Startups ‘queimadoras de caixa’ são minoria no Brasil, diz sócio do fundo Canary


Gestora brasileira, que investiu em Loft e Gupy, defende que País tem empreendedores acostumados a viver em períodos de escassez de capital

Por Guilherme Guerra
Entrevista comMarcos ToledoSócio do fundo de investimento brasileiro Canary

Após milhares de demissões ao longo de 2022, a visão de que os fundadores de startups são irresponsáveis predominou no mercado de inovação. Contratações de centenas de funcionários ao mês e expansões internacionais tidas como precoces, observadas principalmente no biênio de 2020 e 2021, deram a impressão de que esse era o perfil de todo “startupeiro gastador”. Para o fundo brasileiro Canary, porém, esse empreendedor é minoria e, no País, o perfil desse gestor é mais cauteloso do que o americano ou europeu.

“Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil, e nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé”, afirma ao Estadão um dos sócios da Canary, Marcos Toledo. No portfólio de empresas investidas, a gestora tem Loft, Gupy, Buser, Alice e Pier, entre outros.

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Marcos Toledo é um dos sócios do fundo brasileiro Canary, responsável por investir em nomes como Loft, Gupy e Buser Foto: Alex Silva/Estadão - 15/12/2022

Segundo Toledo, o período de alta liquidez de capital no Brasil durou pouco menos de um ano, e isso não foi suficiente para que fossem criadas as “startups queimadoras de caixa” que se vê no exterior. “Os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de ‘vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro’”, rebate.

Ainda assim, o sócio da Canary, nascida em 2016, prega cautela e defende que sejam feitas as correções necessárias para manter as startups de pé durante esse período de alta global dos juros, que corrói o apetite por risco do investidor tradicional. “Ninguém falou que a jornada de uma startup seria um mar de rosas”, diz.

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Abaixo, leia trechos da entrevista ao Estadão:

Quais são os elementos que caracterizam a crise nas startups em 2022?

É uma crise, sim, mas não é inerente ao mundo de startups da América Latina. É global e veio da inflação nos países desenvolvidos, de uma guerra, o que era meio impensável há uns anos, e questões geopolíticas referentes aos lockdowns na China. Isso pressiona os preços de energia e o movimento de mercadorias pelo mundo, o que aumenta ainda mais a inflação. É um mosaico de coisas que afetam o nosso mundo, da tecnologia. Nós vivemos anos de alta liquidez no mundo inteiro, e agora há menos propensão à tomada de risco, portanto, menos capital disponível para financiar a inovação.

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Sempre foi dito que o setor da tecnologia é resiliente a choques. A crise escancara essa fraqueza?

São negócios mais resilientes, sim, porque têm margens altas e custo de produto ou de serviço muito baixo. A questão aqui é que as pessoas misturam empresas que estão nascendo, que é onde atuamos aqui no Canary, com aquelas quase na abertura de capital (IPO), com milhares de funcionários. A resiliência que a gente percebe está na qualidade das pessoas empreendendo ou montando negócios, que continua muito alta.

Existe por aí uma narrativa incorreta de que havia muitas startups bancadas por fundos de venture capital que não tinham um modelo de negócio sustentável, ou seja, que não parava de pé. E essa narrativa diz que, agora que entramos numa crise, a torneira do capital foi fechada e essas empresas vão quebrar. Concordamos que isso é verdade e que existem empresas assim no mundo inteiro, mas nossa percepção é de que essas startups são minoria. Nosso argumento é que os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de “vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro”. Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil. Nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé. Para o País, o período de liquidez de capital (entre 2020 e 2021) foi supercurto, de 6 a 10 meses.

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Nosso empreendedor é mais preparado para crises que o americano ou europeu, então?

Talvez ele saiba fazer ajustes mais rápido. No pré-crise, ficávamos discutindo que os negócios nasciam muito preocupados com a sustentabilidade, o que pode ser ruim em épocas de bonança, já que pode segurar o crescimento da empresa.

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A resposta rápida dos nossos ‘unicórnios’ à crise que se formava no primeiro semestre reforça isso?

