Até bem pouco tempo atrás, a abertura de capital (IPO) de uma startup significava que a empresa tinha passado por diversos estágios de crescimento até atingir alto grau de maturidade, que convidava investidores a embarcar na compra de ações, o que, ao final, resultava na listagem em Bolsas. Um processo batizado de SPAC (sigla em inglês para “companhia com propósito especial de aquisição”) tem invertido essa lógica: os investidores primeiro levantam o dinheiro, fazem a listagem de uma empresa sem ativos na bolsa e depois correm atrás de candidatos para serem adquiridos e ocuparem o posto de empresa de capital aberto. Agora, esse novo modelo começa a olhar para startups brasileiras, deixando um rastro de perguntas sobre o seu impacto.
Conhecidas como “IPO do cheque em branco”, as SPACs foram a queridinha do mercado americano durante a pandemia de covid-19 por causa da instabilidade nas economias, fazendo com que a abertura de IPOs fosse adiada ou até mesmo cancelada. Mas, em cenário de juros baixos em todo o mundo, os investidores precisavam buscar opções de rentabilidade.
O boom nos EUA está nos números. Segundo dados do centro de inovação Distrito, as SPACs no território americano saíram de 59 em 2019 para 248 em 2020. Até abril de 2021, foram 308, com US$ 26 bilhões de recursos captados somente em janeiro deste ano.
No Brasil, o cenário ainda é tímido (não existem ainda SPACs nacionais), mas as nossas startups podem entrar logo na mira de investidores estrangeiros, que começam a voltar seus olhos para o ecossistema da América Latina. Há pelo menos oito empresas que já afirmaram que irão se fundir com uma startup da região. Entre os destaques está o Softbank, que nos últimos anos investiu nas principais startups brasileiras. Nomes como Patria, Itiquira e Waldencast também aparecem na lista. Juntos, esses fundos somam até US$ 2 bilhões em ativos no território latinoamericano.
O nome mais novo a se juntar à turma é o tradicional fundo de investimento Valor Capital, que formou no último dia 4 de maio uma SPAC na Nasdaq, uma das bolsas dos EUA. Listada como VLATU e chamada de Valor Latitude Acquisition Corp, essa empresa tem US$ 200 milhões iniciais para desembolsar. E a startup escolhida deverá vir do Brasil, conta ao Estadão Mario Mello, presidente executivo da iniciativa.
“Estamos atrás de empresas brasileiras em estágio pré-IPO no segmento de educação, fintechs, logísticas ou e-commerce”, declara Mello. É uma pista importante sobre quais setores devem ser contemplados. Pouca gente se arrisca a cravar os nomes das candidatas brasileiras a SPACs, mas finanças, logística e comércio eletrônico são áreas que reúnem as maiores startups brasileiras, incluindo alguns unicórnios (empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão). Além disso, saúde e educação, que cresceram bastante na pandemia, estão no radar.
Fontes do mercado avaliam que há, pelo menos, 20 startups candidatas para futuros SPACs — e há uma boa possibilidade de a modalidade funcionar como uma espécie de berçário de unicórnios nacionais. Os próprios investidores, porém, não demonstram pressa para apontar nomes. “Pela regra da SPAC, temos dois anos para fazer a aquisição e todos os passos de governança, validação e auditoria dessa empresa,” explica Mello.
Nova opção de financiamento
Embora possam parecer rivais, a SPAC não vem para substituir os IPOs. Há quem prefira manter o processo tradicional, como foi o caso recente da GetNinjas no Brasil. Ao contrário, o “IPO do cheque em branco” é visto como um modelo adicional de impulsionamento para as startups.
“O SPAC é uma complementaridade que vem em um momento de amadurecimento do mercado”, aponta Mello. Há três anos, diz ele, o mercado brasileiro era incipiente demais para suportar uma operação desse tipo.
“Estamos de 5 a 10 anos atrás do mercado americano, então somente agora nossas empresas de tecnologia têm tamanho para abrir capital depois da onda de financiamentos por venture capital”, explica Marcelo Sato, sócio do fundo de investimento brasileiro Astella.
“Hoje, uma startup em estágio avançado tem três caminhos para seguir: ir para a Bolsa, ser alimentada por um fundo de investimento ou ser comprada por um concorrente”, explica Sato. A SPAC é um corta-caminho para esse processo, pois une um pouco das três modalidades. “Feita a SPAC, a startup fica independente como controladora da companhia e tem acesso ao mercado público de capitais, que é muito maior que o de um fundo de investimento.”
Para a startup que é absorvida pelo modelo, a SPAC pode oferecer vantagens. O alvo da aquisição já recebe uma estrutura pronta para ser listada em bolsa, ao contrário do IPO, que pode levar até três anos para ser finalizado. Após a fusão, a SPAC tem até três meses para concluir a operação.
“É uma opção mais fácil e menos cara do que o IPO, que é um processo demorado e mais caro porque depende de janelas de mercado e de cumprir previsões dos investidores”, explica Karina Almeida, coordenadora de advocacy da Endeavor. “As SPACs são menos burocráticas.”
Desafios no Brasil
Apesar de nossas startups chamarem atenção, o grande empecilho é a falta de regulamentação do modelo por aqui — sequer há um nome em português para esse tipo de empresa. Isso depende da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autoridade nacional que regula o mercado financeiro.
Desde março passado, a CVM faz uma consulta pública sobre a regulamentação das SPACs, com previsão de fim em julho próximo. Em seguida, a autoridade irá trabalhar em cima do assunto, o que deve tomar mais alguns meses até que o projeto esteja pronto para entrar em vigência.
“Estimo que leve ao menos um ano para o fim da regulamentação desse assunto no Brasil”, calcula a vice-presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), Ingrid Barth. Até lá, a consequência mais direta é ver as startups sendo listadas em bolsas americanas, em busca de oportunidades no curto prazo. “Se o ponto para essas empresas for o tempo, hoje é melhor ser listado nos EUA, mas mercados estrangeiros são mais complexos porque têm a variação cambial, o que deixa a captação mais difícil.”
Para Karina, da Endeavor, a CVM está em um timing correto. “Ter essa audiência pública é bem positivo para o ecossistema e devemos olhar para esse tipo de ativo no mercado local. Agora é um ótimo momento”, diz.
Em nota, a B3, o agente mais interessado em manter as empresas brasileiras em território nacional, afirma que acompanha o tema e que a audiência pública proposta pela CVM reforça a importância do assunto.
“O Brasil tem a oportunidade regulatória de construir esse arcabouço legal para as SPACs, mas o País ainda não fez essa lição”, aponta Mello, do Valor, fundo que está há 10 anos no mercado brasileiro e foi responsável por ter investido em grandes nomes nacionais, como Gympass e Stone.
Até lá, o jeito é ficar de olho nos mercados estrangeiros, que devem concluir as fusões de suas SPACs brasileiras nos próximos 18 meses. A seguir, cenas dos próximos capítulos.