Com juros baixos, câmbio alto e ambiente amadurecido para receber tecnologia, o Brasil tornou-se em 2021 um grande porto de startups estrangeiras, recebendo nomes de países como México, Colômbia e Chile. Em 2022, porém, os ventos mudaram, forçando essas empresas de tecnologia a desacelerar os investimentos em território brasileiro.
Um dos principais exemplos de que os tempos são outros é a mexicana Kavak, especializada em compra e venda de automóveis seminovos. Maior unicórnio da América Latina (avaliada em US$ 8,1 bilhões em setembro de 2021), a companhia desembarcou no Brasil com sonhos ambiciosos — a ideia era investir R$ 2,5 bilhões no País. Após abrir lojas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte e tornar-se patrocinadora da Seleção Brasileira de Futebol, foram dispensadas 300 pessoas desde março, segundo apurou o Estadão. Procurada, a companhia não quis comentar o assunto.
Também um unicórnio mexicano, a Bitso, do mercado de criptomoedas, demitiu 80 pessoas globalmente, inclusive no Brasil, onde tem operações desde há um ano, declarou a startup, que não explica quantos desses são funcionários brasleiros. Em março, a americana Domestika, de cursos online, enxugou as operações por todo o mundo, resultando em 40 cortes no Brasil (200 em todo o mundo), segundo apurou o Estadão.
Já a peruana Favo, que atua como supermercado online, encerrou por completo as operações no Brasil no início de junho — foram desligadas 171 pessoas. Em publicação no LinkedIn, a cofundadora Marina Proença anunciou que a startup pode voltar às operações no País, mas nada está firmado por enquanto.
Tempos difíceis
Por trás da desaceleração, estão os mesmos fatores que assombram as startups brasileiras. O cenário de crise macroeconômica global de alta nos preços e consequente aumento dos juros (desencadeados pela retomada pós-covid e pela guerra na Ucrânia) assusta investidores e torna o capital mais caro para levantar cheques em startups. Para essas empresas, crescer ficou mais difícil — e isso significa muitas vezes frear movimentos de expansão internacional.
Para especialistas, além dos desafios no cenário macroeconômico, o Brasil apresenta cenário desafiador para empresas estrangeiras que chegam aqui pela primeira vez. A alta competição no ambiente de inovação exige dinheiro para conquistar terreno.
“É preciso investir muito capital aqui. Somos um país caro para dominar”, observa Pedro Carneiro, sócio da ACE. “Com as mudanças no cenário global, essas startups perdem capacidade de financiamento e fazem desinvestimentos.”
Felipe Matos, presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), observa que outras empresas estrangeiras também abandonaram o Brasil: a americana UberEats e a espanhola Glovo, do ramo de entrega de refeições de restaurantes — ambas atribuem a concorrência pesada com a brasileira iFood e a colombiana Rappi, que dominam o mercado local.
Além delas, a espanhola Cabify, plataforma de corridas de carros, saiu do País no ano passado, culpando a lenta retomada da pandemia no Brasil, embora especialistas apontem que a startup não conseguia competir de frente com o Uber e a 99.
“Essas saídas dizem mais sobre as startups do que sobre o Brasil, porque muitas que saíram não eram as líderes em seus mercados. Elas tentaram se consolidar e não conseguiram”, explica Matos. “No momento em que temos uma crise, empresas de operação global cortam onde não são eficientes e podem rever a operação no Brasil.”
Para o empreendedor brasileiro, talvez isso signifique um respiro. No caso da Kavak, por exemplo, a concorrente direta é a brasileira Creditas, enquanto a Bitso tem no Mercado Bitcoin um rival de peso (que também demitiu no mês passado).
Carneiro aponta que “está mais fácil para o empresário brasileiro atuar no Brasil”. Segundo ele, a competição de investidores e empreendedores estrangeiros está menor com a escassez de capital. “Quem empreende no Brasil conhece os desafios locais e é uma vantagem competitiva para quem está aqui”, diz. “Como tradição, somos mais comedidos com dinheiro e aprendemos a nos virar com pouco.”
Atratividade
A aposta dos especialistas é que, mesmo com o mar revolto, o Brasil continue a ser um território estratégico para a expansão de startups latinoamericanas. O mercado é visto como o lugar certo para conquistar mercado, testar soluções e atingir novos consumidores.
“O fato de o Brasil ter nível baixo de produtividade e muita ineficiência significa que temos muito espaço para adotar tecnologia”, explica Matos, da Abstartups. “Ainda estamos muito melhores do que antes da pandemia. Este é um momento apenas de correção de rumo do setor.”
O que ninguém sabe, porém, é até quando deve durar o momento de tormenta.