Sim, esse é um indicativo de que os fundadores da nossa região percebem que vai ter crise antes da hora. Cortar 30% das pessoas é, infelizmente, horrível, mas o tamanho do ajuste torna isso relevante para o negócio. Essas empresas mais maduras, além de realizarem os ajustes, estão fazendo uma escolha entre crescer menos e estender o runway (dinheiro em caixa até levantar a próxima rodada). Ou seja, é o tempo que elas podem viver sem precisar de mais capital. Essa é também uma escolha meio privilegiada, porque o fundador vai crescer menos, mas vai continuar crescendo. Fizemos uma análise entre nossas startups investidas e todas estão crescendo receita. Então, volto à sua pergunta: não é uma crise inerente ao Brasil, em que os clientes compram menos e as receitas caem. Ao contrário, é uma questão de liquidez e, por isso, as startups escolhem crescer menos. Em nossa pesquisa, os fundadores dizem que estão investindo menos em marketing, diminuindo despesas, contratando menos pessoas ou até cortando pessoal. São coisas a ver com crescimento. E isso é atitude de quem já passou por mais crises.

Qual é o papel dos fundos de venture capital neste momento?

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Os fundos estão colocando muito mais energia interna para ajudar as empresas já investidas do que para fazer novos investimentos. Todo mundo está tentando ajudar os fundadores a navegar por essa crise, ajudando a pensar no orçamento daqui para frente, por exemplo. No Canary, nós gastamos bastante energia passando a mensagem sobre a crise no começo do ano. Tivemos o papel de aconselhar todo mundo e nivelar o conhecimento. E a reação foi muito boa, porque mostrou como boa parte dos fundadores já sabia disso também e que são experientes sobre crises. Depois, tivemos um trabalho muito grande de um a um, de ir conversando e tentando entender o momento em que as empresas investidas estavam. E não paramos de investir. Só neste ano, tivemos 20 rodadas de investimento subsequente a nós, quando algum fundo no mundo investe em uma empresa nossa. Então, a narrativa de que não há mais aportes não é muito verdade. Há menos, claro, mas ainda existem. E nosso papel como fundo é fazer essa conexão das nossas startups com os investidores globais para conseguir levantar capital.

Qual é o conselho para os fundadores?

Estamos recomendando formas criativas de levantar capital, já que o mercado é menos líquido. Por exemplo, uma forma de resolver isso é fazer uma rodada chamada de convertible, que é uma um instrumento conversível. Basicamente, o fundador diz para o investidor que não vai discutir a avaliação de mercado no momento de negociar o aporte, mas deixa para acertar isso depois. O investidor coloca o dinheiro na empresa e tem o retorno garantido lá na frente. Em vez de ser definido o preço hoje, em um momento de crise e cheio de barulho, isso fica para uma rodada maior daqui a dois anos. É uma forma de jogar a discussão para frente, deixa a startup capitalizada e garante retorno para o investidor.

Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas

Marcos Toledo, sócio do Canary

Outra coisa que recomendamos é levantar capital agora, quem puder. Na pior das hipóteses, é melhor levantar capital e sobreviver à crise do que esperar que as coisas vão melhorar eventualmente e não melhoram. Então, é melhor levantar dinheiro, mesmo que seja em termos piores para o fundador, o que significa receber um down round (quando o valuation da companhia cai em relação à rodada anterior) para sobreviver à crise. Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas.

Além disso, boa parte das companhias estão bem capitalizadas hoje, se fizeram ajustes. Então, daqui a dois anos, muitos fundadores planejam levantar nova rodada no final de 2023, início de 2024. Mas e se essa crise não melhorar? Vai ter muita gente buscando capital ao mesmo tempo e vai ter muito mais demanda do que oferta. Por isso, recomendamos que levante hoje, mesmo que seja com um downround.

Qual é a previsão para 2023?

