Há pouco mais de um ano, uma nova categoria de produtos apareceu nos supermercados do País, tentando conquistar o paladar dos brasileiros: hambúrgueres que imitam carne, mas são feitos à base de vegetais, maionese sem ovos ou leite feito à base de ingredientes como chicória e abacaxi. Estabelecido por startups que misturam algoritmos com engenharia de alimentos, o mercado plant-based (“à base de vegetais”, em tradução literal) pode ainda não ser a primeira opção à mesa de muita gente, mas já dá água na boca de investidores a fim de escrever cheques milionários. Nesta quarta-feira, 9, mais um deles vem à tona: um aporte de US$ 85 milhões na chilena NotCo, que vende seus produtos no Brasil desde abril de 2019.
Liderado pelos fundos L-Catterton (ligado ao grupo LVMH, de marcas como Louis Vuitton e Moet Chandon) e Future Positive, do cofundador do Twitter Biz Stone, o aporte reforça uma onda importante para as empresas do setor. Durante a pandemia, as startups “vegetais” cresceram bastante, por conta de uma combinação de fatores e mudanças de comportamento – como o hábito de cozinhar em casa, a busca por alimentos saudáveis ou novas dietas, além da preocupação com a cadeia de produção de carne e produtos de origem animal, seja ela sustentável ou ética.
“É um movimento que vem antes da pandemia, mas cujo cenário joga a favor do plant-based”, afirma Sérgio Molinari, presidente da consultoria Food Consulting. E o mercado só deve crescer: a expectativa da consultoria CB Insights é de que a categoria plant-based global chegue a US$ 2,7 trilhões em 2040. Além do aporte na NotCo, outro investimento recente no setor chama a atenção: o cheque de R$ 115 milhões recebido pela Fazenda Futuro na última semana, em aporte liderado pelo BTG Pactual.
Faz de tudo
Com os recursos do aporte, a chilena NotCo pretende acelerar sua expansão no País. “Hoje, o Chile é o nosso maior mercado, mas a ideia é que o Brasil tome esse posto até o final de 2021”, diz Luiz Augusto Silva, gerente geral da NotCo no Brasil. Para isso acontecer, a empresa aposta em três frentes. Uma é a expansão nacional, com foco nas regiões Norte e Nordeste, onde ainda não está presente de forma ampla. Outra são contratações: até o fim do ano, a empresa pretende ter 60 pessoas em seu time no País – começou o ano com 20. Lá fora, são 200 funcionários, que devem virar 300 até o início de 2021.
Além disso, a empresa aposta em seu portfólio de produtos: além do já tradicional hambúrguer, a NotCo também tem maionese, leite e sorvete cujas receitas são de origem 100% vegetal. Todos são criação de Giuseppe, um algoritmo que usa dados nutricionais, moleculares e sensoriais sobre milhares de plantas e animais para chegar a fórmulas – o NotMilk, o leite da empresa, inclui ingredientes como chicória e abacaxi. “O potencial do Giuseppe para criar novos produtos é enorme, mas precisamos entender oportunidades de mercado”, diz Silva.
Além de criar, Giuseppe também aprimora receitas, adaptando para a indústria de alimentos uma prática da área de tecnologia: as atualizações de software. Segundo Silva, até o final do ano, a NotCo pretende lançar novos sabores de sorvete no Brasil e colocar o hambúrguer à venda no varejo – hoje, ele está apenas em um único restaurante, o WhyNot.
Aberto apenas para refeições por entrega em São Paulo, o estabelecimento foi criado pela chilena ao perceber que, durante a quarentena, não podia mais contar com um dos pilares de sua estratégia: a experimentação dos produtos em mercados. “Sabemos que as pessoas precisam testar o que fazemos, o restaurante virou uma opção. Mas no primeiro mês, nós vendemos quatro vezes mais do que esperávamos”, diz Silva. “Talvez faça sentido ter mais restaurantes da WhyNot em outras cidades por aí promovendo a experiência, com hambúrgueres e milk shakes.”
O investimento na NotCo anunciado nesta quarta tem ainda uma última função: preparar a empresa para entrar no mercado americano. “Os EUA são um país com 300 milhões de pessoas e renda per capita alta. É o maior mercado consumidor do mundo e para quem é companhia de consumo, é um caminho de amadurecimento ir para lá”, diz Silva. Não à toa, a escolha dos investidores desta rodada se pautou para essa expansão.
