BERLIM - A rápida digitalização da América Latina nos últimos anos, em especial na área de finanças (fintechs), criou verdadeiros gigantes regionais. Nomes como Nubank (Brasil), Mercado Livre (Argentina) e Rappi (Colômbia) tornaram-se sinônimos de sucesso no mercado de tecnologia da região, abrindo portas para novos talentos surgirem e impulsionando novas soluções financeiras e hábitos de consumo.
Esse ciclo virtuoso da inovação incentivou a chegada de investidores de capital de risco atentos a oportunidades, além dos nomes tradicionais. É o caso da Picus Capital, gestora alemã com sede em Munique que chegou à América Latina em 2020 – desde então, seus investimentos incluem startups como a mexicana Clara, a chilena Xepelin e as brasileiras Cayena, BHub e Caju.
“As empresas de tecnologia da América Latina demonstraram a capacidade de gerar valor econômico”, afirma ao Estadão o investidor alemão Julian Roeoes, sócio responsável pelos investimentos na região das Américas.
Roeoes diz estar ciente dos riscos de se investir na América Latina, onde muitos “investidores turistas” chegaram durante a pandemia de covid-19 e, ao sinal de primeira crise com alta dos juros, deixaram o continente. “Não somos investidores de cinco anos. Somos de 15 anos, e acreditamos firmemente que as tecnologias certas que proporcionam eficiência ao ecossistema e à pegada socioeconômica da região prevalecerão no longo prazo”, explica o alemão.
Julian Roeoes, sócio da Picus Capital
Fundada em 2015 e com seis escritórios espalhados pelo mundo (como Pequim, Londres e Nova York), a Picus pretende usar o know-how adquirido em outros continentes para fazer investimentos nas áreas certas na região. Aqui, a ideia é pinçar o que deu certo na Europa, Estados Unidos ou Ásia e entrar nos setores com maior potencial nos principais mercados latinoamericanos, como Brasil, México e Colômbia.
Além disso, os futuros investimentos da Picus Capital devem seguir o novo mantra do mercado de inovação: a busca por eficiência é mais importante do que o crescimento a qualquer custo.
“Para nós, o que é muito importante agora é o crescimento eficiente, o crescimento econômico”, explica na mesma videoconferência Robin Godenrath, um dos fundadores da Picus e hoje diretor da gestora. “Se o fundador estiver crescendo de forma eficiente, ele também não vai estar muito longe de poder buscar a lucratividade.”
Leia abaixo trechos da entrevista ao Estadão.
Quais são as principais tendências em ascensão não só na Alemanha, mas também na Europa?
Robin Godenrath: Muitas tendências começam na Europa, algumas começam nos EUA e outras começam na Ásia. E, normalmente, também é muito diferente por setor. Por exemplo, com fintechs, a Europa costuma ser líder em tendências de consumo. Muitas vezes, elas chegam mais tarde à América Latina, Brasil, Colômbia e México. Nós temos uma organização global que funciona como uma matriz. Existem as regiões geográficas, as indústrias e a experiência em determinados setores. Isso nos ajuda muito a tomar as decisões corretas de investimento em todas as regiões.
Julian Roeoes: Se analisarmos a gestão de patrimônio, digamos que os EUA estão na vanguarda da inovação. Se analisarmos o open banking e a infraestrutura de pagamentos, as tendências tendem a ocorrer primeiro na Europa. Na Índia e no Sudeste Asiático, há muitos mercados B2B interessantes e modelos diferentes. Às vezes, os fundadores combinam isso com o software que foi desenvolvido no passado na Europa, o que traz oportunidades interessantes para os mercados latinoamericanos.
É importante que uma startup investida se torne global?