Nos próximos seis a 10 meses, vamos ver muitas notícias que aumentam a aversão a risco dos investidores de forma geral. Um exemplo é a quebra da FTX, que deixa as pessoas céticas. E, também, ninguém sabe ainda como é que a Europa vai se comportar neste inverno, com a pressão energética e crise geopolítica. Se vier qualquer notícia ruim de um país europeu, isso vai aumentar a aversão, e não diminuir. Por conta dessa seleção adversa de notícias, muita empresa vai tentar igualar as despesas e receita (break even) e ficar mais low profile no ano. Ao mesmo tempo, as pessoas vão ler notícias de empresas que quebraram ou demitiram, o que aumenta a aversão, mas não deveria, porque significa que as companhias estão se ajustando. Nenhum desses riscos são relacionados ao mercado de tecnologia.

Após milhares de demissões ao longo de 2022, a visão de que os fundadores de startups são irresponsáveis predominou no mercado de inovação. Contratações de centenas de funcionários ao mês e expansões internacionais tidas como precoces, observadas principalmente no biênio de 2020 e 2021, deram a impressão de que esse era o perfil de todo “startupeiro gastador”. Para o fundo brasileiro Canary, porém, esse empreendedor é minoria e, no País, o perfil desse gestor é mais cauteloso do que o americano ou europeu.

“Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil, e nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé”, afirma ao Estadão um dos sócios da Canary, Marcos Toledo. No portfólio de empresas investidas, a gestora tem Loft, Gupy, Buser, Alice e Pier, entre outros.

Marcos Toledo é um dos sócios do fundo brasileiro Canary, responsável por investir em nomes como Loft, Gupy e Buser Foto: Alex Silva/Estadão - 15/12/2022

Segundo Toledo, o período de alta liquidez de capital no Brasil durou pouco menos de um ano, e isso não foi suficiente para que fossem criadas as “startups queimadoras de caixa” que se vê no exterior. “Os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de ‘vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro’”, rebate.

Ainda assim, o sócio da Canary, nascida em 2016, prega cautela e defende que sejam feitas as correções necessárias para manter as startups de pé durante esse período de alta global dos juros, que corrói o apetite por risco do investidor tradicional. “Ninguém falou que a jornada de uma startup seria um mar de rosas”, diz.

Abaixo, leia trechos da entrevista ao Estadão:

Quais são os elementos que caracterizam a crise nas startups em 2022?

É uma crise, sim, mas não é inerente ao mundo de startups da América Latina. É global e veio da inflação nos países desenvolvidos, de uma guerra, o que era meio impensável há uns anos, e questões geopolíticas referentes aos lockdowns na China. Isso pressiona os preços de energia e o movimento de mercadorias pelo mundo, o que aumenta ainda mais a inflação. É um mosaico de coisas que afetam o nosso mundo, da tecnologia. Nós vivemos anos de alta liquidez no mundo inteiro, e agora há menos propensão à tomada de risco, portanto, menos capital disponível para financiar a inovação.

Sempre foi dito que o setor da tecnologia é resiliente a choques. A crise escancara essa fraqueza?

São negócios mais resilientes, sim, porque têm margens altas e custo de produto ou de serviço muito baixo. A questão aqui é que as pessoas misturam empresas que estão nascendo, que é onde atuamos aqui no Canary, com aquelas quase na abertura de capital (IPO), com milhares de funcionários. A resiliência que a gente percebe está na qualidade das pessoas empreendendo ou montando negócios, que continua muito alta.

Existe por aí uma narrativa incorreta de que havia muitas startups bancadas por fundos de venture capital que não tinham um modelo de negócio sustentável, ou seja, que não parava de pé. E essa narrativa diz que, agora que entramos numa crise, a torneira do capital foi fechada e essas empresas vão quebrar. Concordamos que isso é verdade e que existem empresas assim no mundo inteiro, mas nossa percepção é de que essas startups são minoria. Nosso argumento é que os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de “vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro”. Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil. Nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé. Para o País, o período de liquidez de capital (entre 2020 e 2021) foi supercurto, de 6 a 10 meses.

Nosso empreendedor é mais preparado para crises que o americano ou europeu, então?

Talvez ele saiba fazer ajustes mais rápido. No pré-crise, ficávamos discutindo que os negócios nasciam muito preocupados com a sustentabilidade, o que pode ser ruim em épocas de bonança, já que pode segurar o crescimento da empresa.

A resposta rápida dos nossos ‘unicórnios’ à crise que se formava no primeiro semestre reforça isso?

