Para muitas pessoas, pensar em videogame significa pensar na japonesa Nintendo e sua miríade de personagens: Mario, Donkey Kong, Link, Kirby, Yoshi… Da mesma forma, está a Blizzard, dona de games como Starcraft, Diablo e Warcraft, para os jogos de computadores. Na visão de Victor Lazarte, cofundador da empresa de games paulistana Wildlife, ainda não existe uma empresa tão icônica assim para o mundo os títulos de smartphones. E ele chama para si a responsabilidade. “Queremos ser a Nintendo dos games para celular”, diz, em entrevista ao Estado.
Há um bom potencial para isso: fundada em 2011, a empresa está perto de chegar aos 2 bilhões de downloads de seus mais de 60 jogos. Alguns deles, como Tennis Clash, Sniper 3D e Colorfy, frequentam o topo das listas de games mais baixados de dezenas de países. Na última quinta-feira, 5, outro passo importante foi dado pela Wildlife: o anúncio de que a empresa recebeu um aporte de US$ 60 milhões liderado pela Benchmark Capital (Uber, Twitter, Snapchat).
Na entrevista a seguir, Victor Lazarte fala mais sobre a empresa que criou ao lado do irmão, Arthur, dois anos mais velho – os dois largaram empregos “de sonho” de muita gente para começar do zero, no quarto da casa dos pais. “Não tinha dinheiro nem para pagar aluguel, escritório ou funcionários”, diz. Agora, com o investimento, a empresa é avaliada em US$ 1,3 bilhão, sendo considerada o décimo unicórnio brasileiro (startup avaliada em US$ 1 bilhão ou mais). A seguir, os principais trechos da entrevista.
Você e seu irmão tinham o que muita gente consideraria os empregos dos sonhos. Por que largar um banco de investimentos e uma consultoria para criar videogames?
Desde muito cedo a gente queria trabalhar com videogames. No colegial, aprendemos a programar, fizemos alguns projetos por diversão. Nosso sonho era ter uma empresa de videogames, mas não havia nenhum empresário na família. A grande dúvida era porque alguém jogaria os nossos games e não os da Nintendo. Acabamos tomando um caminho menos criativo. Eu fiz engenharia mecânica, o Arthur fez engenharia aeroespacial, tiramos o diploma duplo na França. Depois, fomos trabalhar, eu estava no JP Morgan em Londres, meu irmão fez ainda mestrado e começou o doutorado antes de trabalhar. Mas descobrimos muito rápido que essa carreira não era para nós. Olhamos para o mundo e vimos uma oportunidade: a penetração de smartphones estava crescendo bastante e achávamos que as pessoas iam querer jogar naqueles computadores de bolso. Voltei para o Brasil e tentamos achar investidores. A melhor oferta que tivemos foi de US$ 75 mil por 50% da empresa. Não eram termos atrativos. Acabamos começando a empresa com US$ 100.
E no que foram gastos esses US$ 100?
US$ 50 era para comprar a licença de desenvolvimento de jogos da Apple. Os outros US$ 50 nós gastamos com um artista que fez o ícone de um jogo. Agora, valemos US$ 1,3 bilhão, acho que foi um bom retorno (risos).
E a empresa nasceu num quarto da casa dos pais de vocês?
É. Foi uma época puxada. Eu tinha conseguido juntar R$ 12 mil e era o dinheiro que eu tinha para sobreviver durante um ano. Voltamos para a casa dos pais para não pagar aluguel. Não tinha dinheiro para pagar escritório nem funcionário. Mas demos sorte porque aquele era um momento especial da indústria. As pessoas queriam muito jogar e havia poucos títulos de qualidade – ainda mais gratuitos. A maioria dos jogos da época eram vendidos por US$ 1, como o Angry Birds. Acabou dando certo. Temos orgulho de criar algo global a partir do Brasil. Há muita gente talentosa aqui e que quer trabalhar com tecnologia, mas não tem oportunidade. Não precisar ir para o Vale do Silício é uma legal. Acredito que o principal elemento para fazer uma grande empresa de tecnologia é talento: todo mundo usa os mesmos softwares e os mesmos computadores. A questão é que o talento é igualmente distribuído no mundo, mas as oportunidades não são.
Hoje, a Wildlife tem cinco escritórios fora do Brasil. Por que buscar talentos no exterior?