Godenrath: Às vezes, o mercado doméstico é difícil. Você pode criar empresas enormes nos primeiros dez anos da história de sua empresa nos EUA. Na Europa, é um pouco mais importante abrir-se para diferentes mercados, mas também é muito mais complexo. Nos Estados Unidos, se algo funciona, você pode expandi-lo para todo o país. Se algo funciona na Alemanha, isso não significa que funcione na Itália ou na França, porque há diferentes idiomas, diferentes mentalidades e diferentes ambientes regulatórios. Há mais riscos envolvidos ao buscar escala do negócio, por isso é mais difícil fazer isso aqui na Europa. Considero um dos nossos grandes pontos fortes o fato de sermos um investidor que pode acompanhar o fundador globalmente e ajudá-lo não só no início. Queremos ser um parceiro global.
Como superar o problema de escalabilidade que as startups na Europa têm?
Godenrath: É importante ter parceiros globais com você. Se estivermos, por exemplo, indo para a França com uma empresa de software e depois para os EUA, não será nossa primeira vez fazendo isso. Já vimos no passado o que é importante e o que deu errado, e podemos ajudar fundadores a encontrar as pessoas certas. Eles nem sempre precisam aprender por tentativa e erro se tiverem parceiros experientes ao lado.
Quando você fala sobre visão de longo prazo, que tipo de áreas são mais interessantes?
Godenrath: Nos últimos dois anos, 80% dos nossos investimentos são em B2B. Gostamos de B2B porque os respectivos modelos tendem a ser mais voltados para apostas em tendências de longo prazo, ao contrário dos tópicos de consumo puro, onde pode acabar havendo uma guerra de marketing entre as startups. No B2C, por exemplo, ainda estamos interessados em energia descentralizada. Um dos nossos maiores investimentos foi a Enpal, na Alemanha, que agora vale 2,5 bilhões de euros. Aqui não nos importamos muito com a possibilidade de uma recessão, porque essa tendência é muito forte e não vemos a energia descentralizada retrocedendo.
Mas as hipóteses mais interessantes que temos atualmente são sobre IA generativa e infraestrutura para desenvolvedores. Nós não estamos investindo nas tecnologias que tentam competir com o ChatGPT ou com a solução do Google, porque achamos que é muito difícil competir com eles. Estamos pensando mais em termos regulatórios e em infraestrutura. A segurança cibernética também é outro setor muito importante, assim como a infraestrutura financeira e a infraestrutura de pagamentos, além da biotechs e healthtechs. Se observarmos a inovação que está ocorrendo, por exemplo, no setor de biotecnologia, ela vem cada vez mais do lado dos dados e do aprendizado de máquina, e não mais do lado da biologia.
O que os atraiu para a América Latina?
Roeoes: Temos plena consciência de que há riscos no mercado. Eles são inerentes se você observar a inflação, a incerteza política, as taxas de juros, as crises e a volatilidade do PIB. Mas, se olharmos para além dos ciclos de dez a 15 anos, e até mesmo para alguns dos neobancos, o Mercado Livre e assim por diante, digamos que há um caminho pelo qual as empresas de tecnologia demonstraram a capacidade de gerar valor econômico. Quando analisamos a região há três anos, o problema era, e ainda é, a disposição do cliente de pagar, que é relativamente baixa. Quando você analisa o que realmente pode ser monetizado, é raro que as pessoas estejam dispostas a pagar por software. Na maioria das vezes, elas estão dispostas a pagar pelo acesso.
Não há receio com nossas crises políticas e econômicas recorrentes?
Roeoes: Somos muito cautelosos com relação a isso. Especialmente em fintechs e no setor de saúde, que são altamente regulamentados. Embora estejamos muito atentos a isso, não somos investidores de cinco anos – somos de 15 anos, e acreditamos firmemente que as tecnologias certas que proporcionam eficiência ao ecossistema e à pegada socioeconômica da região prevalecerão no longo prazo. Você precisa ser ágil, precisa ser capaz de se ajustar como empresa e reagir. Mas se você tiver um horizonte de investimento de dez a 15 anos, acreditamos que a tecnologia desempenhará um papel importante.