Sim, esse é um indicativo de que os fundadores da nossa região percebem que vai ter crise antes da hora. Cortar 30% das pessoas é, infelizmente, horrível, mas o tamanho do ajuste torna isso relevante para o negócio. Essas empresas mais maduras, além de realizarem os ajustes, estão fazendo uma escolha entre crescer menos e estender o runway (dinheiro em caixa até levantar a próxima rodada). Ou seja, é o tempo que elas podem viver sem precisar de mais capital. Essa é também uma escolha meio privilegiada, porque o fundador vai crescer menos, mas vai continuar crescendo. Fizemos uma análise entre nossas startups investidas e todas estão crescendo receita. Então, volto à sua pergunta: não é uma crise inerente ao Brasil, em que os clientes compram menos e as receitas caem. Ao contrário, é uma questão de liquidez e, por isso, as startups escolhem crescer menos. Em nossa pesquisa, os fundadores dizem que estão investindo menos em marketing, diminuindo despesas, contratando menos pessoas ou até cortando pessoal. São coisas a ver com crescimento. E isso é atitude de quem já passou por mais crises.

Qual é o papel dos fundos de venture capital neste momento?

Os fundos estão colocando muito mais energia interna para ajudar as empresas já investidas do que para fazer novos investimentos. Todo mundo está tentando ajudar os fundadores a navegar por essa crise, ajudando a pensar no orçamento daqui para frente, por exemplo. No Canary, nós gastamos bastante energia passando a mensagem sobre a crise no começo do ano. Tivemos o papel de aconselhar todo mundo e nivelar o conhecimento. E a reação foi muito boa, porque mostrou como boa parte dos fundadores já sabia disso também e que são experientes sobre crises. Depois, tivemos um trabalho muito grande de um a um, de ir conversando e tentando entender o momento em que as empresas investidas estavam. E não paramos de investir. Só neste ano, tivemos 20 rodadas de investimento subsequente a nós, quando algum fundo no mundo investe em uma empresa nossa. Então, a narrativa de que não há mais aportes não é muito verdade. Há menos, claro, mas ainda existem. E nosso papel como fundo é fazer essa conexão das nossas startups com os investidores globais para conseguir levantar capital.

Qual é o conselho para os fundadores?

Estamos recomendando formas criativas de levantar capital, já que o mercado é menos líquido. Por exemplo, uma forma de resolver isso é fazer uma rodada chamada de convertible, que é uma um instrumento conversível. Basicamente, o fundador diz para o investidor que não vai discutir a avaliação de mercado no momento de negociar o aporte, mas deixa para acertar isso depois. O investidor coloca o dinheiro na empresa e tem o retorno garantido lá na frente. Em vez de ser definido o preço hoje, em um momento de crise e cheio de barulho, isso fica para uma rodada maior daqui a dois anos. É uma forma de jogar a discussão para frente, deixa a startup capitalizada e garante retorno para o investidor.

Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas

Marcos Toledo, sócio do Canary

Outra coisa que recomendamos é levantar capital agora, quem puder. Na pior das hipóteses, é melhor levantar capital e sobreviver à crise do que esperar que as coisas vão melhorar eventualmente e não melhoram. Então, é melhor levantar dinheiro, mesmo que seja em termos piores para o fundador, o que significa receber um down round (quando o valuation da companhia cai em relação à rodada anterior) para sobreviver à crise. Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas.

Além disso, boa parte das companhias estão bem capitalizadas hoje, se fizeram ajustes. Então, daqui a dois anos, muitos fundadores planejam levantar nova rodada no final de 2023, início de 2024. Mas e se essa crise não melhorar? Vai ter muita gente buscando capital ao mesmo tempo e vai ter muito mais demanda do que oferta. Por isso, recomendamos que levante hoje, mesmo que seja com um downround.

Qual é a previsão para 2023?

