Com quantos bits, ideias e cafés se faz uma startup avaliada em mais de US$ 1 bilhão? Quem quiser descobrir a resposta brasileira para uma das perguntas mais feitas no mercado de tecnologia pode ler o livro Da Ideia ao Bilhão, lançado nesta semana pela Portfolio Penguin. Escrito pelo jornalista Daniel Bergamasco, o volume conta as histórias por trás de empresas como Nubank, iFood, Ebanx, Stone e QuintoAndar, com direito a detalhes biográficos, ensinamentos de negócios e bom humor.
“O livro mostra o jeito brasileiro de fazer inovação, que é diferente do que se faz no Vale do Silício, com menos dinheiro e mais cautela. Também é uma forma de mostrar quem trouxe a primeira pavimentação da nova economia, com lições que servem para qualquer tipo de empresa”, diz Bergamasco, que escreveu o trabalho ao longo do último ano.
Segundo ele, foi preciso fazer um recorte na quantidade de empresas retratadas para que o trabalho não se tornasse infinito – e é por isso que empresas como Wildlife, Loft e Vtex, que alcançou o status de unicórnio nesta semana, não aparecem diretamente no livro. Mais do que apenas fórmulas, Da Ideia ao Bilhão traz histórias de gente real, diz o autor – um dos destaques do livro é o capítulo dedicado a Monique Oliveira, fundadora trans da gigante Movile. Outras boas histórias aparecem na oferta de aquisição de uma gigante chinesa à Ebanx e no processo seletivo de trainees da Stone, com toques do filme Tropa de Elite.
Ao Estadão, Bergamasco conta detalhes do livro e explica que lições qualquer empresário pode tirar do livro. “Nenhuma das startups tem tecnologia revolucionária, mas sim inovações nos modelos de negócios, que é algo útil para qualquer empresa”, diz o autor. Ele também fala sobre a importância da diversidade entre as brasileiras, algo ainda em falta, e afirma que é preciso urgentemente cuidar da mão de obra qualificada – em sua visão, o maior gargalo para o crescimento das empresas brasileiras no futuro próximo. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Por que escrever um livro sobre os unicórnios brasileiros?
Na minha carreira como jornalista, eu me encontrei na área digital, mas me incomodava como a conversa na área de inovação era excludente e difícil. Era difícil entender quais empresas tinham modelos de negócios com inovação real e quais lugares tinham só uma parede grafitada e usavam muitos termos em inglês. Resolvi estudar para entender a diferença, fui fazer um MBA em inovação. Quando comecei a pesquisar as startups brasileiras, descobri que poderia render um bom livro. São empresas que já transformaram o consumo no Brasil, tem um impacto grande e um jeito brasileiro de fazer as coisas. Não é algo do avesso ao Vale do Silício, mas é diferente: é mais cautelosa, não queima tanto dinheiro. Achei que era hora de entender a inovação brasileira, o que nós somos capazes de fazer. E como repórter, acredito que minha melhor contribuição é olhar por trás da cortina, vendo as pessoas de carne e osso que construíram essas empresas.
Por que esse aspecto humano é importante?
As empresas são muito boas de montar um PowerPoint com a sua história, mas elas são abstrações. Contar as histórias pessoais ajuda a aproximar do leitor, com angústias, erros e inseguranças. Tem gente que se acidenta de paraquedas, tem gente que planejou a carreira inteira na adolescência, acredito que é a melhor forma de falar das empresas. E pude contar histórias como a da Monique Oliveira, fundadora da Movile. Achei importante mostrar que a Cristina Junqueira, do Nubank, não é a única fundadora mulher – até porque é um meio que ainda não tem muita diversidade entre os fundadores, praticamente são todos homens e brancos. A Monique é uma pessoa fundamental da história da Movile, ela traz a tecnologia para a nTime, que é uma das empresas que vão dar origem ao grupo. Poder mostrar a história dela, o processo de transformação, a ligação com o computador, é algo muito bacana.
