Com informações fragmentadas e muitos processos burocráticos, a indústria da música caminhou lentamente para garantir a organização, o monitoramento e o pagamentos de direitos autorais aos seus detentores. A pandemia tornou o tema urgente: músicos e artistas viram os shows, sua principal fonte de receita, desaparecerem, e tiveram de recorrer a fontes de dinheiro antes secundárias. Para tentar ajudar esses artistas e destravar o setor, uma nova geração de startups repete, de certa forma, a pergunta feita por Silvio Santos durante vários domingos: Qual é a música?
Fundada em 2020 pelo advogado Mauricio Kavinski, a curitibana LA Music utiliza algoritmos para tentar identificar se autores têm valores a receber por execuções de suas músicas em rádios, programas de TV, shows e até lives. O caminho do dinheiro entre quem usa uma música, como uma rádio ou um programa de TV, é complexo.
Os direitos autorais pela execução pública de uma música são recolhidos e pagos pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Quem utiliza as obras, deve fornecer uma lista com título e autor da canção ao órgão – essas informações são cruzadas com os bancos de dados do Ecad, que repassa os pagamentos para as associações de autores. Posteriormente, essas instituições disponibilizam o dinheiro aos donos dos direitos.
Quando existe erro no preenchimento de cadastros, o dinheiro não chega. Os valores de canções com informações inconsistentes ficam reservados em um fundo, conhecido por “créditos retidos”, aguardando que o autor se manifeste. Porém, esses créditos expiram e, uma vez por ano, o Ecad distribui proporcionalmente os retidos para toda a rede de autores com informações regularizadas.
O que a inteligência artificial (IA) da LA Music faz é vasculhar a base de dados do Ecad em busca de dinheiro que os autores têm a receber. “O Ecad arrecada anualmente R$ 1 bilhão, mas 20% disso acaba nos retidos. É muito comum que autores percam valores”, diz Kavinski.
É um problema histórico do setor, apontam especialistas. “Os principais problemas desse segmento da indústria da música são a fragmentação de bancos de dados e os erros nos cadastros”, explica Monyca Motta, advogada especialista em direitos autorais. É uma questão que tende a se aprofundar com a popularização do streaming.
Direito digital
Ao contrário do que é feito por rádio, TV e casas de shows, as plataformas de streaming não pagam direitos conexos – existe uma discussão jurídica sobre o tema. O vácuo regulatório sobre a principal forma de consumir música dos tempos atuais permitiu o surgimento de startups também focadas nos direitos originados ambiente digital.
Atualmente, plataformas como Spotify e Deezer pagam os direitos autorais para as distribuidoras de música, que repassam os valores para selos e gravadoras – elas, então, distribuem o dinheiro aos detentores dos direitos. Fundada em 2018 pelo músico Guilherme Sampaio, a startup carioca Smart Rights tem uma plataforma que permite a arrecadação e gestão dos direitos autorais com origem nas plataformas de streaming. A IA da Smart Rights trabalha junto de empresas como Spotify e Deezer para encontrar valores devidos e distribuí-los.
É um sistema que não apenas garante que o dinheiro chegue aos donos dos direitos como acelera os pagamentos – com menos intermediários, o dinheiro tende a caminhar com mais velocidade. A plataforma funciona para artistas independentes e selos, que podem fazer repasses quase em tempo real para todos os outros detentores. “Comecei a estudar tecnologia porque passei por todos esses trâmites quando fui lançar um disco em 2003”, conta ele.
A também carioca Orb Music também atua no segmento. Uma das principais apostas da empresa é o seu aplicativo para gerar números de ISRC – o número que identifica cada música e permite o pagamento de direitos atrelados a ela. Para lançar uma música em CD ou em outras mídias físicas, o número é obrigatório. Ele, porém, não é exigido para lançamentos feitos nos meios digitais, o que resulta numa enorme massa de obras sem identificação – algumas distribuidoras tentam contornar isso com geração automáticas de ISRC quando a música sobe nas plataformas, o que é visto por especialistas na área como uma “gambiarra”.
“Hoje, no Brasil, são carregadas cerca de 2.000 músicas por dia nas plataformas de streaming. 80% delas não tem ISRC”, explica Daniel Campello, fundador da Orb. O app da empresa gera de forma simples o número. Com o ISRC, as músicas podem receber direitos autorais.
Sobre essas empresas, o Ecad, que faz o recolhimento dos direitos autorais no Brasil, diz: " O mercado da música tem espaço para novas empresas, mas o trabalho da gestão coletiva, composta pelas sete associações de música já está consolidado no Brasil e possui mecanismos de identificação de músicas para solucionar os créditos retidos". Para o órgão, algumas iniciativas mencionadas até aqui já são atendidas pela gestão coletiva atualmente.
Primeiros acordes
O arrecadamento e distribuição de direitos autorais é uma porta de entrada para outros serviços e modelos de negócios. A Smart Rights, por exemplo, usa blockchain, a mesma tecnologia usada por moedas digitais como o bitcoin, para cadastrar as obras. Isso permite o registro das transações dos direitos, além de permitir que as porcentagens de cada titulardas obras fiquem livres de adulterações.
“Direito autoral é dinheiro. O blockchain permite ver as porcentagens e quando essas informações entraram no sistema. É uma ferramenta que permite realizar auditorias”, explica Sampaio.
Já a LA Music consegue enxergar não apenas o direito autoral como dinheiro, como já imagina implementar alguns serviços financeiros que lembram os de financeiras. “No plano para 2021, teremos um serviço de IA que estimará os valores de retidos no Ecad e que permitirá a antecipação de valores para os compositores”, explica Kavinski. Segundo ele, a empresa está monitorando artistas com valores atraentes para propor acordos - inclusive para a compra de direitos autorais.
Lá menor
Embora atuem em um segmento com oportunidades claras, essas startups enfrentam desafios para se tornarem atraentes para investidores. “O tamanho do mercado é um problema. Investidores buscam segmentos que possam trazer retorno alto”, explica Cassio Spina, presidente e fundador da Anjos do Brasil. “O investidor fica com cerca de 20% do potencial de mercado – o direito autoral é um segmento pequeno quando comparado a outros”.
“Em números, temos dificuldade de nos compararmos com outros mercados”, afirma Campello. “Em tese, outros segmentos estão criando demanda nova. Teoricamente, isso não existe com a música. O potencial, porém, é enorme: no mundo todo, apenas 250 milhões de pessoas pagam serviços de streaming. É possível crescer”, diz.
Assim, a nova geração de startups de música é pequena. As empresas foram criadas com recursos dos próprios fundadores – nenhum dos investimentos supera R$ 1 milhão. A Orb, por exemplo, tem uma equipe de 25 pessoas – é a maior entre as entrevistadas, mas é pequena quando comparado a outros tipo de startups, como fintechs.
Spina, porém, vê alternativas para expansão. “Uma opção para as startups brasileiras seria expandir internacionalmente. Mas, a questão seria: a tecnologia delas seria inovadora ao ponto de roubar espaço de concorrentes internacionais?” A resposta é complexa. A Smart Rights, por exemplo, tem clientes estrangeiros que querem receber direitos de suas obras executadas no Brasil – a lei de direito autoral do País cria fontes de receita que não existem fora. Porém, ainda não é possível saber se isso pode se tornar tendência.
Com potencial para transformar onde atuam, as startups de música no Brasil se parecem com boas bandas independentes: estão à espera de um grande hit para emplacar a carreira.