A saúde da mulher exige cuidados específicos: é preciso acompanhar fertilidade, contracepção, gestação, menopausa e outras dinâmicas do corpo feminino. Com o crescimento das “healthtechs” (startups de saúde), empresas especializadas em soluções tecnológicas para saúde da mulher também vêm ganhando espaço – elas devem movimentar US$ 50 bilhões no mundo até 2025, segundo a consultoria americana Frost & Sullivan. Inspiradas em exemplos internacionais, essas startups, conhecidas como “femtechs”, começam a desenhar um novo mercado no Brasil.
Um dos principais nomes do setor no País é a Theia. Criada em 2019 por Paula Crespi e Flávia Deutsch, a startup oferece atendimento clínico em pré-natal, parto e pós parto, por meio de uma rede de 38 especialistas entre ginecologistas, psicólogos, nutricionistas e pediatras. A femtech já recebeu R$ 7 milhões em investimentos das gestoras Kaszek (dos cofundadores do Mercado Livre) e Maya Capital (de Lara Lemann, filha do bilionário Jorge Paulo Lemann).
“A gestação é o momento em que estamos mais engajadas com a saúde. Porém, ainda há muito desamparo. A Theia deixa de ver a mulher como a barriga que carrega o bebê e oferece um cuidado multidisciplinar”, afirma Flávia ao Estadão.
A startup mantém uma operação presencial em São Paulo e atua em parceria com os hospitais Santa Joana, Pro Matre, São Luiz e Einstein para a realização dos partos – no restante do País, o acompanhamento é apenas remoto. Por meio de site ou app, a Theia coordena um caminho de cuidado para cada mulher: o sistema indica as consultas necessárias de acordo com a semana da gestação e sugere atividades (como rodas de conversa e leituras) correspondentes a cada fase da gravidez. A paciente pode pagar as consultas por planos de saúde ou então acertar separadamente – um atendimento obstétrico na Theia custa R$ 400, enquanto a sessão de terapia é R$ 200.
Algumas femtechs, no entanto, ampliam o escopo para além da gestação. A Oya Care, fundada no ano passado, oferece um relatório de fertilidade para mulheres a partir de um exame de sangue e de uma consulta com uma ginecologista especializada em reprodução humana – o atendimento é remoto, com agendamento online.
O serviço, que custa R$ 300, está disponível no Rio de Janeiro e em São Paulo e conta com parcerias com laboratórios – uma enfermeira contratada pela startup coleta o exame na casa da mulher. Pacientes de outras localidades, que tiverem os exames em mãos, podem marcar apenas a teleconsulta na Oya.
“Avaliando o exame e outros aspectos da vida da mulher, como histórico de saúde, estilo de vida e idade, a médica traça um planejamento personalizado. Ela orienta, por exemplo, se o caminho é uma consulta depois de seis meses ou se é congelar os óvulos”, explica Stephanie von Staa Toledo, fundadora da Oya Care. Em sua primeira captação, a startup levantou um aporte de US$ 790 mil (cerca de R$ 4 milhões, na cotação atual) no final do ano passado, liderado pela firma de capital de risco Canary. A empresa já testa outros produtos relacionados à saúde preventiva da mulher, como doenças sexualmente transmissíveis e contracepção.
Outra startup que aposta nesse tipo de cuidado é a Fertilid. Lançada em julho de 2019, a femtech nasceu da experiência de Amanda Sadi com exames de fertilidade oferecidos por clínicas particulares. "Descobri que tinha um teratoma no ovário e desembolsei muito dinheiro quando fui fazer os procedimentos. A capacidade reprodutiva é um dado que as mulheres precisam saber sobre si e quase ninguém conhece isso a fundo", conta Amanda.
Com dois meses de operação e cerca de R$ 1 milhão captado com investidores-anjo, a Fertilid comercializa auto-exames de fertilidade. Por R$ 360, o kit chega na casa da paciente, que coleta uma amostra de sangue (uma picadinha como nos testes de diabetes) e a envia pelos Correios – a empresa também oferece a logística de retorno. Então, a startup, em parceria com laboratórios, gera um relatório que informa sobre reserva ovariana, características do ciclo menstrual e saúde dos ovários. A mulher também pode agendar uma consulta com especialistas da plataforma da Fertilid caso queira saber mais sobre o resultado.
Gestação
Comparadas a outras startups, inclusive dentro do segmento de saúde, as femtechs brasileiras ainda estão em estágio embrionário. Elas são consideradas um segmento dentro de healthtechs e recebem investimentos menores: os aportes no ramo estão nos níveis de investimento-anjo e semente, que são os primeiros cheques na vida de uma startup. Para especialistas, porém, o sucesso de femtechs em outros países está jogando luz sobre esse mercado no Brasil.
Em agosto, uma femtech atingiu pela primeira vez o status de unicórnio (avaliação de mercado superior a US$ 1 bilhão) nos EUA. A startup Maven, que funciona como uma clínica digital para gravidez e fertilidade, alcançou a marca depois de receber um cheque de US$ 110 milhões – a rodada contou com a participação de celebridades como a apresentadora Oprah Winfrey. Segundo uma pesquisa do fundo Rock Health, focado em saúde digital, o total de aportes em femtechs no mercado americano cresceu 105% em 2020, chegando a US$ 418 milhões investidos.
“Esse crescimento mundial está relacionado ao fato de mais mulheres estarem empreendendo. Ao criar um negócio, é natural que você olhe mais para os problemas que te afetam diretamente”, explica Fabiany Lima, fundadora da empresa de investimentos DiliMatch.
No Brasil, os obstáculos estão relacionados principalmente à mentalidade dos investidores. Para Rafaela Bassetti, presidente executiva do hub de investimentos Wishe, os fundos muitas vezes têm uma análise míope de que serviços para mulheres não são mercados grandes porque dividem o público pela metade. “Existe um pensamento de que uma startup só vai ser o unicórnio se atender 100% da população”, diz. As empreendedoras sentem essa desconfiança na pele. “Grande parte dos investidores homens diz que é um serviço nichado. Mas como um serviço que tem como público mais da metade da população mundial pode ser pensado como nicho?”, questiona Flávia, da Theia, que é mãe de dois meninos.
Para destravar o crescimento, a chave, dizem os especialistas, é apoiar as empreendedoras. Agentes do ecossistema nacional já estão se movimentando: a Wishe, que é focada em investimentos em startups lideradas por mulheres, está trazendo para a empresa uma nova sócia, Raquel Horta, com experiência no setor de femtechs – o plano é fazer do hub uma peça de consolidação e impulsionamento desse mercado.
“Os grupos que estão mais antenados com os movimentos fora do Brasil já entenderam a oportunidade. Quem investir primeiro vai se dar melhor”, afirma Rafaela.