquisa”, a empresa recomendou evitar “metáforas envolvendo guerras ou esportes, ganhar ou perder” e rejeitar referências a “mercados”, “participação de mercado” ou “domínio”
Em um tutorial subsequente para novos funcionários, o Google disse que até mesmo uma frase tão inofensiva quanto “colocar produtos nas mãos de novos clientes” deveria ser evitada, pois “pode ser interpretada como uma intenção de negar aos consumidores a escolha.”
Se usar as palavras certas e apagar mensagens não mantiveram o Google fora do tribunal, a empresa concluiu que invocar os advogados faria isso.
No caso Epic, a parte autora alegou que as muitas evocações de privilégio por parte do Google eram apenas para mostrar com o intuito de manter os documentos fora do tribunal. Sundar Pichai, CEO do Google, escreveu em um e-mail de 2018 para outro executivo: “Advogado, cliente privilegiado, confidencial, Kent, por favor, aconselhe”, referindo-se a Kent Walker. O e-mail, sobre um assunto não jurídico, foi retido pelo Google e só teve seu privilégio retirado após a Epic contestá-lo.
Walker foi questionado sobre o comportamento do Google perante o juiz. Ele negou que houvesse “uma cultura de ocultação”, mas disse que um dos problemas era a falta de compreensão dos ‘Googlers’ sobre o significado de certas palavras.
“Eles consideram a palavra ‘privilégio’ semelhante a ‘confidencial’”, disse ele.
Em uma mensagem que surgiu no julgamento da Epic, um advogado do Google identificou a prática de copiar advogados em documentos como “privilegio falso” e parecia se divertir com isso. Walker disse que ficou “decepcionado” e “surpreso” ao ouvir esse termo.
O júri que ouviu o caso decidiu em favor da Epic em todas as 11 acusações em dezembro.
O Google se recusou a autorizar os comentários de Pichai e Walker. No mês passado, três grupos de defesa, liderados pelo American Economic Liberties Project, pediram para que Walker fosse investigado pela Ordem dos Advogados do Estado da Califórnia por ter orientado o Google a “envolver-se em destruição generalizada e ilegal” de documentos relevantes para os processos federais.
‘O que acontece em Vegas’
Em setembro de 2023, enquanto o Google enfrentava um julgamento em um caso antitruste sobre seu domínio na pesquisa na internet, o Departamento de Justiça afirmou que a empresa havia retido dezenas de milhares de documentos, alegando que eram protegidos por privilégio. Quando os documentos foram analisados pelo tribunal, foram considerados não privilegiados.
“O tribunal fica surpreso com o esforço que o Google faz para evitar a criação de um rastro de papel para reguladores e litigantes”, escreveu o juiz Amit P. Mehta, do Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito de Columbia. O juiz observou que o Google claramente aprendeu a lição da Microsoft: a empresa havia efetivamente treinado seus funcionários a não criar “evidências prejudiciais”.
O juiz Mehta disse que, em última análise, isso não importava: em agosto, ele considerou o Google culpado de ser um monopólio. Ainda assim, disse que não achava que a empresa estivesse se comportando bem.
“Qualquer empresa que coloca sobre seus funcionários a responsabilidade de identificar e preservar evidências relevantes o faz por sua conta e risco”, escreveu ele, acrescentando que o Google talvez não tivesse tanta sorte de evitar sanções no próximo caso.
O próximo caso surgiu em setembro, quando o Departamento de Justiça argumentou na sala de audiências da juíza Brinkema, na Virgínia, que o Google havia construído um monopólio na lucrativa tecnologia que servia anúncios online.
As evidências nos casos mostraram que os Googlers haviam aprendido a ser um pouco paranóicos, tanto pelo bem do Google quanto por suas próprias carreiras.
Em 2017, Robert Kyncl, então diretor de negócios da subsidiária do Google, o YouTube, perguntou à sua chefe, Susan Wojcicki, se ela tinha um fax em casa. Kyncl explicou que tinha um “documento privilegiado” e “simplesmente não queria enviar por e-mail”. Wojcicki, que faleceu em agosto, não tinha um fax.
Se os funcionários quisessem manter um registro eletrônico, eram repreendidos. Em um chat de grupo de 2021, um funcionário perguntou: “Posso manter o histórico aqui? Preciso guardar algumas informações para fins de memória.”
Não, disse Danielle Romain, vice-presidente do Trust, uma equipe do Google que busca soluções para melhorar a privacidade e a confiança do usuário. “A discussão que iniciou este tópico entra em território legal e potencialmente competitivo, o que eu gostaria de ter sob privilégio”, disse ela. “Prefiro manter o histórico desativado por padrão.”
Julia Tarver Wood, advogada do Departamento de Justiça, disse em uma audiência de agosto no caso sobre tecnologia de anúncios que os funcionários do Google “se referiam a esses chats off-the-record como ‘Vegas’. O que acontece em Vegas, fica em Vegas.”
O Google afirmou que fez o melhor possível para fornecer ao governo os documentos que podia, e que, em qualquer caso, o Departamento de Justiça não provou que as conversas deletadas eram cruciais para o seu caso. O Departamento de Justiça disse que não podia fazer isso porque o material havia sido deletado.
Os reguladores enfatizaram que não existe “Vegas” em chats. Este ano, a FTC e a divisão antitruste do Departamento de Justiça deixaram isso ”claro como cristal” em um memorando de aplicação: comunicações por meio de aplicativos de mensagens são documentos e devem ser preservadas se houver ameaça de litígios.
No ano passado, o Google alterou seus procedimentos. O padrão passou a ser salvar tudo, incluindo chats. Funcionários com questões de litígio não podem mais desativar o histórico de bate-papo.
Velhos hábitos são difíceis de morrer, no entanto. Em um chat, os funcionários reagiram à mudança formando um grupo para se comunicar secretamente no WhatsApp, o aplicativo de mensagens seguro do Meta.
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