Quando a competição é global, somos forçados a elevar muito a qualidade dos nossos serviços. Há talento no Brasil, mas há pouca experiência. Algo que sempre fizemos foi trazer um estrangeiro para começar um time no Brasil, com bastante experiência, e construíamos um time local, jovem e com vontade de aprender. Depois de um tempo, começou a ficar difícil trazer as pessoas para cá, então abrimos os escritórios fora. Em lugares como São Francisco é possível contratar um diretor de tecnologia que já trabalhou em gigantes como Google ou Facebook. Hoje, temos cerca de 500 pessoas e a maior parte delas estão no Brasil. No futuro, haverá um equilíbrio entre o escritório daqui e os de fora.
No que a empresa vai usar os US$ 60 milhões desta rodada de aportes?
Queremos aumentar o time. A meta é chegar a 800 funcionários até 2020. As contratações serão feitas em todos os escritórios, mas principalmente em São Paulo e Buenos Aires. Há ênfase em tecnologia e design, mas também tem muita análise de dados e todas as outras funções importantes de uma companhia. Além disso, com a entrada de empresas tradicionais, a expectativa dos jogadores sobre os games mobile sobe muito. Queremos estar à frente desse movimento. Para isso, também vamos fazer parcerias. Hoje em dia, um dos grandes desafios de quem faz jogos é conseguir distribuir os games. Muitas vezes têm estúdios menores que não consegue atingir grandes audiências. Então vamos ajudá-los nisso.
A empresa nasceu com o nome de Top Free Games. Em agosto, mudou seu nome para Wildlife (“vida selvagem”, em inglês). Por quê?
Quando começamos, o fato dos jogos serem gratuitos era um grande diferencial. Com o amadurecimento do mercado, deixou de ser. Acreditamos que o nome não refletia mais a nossa identidade, o que o novo nome faz.
O mercado de games para celular é bastante disputado e cheio de empresas que tiveram sucesso e depois tropeçaram, como Zynga (de Farmville), Rovio (de Angry Birds) e King (de Candy Crush). Como o sr. vê o setor?
Tanto a Zynga como a King são empresas que hoje valem bilhões. Não continuaram crescendo, mas são relevantes e não podem ser considerados fracassos. O problema é que nos jogos para celular, é preciso ter timing. Não basta só fazer um bom jogo, ele precisa chegar às mãos das pessoas. A grande barreira de entrada do setor hoje é o investimento em marketing. É uma vantagem que já temos, pois nossos jogos estão nas mãos de 1 bilhão de pessoas. Mas há muito a ser feito. Para cada plataforma de videogames, existe uma empresa icônica. A Nintendo foi isso para os consoles, a Blizzard para os PCs. Nosso sonho é ser para o celular o que a Nintendo foi para o passado.
Empresas como Apple e Google estão entrando no mercado de jogos para celular de forma pesada, com serviços de assinatura como o Apple Arcade e o Google Stadia. Como a Wildlife vai competir?
Historicamente, as pessoas consumiam jogos pagando por produtos ou serviços de assinatura. Ter jogos gratuitos, mas com microtransações ("freemium") foi uma revolução: dá ao usuário a oportunidade de jogar por bastante tempo até decidir que quer fazer algum investimento. É algo democrático. Acreditamos que devemos apostar nele ainda mais.
Há uma discussão no País de que empresas brasileiras devem fazer jogos com a cultura local. Como vê isso?
Não concordo. Para nós, dá orgulho fazer jogos aqui que alcancem o mundo inteiro. O legal da tecnologia é isso. Particularmente, sou apaixonado em descobrir quais são as coisas que unem as culturas, em como criar experiências universais. O fato de sermos do Brasil não deve servir só ao mercado brasileiro. É legal seguir os exemplos de outros lugares, com empresas que começam locais e geram impacto no mundo todo.
Apesar dos oito anos de empresa, esta é uma das primeiras entrevistas concedidas pela Wildlife. Por quê?
Eu e meu irmão sempre fomos reservados. Não importa que sejamos conhecidos, mas sim que as pessoas gostem dos jogos. Hoje, percebemos que a empresa tem uma escala na qual já importa contar a nossa história. Percebemos que quando contamos o que queremos fazer, mais gente quer se juntar a esse sonho.
Mas com esse crescimento, não dá mais para colocar a mão na massa, dá?
É uma das coisas que me deixa triste. Meu irmão consegue mais: ele toma as decisões criativas, enquanto eu fico com a parte de negócios. Mas acho que faz parte da vida, né?