A necessidade de compra de remédios controlados, como antibióticos, durante a pandemia de covid-19 forçou a digitalização do setor de saúde em ritmo acelerado, abrindo espaço para as startups. Na esteira das teleconsultas, a prescrição digital ganhou força. Uma das principais startups desse segmento é a Memed, que registrou salto de 80% na média mensal de emissão de receitas digitais em 2021, indo de 1,5 milhão para 2,7 milhões ao mês.
“Com a eliminação do papel, podemos resolver problemas de auditoria de receitas e acabar com erros de interpretação de prescrições de medicamentos”, afirma Joel Rennó Jr., CEO da Memed. O crescimento acelerado das receitas digitais atraiu investidores. Só no ano de 2021, a Memed recebeu R$ 400 milhões em aportes financeiros, montante que será usado para desenvolvimento de tecnologia, ampliação do quadro de funcionários e expansão do negócio no Brasil.
A startup gerou receitas para um total de 28 milhões de pacientes neste ano. São 150 mil médicos e 40 mil farmácias cadastrados na sua plataforma digital. Estão entre os clientes: Unimed, Amil, Prevent Senior, Sulamérica, Beneficência Portuguesa e Hospital Oswaldo Cruz.
Concorrente, a Nexodata também chamou a atenção de investidores e captou R$ 40 milhões. Pedro Dias e Lucas Lacerda criaram a startup em 2017, e também são conhecidos por terem fundado a empresa de telemedicina Vitta, que foi comprada pela Stone, no ano passado.
Com investidores como Jorge Paulo Lemann, Guilherme Benchimol, Mercado Livre e o Hospital Albert Einstein, a Nexodata tem uma tecnologia que permite o envio de receitas digitais aos pacientes. “A receita digital de medicamentos gera muito valor para todos. Não tem mais a letra ilegível do médico ou a perda da receita. É uma receita mais segura do que o papel”, afirma Dias. Grupo Notredame Intermédica, Hospital Albert Einstein e Rede D’Or utilizam a tecnologia da startup, que também tem 25 mil farmácias credenciadas em sua plataforma digital.
Além de lidar com a fragmentação dos sistemas tecnológicos de hospitais e consultórios, que nem sempre são compatíveis entre si, a digitalização da saúde enfrenta algumas carências regulatórias. Eliézer Silva, diretor de medicina diagnóstica e ambulatorial no Albert Einstein, explica que o hospital utiliza receitas digitais há cinco anos.
As prescrições são para os medicamentos já permitidos no formato digital, como aquelas para remédios que não precisam necessariamente de receita — mas têm orientação de uso — e para antibióticos. Comprimidos controlados, como antidepressivos, ansiolíticos e analgésicos fortes ainda carecem de regulação e precisam de receita em papel para auditoria de farmácias. “Com a digitalização do sistema de saúde, isso vai acabar sendo resolvido em algum momento”, afirma Silva, que diz ser possível, no futuro, a integração de sistemas médicos com farmácias a tal ponto que permitirá a compra e o envio de medicamentos para a casa do paciente de forma mais simples.
Unificação de dados
Durante a pandemia de covid-19, além da tecnologia, o que mais mudou foi a mentalidade de médicos e farmácias, na visão de Guilherme Hummel, especialista em saúde digital e coordenador científico da Hospitalar Hub, que organiza o evento anual Feira Hospitalar. Para ele, o maior valor das startups que atuam na emissão de receitas digitais de medicamentos está nos dados dos pacientes, que podem viabilizar novos negócios e uma visão panorâmica da situação de saúde de determinadas regiões em tempo real. A Memed, por exemplo, tem um banco de dados sobre medicamentos e exames com mais de 60 mil registros.
No entanto, o uso dessas informações está sujeito a multas por infrações da lei geral de proteção de dados. Por isso, é preciso ter a aprovação dos pacientes para cada uso específico, como a integração a um banco de dados unificado — algo que, ao mesmo tempo, protege a privacidade da população, mas dificulta a integração de dados médicos.
O Ministério da Saúde já tem um registro único de dados de saúde, mas não há legislação que demande o registro de informações por parte das empresas. Hummel diz ser “inadmissível” que o País ainda não tenha uma obrigatoriedade de compartilhamento de informações no registro único de saúde, que existe em outros países, e estima que isso deve acontecer em até três anos. O movimento, chamado de open health, seria uma unificação parecida com a do setor bancário, chamada de open banking. “A falta desse registro único causa ineficiências para um setor que já sofre com altos custos”, diz.
A unificação poderia evitar a duplicidade de exames, trazer informações sobre o uso atual e passado de medicamentos. Com isso, seria possível traçar um perfil completo do histórico de saúde de cada paciente, ao integrar dados do setor público e do setor privado.