Na carne
Quem também está ensaiando seus primeiros passos nos EUA é a Fazenda Futuro, de Marcos Leta, criador dos sucos Do Bem. “O Brasil é um dos maiores produtores de vegetais do mundo e queremos, com tecnologia, agregar valor a isso. Nossa marca pode viajar o mundo”, diz o executivo. “Já estamos na Europa e vamos entrar nos EUA como Future Farm até o final do ano. Provavelmente, em 2021 vamos precisar de um novo aporte para focar nessa operação.”
Segundo ele, a concorrência com empresas estabelecidas nos EUA – como as pioneiras do mercado Impossible Foods e Beyond Meat – não intimida. “As empresas de lá são avançadas também, mas vamos competir com execução: conseguimos chegar com produto 30% mais barato nos EUA, porque o Brasil tem produção grande de vegetais. Além disso, temos produção própria e o câmbio está a nosso favor”, afirma Leta. Ao contrário da NotCo, porém, o negócio da Fazenda Futuro é mesmo a carne. “Hoje temos hambúrguer, carne moída, almôndega e linguiça. Estamos trabalhando constantemente para o consumidor não perceber a diferença entre uma carne vegetal e uma animal”, diz.
Quem vai na mesma linha e disputa seu espaço no mercado da carne vegetal é a New Butchers, que recebeu em julho um aporte de investidores-anjo – entre eles, Paulo Veras, cofundador da 99. Até o fim do ano, a empresa também busca captar uma nova rodada de investimentos, a fim de capitalizar sua expansão. Segundo Bruno Fonseca, presidente executivo da startup, o aporte recente pode ajudar a empresa a ampliar sua capacidade de produção – com fábrica própria, a empresa espera conseguir gerar até 80 toneladas de carne vegetal por mês em dezembro de 2020.
A startup paulistana também tem apostado em novos produtos: foi a primeira empresa brasileira a experimentar uma imitação de frango e, nesta semana, colocou à venda na rede Pão de Açúcar sua versão de salmão, feito à base de ervilhas. “Carne de soja é algo que existe há muito tempo, mas a ervilha é nosso diferencial”, diz o executivo. Uma bandeja com dois filés, somando 180 gramas, sai por cerca de R$ 25. Para Fonseca, o fato de sua empresa ter menos fundos que suas colegas “vegetais” não é um problema. “Ao contrário do mercado de tecnologia, nesse mundo não há a regra do ‘vencedor que domina o mercado’. Há um trabalho de construção que todos fazemos, nossos rivais são os frigoríficos.”
Jogo da imitação
A questão da semelhança quanto aos produtos de origem animal talvez seja, ao mesmo tempo, um dos maiores trunfos e desafios das startups plant-based. De um lado, imitar carne ou sorvete pode ajudar a converter o consumidor que não pretende virar vegetariano, mas almeja reduzir o consumo de proteína animal – seja por questões éticas, sustentáveis ou de saúde. No entanto, a diferença ainda bastante perceptível pode ser um entrave, seja aqui ou lá fora, para a evolução dessas empresas.
Para Sérgio Molinari, presidente da consultoria Food Consulting, uma interrogação no futuro deste mercado é o quanto as atualizações constantes dos produtos podem seguir sendo feitas. “No último ano, a evolução da imitação de carne foi enorme, mas a reação hoje ainda é mais de uma lembrança do que uma constatação de que produto é igual à carne. Talvez não chegue tão cedo a ser”, diz.
Na visão de Silvio Laban, há outros empecilhos no mercado – muitos deles relacionados à escala de produção e, consequentemente, ao preço dos produtos nas prateleiras. “A maioria dos produtos de substituição vegetal ainda é mais caro que o produto normal. É um desafio de escala e também de tributação”, diz.
É algo que faz parte dos pensamentos de Silva, da NotCo. “O Brasil tem definições tributárias específicas para produtos que não comportam a gente. Nossa maionese, por não ter ovo, tem imposto diferente de outras”, afirma o executivo. Segundo ele, as questões tributárias podem inclusive influenciar em que produtos chegam primeiro às prateleiras dos supermercados.
As atualizações, no entanto, também podem servir como um fator de contínua redescoberta do mercado, na visão de Molinari. “O mercado plant-based não tem produtos finais já existentes. Ele avança e cresce ao mesmo tempo em que os produtos são desenvolvidos e melhorados, em conjunto com o hábito do consumidor.”