Primeiro unicórnio brasileiro, o aplicativo de transporte 99, começa a gerar uma nova geração de empreendedores: ex-funcionários da empresa, fundada em 2012 por Paulo Veras, Ariel Lambrecht e Renato Freitas, estão começando a criar suas próprias startups. O exemplo também vale para quem passou pela Yellow, fundada por Lambrecht e Freitas após a venda da 99 à chinesa Didi, em 2018, pelo equivalente a US$ 1 bilhão. Segundo levantamento feito por Lambrecht e apurado pelo Estadão, há mais de 20 novas companhias na praça criada por veteranos das duas startups. Além do número, chama a atenção também a diversidade de áreas – há empresas de saúde e até de podcasts – e o fato de que muitas delas já estão levantando investimentos de peso.
Uma delas é a Swap, que recebeu no início de julho um aporte de R$ 17,5 milhões liderado pelo fundo One.vc. Fundada por Ury Rappaport e Douglas Storf em 2018, a empresa se define como uma fábrica de fintechs – isto é, ela é capaz de gerar para qualquer cliente a infraestrutura básica de uma startup financeira, com serviços como pagamentos e carteiras digitais. Entre os clientes, há nomes como a plataforma de passagens de ônibus ClickBus e a Leadr, rede social do grupo XP Investimentos.
Somos capazes de habilitar uma fintech inteira para um cliente em menos tempo do que uma pessoa precisa para abrir uma conta no banco”, diz Rappaport, que foi líder de desenvolvimento de negócios na 99. “É um serviço que pode ser muito útil para algumas empresas, mas nem todo mundo tem condição de bancar do zero”, afirma. Segundo ele, a ideia para a nova empresa nasceu a partir de testes feitos dentro do app de transporte, que buscou, nos últimos anos, criar uma gama de serviços financeiros para seus parceiros.
Para faturar, a empresa cobra uma assinatura de seus serviços, que varia de acordo com a demanda de cada cliente, considerando variáveis como usuários, transações e o tipo de serviço necessário. Com cerca de 20 funcionários, a Swap pretende dobrar seu time até o final do ano. A empresa não revela o número total de clientes, mas diz ter dobrado tal quantidade de março para cá e tem a expectativa de crescer mais 100% até o final do ano.
Quem também nasceu a partir de dificuldades encontradas no dia a dia da 99 foi a Kovi, conhecida por fazer aluguel de veículos para motoristas de aplicativo. “Na 99, percebi o impacto que o app tinha na vida dos condutores. E identificamos o problema que havia muito motorista, mas muitos deles não tinham carro”, diz Adhemar Neto, cofundador da empresa – o outro sócio, João Costa, foi seu colega no unicórnio. Juntos, os dois deixaram a empresa em 2018.
No ano passado, levantaram um aporte de US$ 30 milhões liderado pelo fundo Global Founders Capital, que já apoiou empresas como Facebook e LinkedIn. Hoje, a empresa opera na Grande São Paulo, em Porto Alegre e também atende no exterior, na Cidade do México — ao todo, a startup tem uma base de mais de 4,5 mil motoristas.
Cultura
Muitas das startups fundadas por ex-funcionários da 99 ainda estão em seus primeiros passos, de forma que estão sujeitas a grandes riscos – e até a falhar, como aconteceu com a própria Yellow, que entrou com pedido de recuperação judicial na última semana após uma sequência de erros, incluindo falta de capital, expansão rápida e brigas entre sócios.
No entanto, a quantidade de empresas criadas dá sinais de que o Brasil pode ter em breve sua própria “máfia do PayPal” – o nome faz referência a um grupo de empreendedores que fizeram parte da empresa de pagamentos, comprada pelo eBay em 2003 por US$ 1,5 bilhões. Entre os frutos do PayPal, há nomes como Elon Musk, que criou a Tesla; Reid Hoffmann, do LinkedIn; Peter Thiel, um dos primeiros investidores do Facebook; e o trio Steve Chen, Chad Hurley e Jawed Karim, que criou o YouTube.
Não se trata, porém, da história de “empresas mágicas” – para especialistas ouvidos pelo Estadão, há uma questão de cultura empreendedora que justifica o nascimento de diversas startups por um pequeno grupo de pessoas. “São espaços que têm DNA empreendedor e atraem funcionários que têm essa veia”, diz Guilherme Fowler, professor de empreendedorismo do Insper.
É a explicação que está na ponta da língua de Lambrecht, que já investiu em quatro empresas de ex-funcionários – Kovi e Swap inclusas. “Na entrevista de emprego, muita gente já falava que queria empreender e que estava ali para aprender como funciona”, conta ele ao Estadão. “É algo pouco convencional para uma empresa comum, mas isso fazia meu olho brilhar, porque a pessoa mostrava que queria executar e reproduzir o modelo.”
Já outras pessoas, diz Fowler, podem não ter a ideia de criar um negócio, mas se contaminam pelo espírito ao entrar numa startup. Foi o que aconteceu com Fernando Salaroli, que criou a startup de pesquisa de mercado Spry. Ele entrou na 99 em 2013, quando ainda estudava Engenharia Civil na USP. “Em seis meses, vi a empresa saltar de 10 para 80 funcionários. Percebi ali que era possível fazer com as minhas próprias mãos”, diz. Fundada em 2015, a startup chegou a receber R$ 2 milhões em aportes até ser comprada pela Loft em 2019, por valores não revelados.
Fundador da Orelo, que lançou um aplicativo próprio de podcasts na semana passada, Luiz Felipe Marques concorda. “Eu fiquei dois anos na Yellow e saí sem saber o que fazer, mas o contato com a cultura empreendedora me motivou a criar um novo negócio”, diz ele, cuja plataforma já tem parcerias com artistas como Marina Person e Xico Sá para produções originais e tem um catálogo com mais de 700 mil títulos.
Outro nome que saiu da Yellow e recebeu investimentos de Lambrecht foi a Boomerang, que levantou R$ 3 milhões em junho deste ano em uma rodada liderada pelo fundo Canary e com a participação de alguns investidores-anjo. A empresa é dona de um serviço de “aluguel de coisas” – segundo o fundador, Nathan Romeiro, a ideia é fazer as pessoas alugarem em vez de comprarem itens como ferramentas, produtos de jardinagem ou material de festa, pouco usados em casa.
Mais do que apenas ter o exemplo de empreender, porém, essas novas startups também chegam ao mercado com um efeito de rede – a Swap, de Rappaport, por exemplo, tem entre seus clientes a Z1, uma iniciativa de finanças para adolescentes criada por Thiago Achatz, que trabalhava na área de pagamentos da Yellow. “Eles nos ajudaram a formatar uma proposta de valor para atenderemos empresas que estavam começando”, diz Rappaport. Parte dessa interação, diz o empreendedor, acontece em grupos de WhatsApp, no qual os novos fundadores trocam experiências. “Se preciso de ajuda com marketing, RH ou jurídico, eu sei quem chamar”, afirma o cofundador da Swap. “Para mim, o maior legado dessas empresas foram as pessoas.”
Na visão de Arthur Garutti, sócio da empresa de inovação Ace, a criação de novas empresas é o fim de um ciclo virtuoso para o ecossistema brasileiro. “É quando você vê fundadores de startups e funcionários vendendo empresas e, a partir disso, criando e investindo em novas oportunidades” diz. Segundo ele, a geração 99/Yellow é só o começo. “Nos últimos dez anos, foram criadas empresas de muita relevância com esse DNA inovador no Brasil, por isso acredito que nos próximos anos nascerão muitas outras ‘máfias’ desse tipo por aqui”, diz.