Nos próximos seis a 10 meses, vamos ver muitas notícias que aumentam a aversão a risco dos investidores de forma geral. Um exemplo é a quebra da FTX, que deixa as pessoas céticas. E, também, ninguém sabe ainda como é que a Europa vai se comportar neste inverno, com a pressão energética e crise geopolítica. Se vier qualquer notícia ruim de um país europeu, isso vai aumentar a aversão, e não diminuir. Por conta dessa seleção adversa de notícias, muita empresa vai tentar igualar as despesas e receita (break even) e ficar mais low profile no ano. Ao mesmo tempo, as pessoas vão ler notícias de empresas que quebraram ou demitiram, o que aumenta a aversão, mas não deveria, porque significa que as companhias estão se ajustando. Nenhum desses riscos são relacionados ao mercado de tecnologia.

Após milhares de demissões ao longo de 2022, a visão de que os fundadores de startups são irresponsáveis predominou no mercado de inovação. Contratações de centenas de funcionários ao mês e expansões internacionais tidas como precoces, observadas principalmente no biênio de 2020 e 2021, deram a impressão de que esse era o perfil de todo “startupeiro gastador”. Para o fundo brasileiro Canary, porém, esse empreendedor é minoria e, no País, o perfil desse gestor é mais cauteloso do que o americano ou europeu.

“Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil, e nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé”, afirma ao Estadão um dos sócios da Canary, Marcos Toledo. No portfólio de empresas investidas, a gestora tem Loft, Gupy, Buser, Alice e Pier, entre outros.

Marcos Toledo é um dos sócios do fundo brasileiro Canary, responsável por investir em nomes como Loft, Gupy e Buser Foto: Alex Silva/Estadão - 15/12/2022

Segundo Toledo, o período de alta liquidez de capital no Brasil durou pouco menos de um ano, e isso não foi suficiente para que fossem criadas as “startups queimadoras de caixa” que se vê no exterior. “Os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de ‘vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro’”, rebate.

Ainda assim, o sócio da Canary, nascida em 2016, prega cautela e defende que sejam feitas as correções necessárias para manter as startups de pé durante esse período de alta global dos juros, que corrói o apetite por risco do investidor tradicional. “Ninguém falou que a jornada de uma startup seria um mar de rosas”, diz.

Abaixo, leia trechos da entrevista ao Estadão:

Quais são os elementos que caracterizam a crise nas startups em 2022?

É uma crise, sim, mas não é inerente ao mundo de startups da América Latina. É global e veio da inflação nos países desenvolvidos, de uma guerra, o que era meio impensável há uns anos, e questões geopolíticas referentes aos lockdowns na China. Isso pressiona os preços de energia e o movimento de mercadorias pelo mundo, o que aumenta ainda mais a inflação. É um mosaico de coisas que afetam o nosso mundo, da tecnologia. Nós vivemos anos de alta liquidez no mundo inteiro, e agora há menos propensão à tomada de risco, portanto, menos capital disponível para financiar a inovação.

Sempre foi dito que o setor da tecnologia é resiliente a choques. A crise escancara essa fraqueza?

São negócios mais resilientes, sim, porque têm margens altas e custo de produto ou de serviço muito baixo. A questão aqui é que as pessoas misturam empresas que estão nascendo, que é onde atuamos aqui no Canary, com aquelas quase na abertura de capital (IPO), com milhares de funcionários. A resiliência que a gente percebe está na qualidade das pessoas empreendendo ou montando negócios, que continua muito alta.

Existe por aí uma narrativa incorreta de que havia muitas startups bancadas por fundos de venture capital que não tinham um modelo de negócio sustentável, ou seja, que não parava de pé. E essa narrativa diz que, agora que entramos numa crise, a torneira do capital foi fechada e essas empresas vão quebrar. Concordamos que isso é verdade e que existem empresas assim no mundo inteiro, mas nossa percepção é de que essas startups são minoria. Nosso argumento é que os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de “vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro”. Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil. Nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé. Para o País, o período de liquidez de capital (entre 2020 e 2021) foi supercurto, de 6 a 10 meses.

Nosso empreendedor é mais preparado para crises que o americano ou europeu, então?

Talvez ele saiba fazer ajustes mais rápido. No pré-crise, ficávamos discutindo que os negócios nasciam muito preocupados com a sustentabilidade, o que pode ser ruim em épocas de bonança, já que pode segurar o crescimento da empresa.

