Dados garantem dinheiro e poder às gigantes da tecnologia – e essa é uma realidade que a startup DrumWave tenta mudar. Fundada em 2015, na Califórnia, EUA, pelo colombiano Santiago Ortiz e pelos brasileiros Alberto Blumenstein e André Vellozo, a empresa quer que as pessoas tenham controle para monetizar as próprias informações.
A empresa trabalha em uma “carteira digital de dados” (chamada de dWallet), na qual as informações podem ser negociadas com empresas. A tese é de que isso daria ao indivíduo o poder de obter informações coletadas pelo Facebook, ou de qualquer outro serviço digital, e vendê-las para terceiros.
Em um exemplo dado pela startup, um bebê recém-nascido poderia alimentar a própria poupança com os dados gerados ao longo da vida, chegando à idade adulta com informações armazenadas completas o suficientes para quitar um curso em uma faculdade privada. Não há precificação exata ainda, mas a DrumWave acredita que o mercado ditará os valores com base no perfil do consumidor e do que as empresas irão oferecer pelos dados.
A ideia tem seus entusiastas fora do escritório da DrumWave. Luiz Felipe D’Avila, pré-candidato do Novo à presidência da República, deverá propor um programa de renda mínima para 20 milhões de brasileiros a partir da ideia de que as pessoas poderão monetizar seus dados.
“Nosso negócio trata de propriedade sobre os dados, e não apenas de privacidade”, diz o fundador André Vellozo ao Estadão. A startup prevê que esse mercado valerá cerca de US$ 1,8 trilhão — para ele, sai na frente a empresa que souber manusear o maior número possível de informações dos clientes. “Após as revoluções do PC, da internet e do smartphone, estamos vivendo hoje a revolução dos dados.”
Comandada por Fernando Teles (ex-executivo da Visa no Brasil), a DrumWave, que recebeu US$ 12 milhões em investimento semente em 2018, tem o apoio de ex-executivos de grandes empresas como T-Mobile (Cody Sanford), Pixar (Lawrence Levy), Intel (Faruq Ahmad) e Itaú (Roberto Nishikawa e João Bezerra) – além de Scott McNealy, fundador da Sun Microsystems.
Até então atuando como prestadora de serviços na área de manipulação de dados para companhias, o plano da startup é mudar de rumo e colocar a dWallet no ar até outubro de 2022, quando já espera ter parceiros do setor bancário e de outras áreas prontos para negociar os dados com clientes — a DrumWave afirma que busca por companhias que tenham milhões de clientes na base de usuários. A operação deve começar no Brasil, onde está incubada atualmente, e ser acelerada nos Estados Unidos, onde espera que o produto ganhe escala.
Web 3.0
A empresa opera de olho na Web 3.0, conceito que diz que a próxima geração da internet será descentralizada e menos dependente das estruturas de empresas gigantes de tecnologia. No modelo, por exemplo, um smartphone não precisa passar pelos servidores da Amazon para se comunicar com outro dispositivo. A conexão passa a ser direta entre dispositivos, algo que lembra, por exemplo, os antigos serviços peer-to-peer (P2P) para baixar músicas, como o Napster.
A descentralização da rede estaria apoiada na tecnologia blockchain, que compartilha a infraestrutrua e comunicação entre todas as máquinas que fazem parte da rede. Ao não depender das gigantes da tecnologia (algo que acontecia na Web 2.0), os dados gerados na rede não ficariam confinados e poderiam ganhar valor nas mãos dos usuários - o serviço da DrumWave funcionaria como um local para armazenar os dados gerados em diferentes pontos da internet e uma espécie de ponto de acesso para todos os interessados em explorar esses dados.
A Web 3.0 é um formato bastante discutido no Vale do Silício e tem apoiadores como Tim Berners-Lee, o criador do protocolo da Web 1.0 e “pai da web”. Por outro lado, Elon Musk, fundador da Tesla, e Jack Dorsey, cofundador do Twitter, já criticaram o modelo e questionaram os interesses por trás da proposta de descentralização.
Modelo enfrenta resistência
A proposta de permitir que pessoas monetizem diretamente os seus dados deve enfrentar também resistência de defensores da privacidade na internet e ser alvo de muito debate na próxima década, apontam especialistas.
“Existem impedimentos em três níveis para transformar o dado em mercadoria que possa ser vendida ou licenciada”, explica Rafael Zanatta, diretor executivo da Data Privacy Brasil. “O primeiro é a decisão do Supremo Tribunal Federal do caso do IBGE, de 2020, que diz que a proteção de dados pessoais deriva dos direitos da personalidade, o que, segundo o Código Civil, significa que esses não são recursos alienáveis”. Zanatta refere-se ao julgamento de maio de 2020, quando o plenário referendou a liminar que impedia que operadoras telefônicas compartilhassem dados pessoais de seus clientes com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O segundo nível de impedimento, segundo o especialista, está na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que diz os dados pessoais são um direito fundamental atrelado à personalidade - um artigo inspirado em uma decisão de 1983 do Tribunal Federal de Justiça da Alemanha não permitiu que os dados da população local, obtidos pelo censo, fossem utilizados para outros tipos de pesquisa.
Em outras palavras, tanto para o STF quanto para a LGPD, os dados pessoais estariam mais próximos a um órgão do corpo humano, que não pode ser explorado comercialmente, do que a um bem de consumo. E esse é entendimento visto em outros países. A constituição do Estado da Califórnia, por exemplo, considera a privacidade um direito inalienável.
Para contornar isso, o pré-candidato do Novo deverá propor uma nova legislação, batizada, por enquanto, de “Lei Geral de Empoderamento de Dados”.
Para além do debate jurídico, a discussão deve ganhar corpo também do ponto de vista social. “A terceira camada é a justiça social: se você cria um mercado de comercialização dos próprios dados numa profunda situação de desigualdade como a nossa, você vai transformar pessoas em objetos de perfilização em troca de migalhas. Isso acentua as desigualdade, criando uma pequena elite com seus direitos de privacidade assegurados”, diz Zanatta.