Qual é a estratégia para a América Latina? Porque alguns VCs brasileiros têm criticado o que eles chamam de uma espécie de investidor turista que chegou ao País.
Roeoes: Sim, há muitos fundos turistas, e temos muitos debates sobre isso. Investimos muito com a Monashees, com a Kaszek e com muitos dos grandes nomes. Mas eu moro em Nova York, passo muito tempo em São Francisco e conheço muitos fundos dos EUA. Se você, como fundador, escolher um fundo dos EUA em vez de um fundo local, talvez eles lhe ofereçam suporte e inteligência de mercado, mas talvez agora não passem mais tempo com você. Acho que isso pode ser um grande desafio para os fundadores no futuro. Por outro lado, eles também fornecem muito capital a empreendedores treinados. Para nós, é muito, muito diferente. Nunca nos vimos como um fundo que entra com US$ 30 milhões e precisa ter 25% de participação em rodadas de estágios posteriores. Sempre nos concentramos em ser parceiros operacionais fortes para os fundadores, trabalhando com eles desde os primeiros dias, passando muito tempo com eles, trazendo know-how global, mas também colaborando com fundos locais. Não quero comprar a participação da Monashees ou da Kaszek. Eu encontro uma boa estrutura que traz o melhor dos dois mundos e é colaborativa por natureza. É por isso que temos tantos co-investimentos com vários fundos. Uma das coisas mais arriscadas que alguns investidores internacionais fizeram foi usar na América Latina a mesma abordagem de investimento que funcionaria nos EUA. Queremos ser muito colaborativos, muito práticos e muito solidários. É por isso que, para nós, a abordagem atual que adotamos nos últimos dois anos funciona muito bem.
Desde a pandemia da covid-19, a cultura do “crescimento a qualquer custo” mudou. Como você vê essa estratégia?
Godenrath: Se você tem uma pequena startup, não é suficiente que sua empresa seja lucrativa e cresça apenas 10%. Queremos mudar o mundo e isso exige escala. Isso significa que o crescimento ainda é importante para nós. O que é muito importante agora é o crescimento eficiente. Portanto, ainda é possível crescer muito, mas é preciso monitorar de perto a que custo. Estamos analisando bastante quanto capital um fundador precisa para cada unidade de queima adicional de capital. Durante a pandemia, havia muitas empresas de mercado digital e patinetes em que havia outras quatro empresas operando no mesmo espaço. Eles disseram: “Temos que superá-los. Não me importo com a eficiência, apenas levantamos muito dinheiro e vamos em frente”. Essa abordagem pode ser difícil, principalmente se você estiver em um estágio mais avançado de crescimento. Esses tipos de cenários não estão mais acontecendo. Se você estiver crescendo de forma eficiente, também não estará muito longe de poder mudar e buscar a lucratividade, mesmo que veja que não há mais possibilidade de levantar mais capital. Mas, para nós, o crescimento ainda é importante.
Roeoes: A capacidade do fundador de articular um caminho em direção a um fluxo de caixa lucrativo ou a um modelo de negócios atraente do ponto de vista econômico unitário não pode mais ser ignorada. No passado, os fundadores conseguiam dizer: “Vou levantar 20 milhões, depois vou levantar 50 milhões, depois vou levantar 80 milhões. E em algum momento, em escala, serei lucrativo”. No entanto, para algumas dessas empresas que tinham muito estoque, muita logística e muito capital intensivo para a aquisição de clientes, não havia nenhum caminho existente para a lucratividade. Eles simplesmente foram queimando de rodada em rodada. Não se tratava de financiamento para crescimento. Era um financiamento para se manter vivo. Agora, os investidores ainda estão dispostos a investir, mas querem ter fundadores que tenham a capacidade de articular um caminho para a lucratividade.
*O repórter foi a Berlim como parte do Internationale Journalisten-Programme (IJP), programa de intercâmbio para jornalistas da América Latina