A resposta rápida dos nossos ‘unicórnios’ à crise que se formava no primeiro semestre reforça isso?

Sim, esse é um indicativo de que os fundadores da nossa região percebem que vai ter crise antes da hora. Cortar 30% das pessoas é, infelizmente, horrível, mas o tamanho do ajuste torna isso relevante para o negócio. Essas empresas mais maduras, além de realizarem os ajustes, estão fazendo uma escolha entre crescer menos e estender o runway (dinheiro em caixa até levantar a próxima rodada). Ou seja, é o tempo que elas podem viver sem precisar de mais capital. Essa é também uma escolha meio privilegiada, porque o fundador vai crescer menos, mas vai continuar crescendo. Fizemos uma análise entre nossas startups investidas e todas estão crescendo receita. Então, volto à sua pergunta: não é uma crise inerente ao Brasil, em que os clientes compram menos e as receitas caem. Ao contrário, é uma questão de liquidez e, por isso, as startups escolhem crescer menos. Em nossa pesquisa, os fundadores dizem que estão investindo menos em marketing, diminuindo despesas, contratando menos pessoas ou até cortando pessoal. São coisas a ver com crescimento. E isso é atitude de quem já passou por mais crises.

Qual é o papel dos fundos de venture capital neste momento?

Os fundos estão colocando muito mais energia interna para ajudar as empresas já investidas do que para fazer novos investimentos. Todo mundo está tentando ajudar os fundadores a navegar por essa crise, ajudando a pensar no orçamento daqui para frente, por exemplo. No Canary, nós gastamos bastante energia passando a mensagem sobre a crise no começo do ano. Tivemos o papel de aconselhar todo mundo e nivelar o conhecimento. E a reação foi muito boa, porque mostrou como boa parte dos fundadores já sabia disso também e que são experientes sobre crises. Depois, tivemos um trabalho muito grande de um a um, de ir conversando e tentando entender o momento em que as empresas investidas estavam. E não paramos de investir. Só neste ano, tivemos 20 rodadas de investimento subsequente a nós, quando algum fundo no mundo investe em uma empresa nossa. Então, a narrativa de que não há mais aportes não é muito verdade. Há menos, claro, mas ainda existem. E nosso papel como fundo é fazer essa conexão das nossas startups com os investidores globais para conseguir levantar capital.

Qual é o conselho para os fundadores?

Estamos recomendando formas criativas de levantar capital, já que o mercado é menos líquido. Por exemplo, uma forma de resolver isso é fazer uma rodada chamada de convertible, que é uma um instrumento conversível. Basicamente, o fundador diz para o investidor que não vai discutir a avaliação de mercado no momento de negociar o aporte, mas deixa para acertar isso depois. O investidor coloca o dinheiro na empresa e tem o retorno garantido lá na frente. Em vez de ser definido o preço hoje, em um momento de crise e cheio de barulho, isso fica para uma rodada maior daqui a dois anos. É uma forma de jogar a discussão para frente, deixa a startup capitalizada e garante retorno para o investidor.

Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas

Marcos Toledo, sócio do Canary

Outra coisa que recomendamos é levantar capital agora, quem puder. Na pior das hipóteses, é melhor levantar capital e sobreviver à crise do que esperar que as coisas vão melhorar eventualmente e não melhoram. Então, é melhor levantar dinheiro, mesmo que seja em termos piores para o fundador, o que significa receber um down round (quando o valuation da companhia cai em relação à rodada anterior) para sobreviver à crise. Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas.

Além disso, boa parte das companhias estão bem capitalizadas hoje, se fizeram ajustes. Então, daqui a dois anos, muitos fundadores planejam levantar nova rodada no final de 2023, início de 2024. Mas e se essa crise não melhorar? Vai ter muita gente buscando capital ao mesmo tempo e vai ter muito mais demanda do que oferta. Por isso, recomendamos que levante hoje, mesmo que seja com um downround.

Qual é a previsão para 2023?