Além da questão de representatividade, porque a diversidade é um valor importante?
Vou fazer uma analogia. Não existe um ecossistema se você só tem bromélias ou joaninhas. É preciso ter seres diferentes. No ecossistema de startups, é a mesma coisa: é preciso ter empresas, universidade, governo, empresas tradicionais, é uma relação. Dentro das empresas, muitas delas criadas para empregar muita gente, é preciso a mesma coisa. O grande pulo do gato dos unicórnios é moldar o modelo de negócios em torno do que o cliente quer. Se você só tem um tipo de gente pensando nisso, as empresas perdem demais. Elas precisam de pessoas diferentes. Em alguns aspectos, está melhorando: já existe mais diversidade de gênero e etária entre os fundadores, por exemplo. Já outros aspectos da diversidade ainda são pouco contemplados – não existe nenhum negro entre os fundadores dos unicórnios brasileiros, por exemplo.
O que é possível aprender com as startups?
Acho que o livro oferece alguns aprendizados, não necessariamente digitais. Nenhuma dessas empresas criou uma tecnologia revolucionária. Algumas têm tecnologia aprimorada, em outras a tecnologia é secundária. A inovação aparece sim no modelo de negócios. E há lições importantes para áreas como gestão de pessoas. Eu nunca fui convidado para opinar sobre os meus chefes, como acontece na Arco Educação. É algo que faz sentido numa cultura em que as pessoas buscam sempre evoluir. A maneira como as pessoas lidam com gente, com cultura, também é importante, é onde está a maior novidade. E isso pode ser útil para qualquer empresa, até mesmo uma loja de material de construção no interior do Brasil. E a empresa, principalmente entre as grandes, que não prestar atenção nos unicórnios ou nas comunidades de startups brasileiras, vai ficar para trás.
As startups brasileiras triunfaram em um momento de crise local. Agora, porém, além da continuidade da crise por aqui, há um cenário de crise global. É um problema para o setor?
É difícil prever. Pode se restringir a quantidade de investimentos, ficar mais difícil. Mas ao mesmo tempo, vivemos um ano que acelerou muito a necessidade de negócios digitais.O consumidor está mais aberto para várias experiências. Além disso, é preciso dizer que a maioria das empresas foi fundada de 2012 para cá, elas não sabem o que é trabalhar com vento favorável. Claro que tem muita coisa contra agora, mas essas empresas prosperaram em tempos de crise. E se o potencial da startup é medido de acordo com o problema, o Brasil só pode ser um prato cheio. Acredito que estamos apenas no começo dessa transformação de inovação. E que vai mudar todas as empresas. Um exemplo é o fato da Via Varejo contratar o Helisson Lemos, que foi do Mercado Livre e da Movile, e deixar a área de pessoas sob o comando dele. É uma transformação cultural. Também é preciso ressaltar que há comunidades pipocando em todos os lugares do Brasil, formando talentos e disseminando conhecimento.
Qual é o principal desafio ou ameaça das startups brasileiras hoje?
Mão de obra qualificada. Hoje, já existe escassez de desenvolvedores em São Paulo, outras cidades sofrem com a falta de profissionais de inovação. Além disso, há uma fuga de profissionais para o exterior. As empresas estão buscando caminhos para contornar isso, permitindo que o funcionário more fora, abrindo escritórios de tecnologia no exterior. Mas ainda assim, a demanda é gigante: com a digitalização, as empresas tradicionais vão competir pela mão de obra. Não vai dar tempo de formar tanta gente boa se nada for feito com urgência. Mais do que capital, falta de gente boa é a maior ameaça para o futuro das startups. E isso precisa passar por política pública, pela valorização da universidade pública. Em todas as universidades públicas surge muita inovação. Os unicórnios brasileiros não seriam os mesmos sem a USP e a Unicamp, por exemplo. É preciso olhar para a universidade como algo estratégico, ter políticas públicas para formar pessoas capacitadas para trabalhar com inovação.