Nos próximos seis a 10 meses, vamos ver muitas notícias que aumentam a aversão a risco dos investidores de forma geral. Um exemplo é a quebra da FTX, que deixa as pessoas céticas. E, também, ninguém sabe ainda como é que a Europa vai se comportar neste inverno, com a pressão energética e crise geopolítica. Se vier qualquer notícia ruim de um país europeu, isso vai aumentar a aversão, e não diminuir. Por conta dessa seleção adversa de notícias, muita empresa vai tentar igualar as despesas e receita (break even) e ficar mais low profile no ano. Ao mesmo tempo, as pessoas vão ler notícias de empresas que quebraram ou demitiram, o que aumenta a aversão, mas não deveria, porque significa que as companhias estão se ajustando. Nenhum desses riscos são relacionados ao mercado de tecnologia.

Após milhares de demissões ao longo de 2022, a visão de que os fundadores de startups são irresponsáveis predominou no mercado de inovação. Contratações de centenas de funcionários ao mês e expansões internacionais tidas como precoces, observadas principalmente no biênio de 2020 e 2021, deram a impressão de que esse era o perfil de todo “startupeiro gastador”. Para o fundo brasileiro Canary, porém, esse empreendedor é minoria e, no País, o perfil desse gestor é mais cauteloso do que o americano ou europeu.

“Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil, e nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé”, afirma ao Estadão um dos sócios da Canary, Marcos Toledo. No portfólio de empresas investidas, a gestora tem Loft, Gupy, Buser, Alice e Pier, entre outros.

Marcos Toledo é um dos sócios do fundo brasileiro Canary, responsável por investir em nomes como Loft, Gupy e Buser Foto: Alex Silva/Estadão - 15/12/2022

Segundo Toledo, o período de alta liquidez de capital no Brasil durou pouco menos de um ano, e isso não foi suficiente para que fossem criadas as “startups queimadoras de caixa” que se vê no exterior. “Os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de ‘vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro’”, rebate.

Ainda assim, o sócio da Canary, nascida em 2016, prega cautela e defende que sejam feitas as correções necessárias para manter as startups de pé durante esse período de alta global dos juros, que corrói o apetite por risco do investidor tradicional. “Ninguém falou que a jornada de uma startup seria um mar de rosas”, diz.

Abaixo, leia trechos da entrevista ao Estadão:

Quais são os elementos que caracterizam a crise nas startups em 2022?

É uma crise, sim, mas não é inerente ao mundo de startups da América Latina. É global e veio da inflação nos países desenvolvidos, de uma guerra, o que era meio impensável há uns anos, e questões geopolíticas referentes aos lockdowns na China. Isso pressiona os preços de energia e o movimento de mercadorias pelo mundo, o que aumenta ainda mais a inflação. É um mosaico de coisas que afetam o nosso mundo, da tecnologia. Nós vivemos anos de alta liquidez no mundo inteiro, e agora há menos propensão à tomada de risco, portanto, menos capital disponível para financiar a inovação.

Sempre foi dito que o setor da tecnologia é resiliente a choques. A crise escancara essa fraqueza?

São negócios mais resilientes, sim, porque têm margens altas e custo de produto ou de serviço muito baixo. A questão aqui é que as pessoas misturam empresas que estão nascendo, que é onde atuamos aqui no Canary, com aquelas quase na abertura de capital (IPO), com milhares de funcionários. A resiliência que a gente percebe está na qualidade das pessoas empreendendo ou montando negócios, que continua muito alta.

Existe por aí uma narrativa incorreta de que havia muitas startups bancadas por fundos de venture capital que não tinham um modelo de negócio sustentável, ou seja, que não parava de pé. E essa narrativa diz que, agora que entramos numa crise, a torneira do capital foi fechada e essas empresas vão quebrar. Concordamos que isso é verdade e que existem empresas assim no mundo inteiro, mas nossa percepção é de que essas startups são minoria. Nosso argumento é que os negócios no Brasil já são criados com a mentalidade da escassez de capital. Aqui, não existe isso de “vou crescer e depois eu vejo como ganho dinheiro”. Nossos empreendedores estão acostumados a viver em crise a cada quatro ou cinco anos. Nosso fundador sabe que aqui é um ambiente volátil. Nossas startups já nascem com um modelo de negócio que para de pé. Para o País, o período de liquidez de capital (entre 2020 e 2021) foi supercurto, de 6 a 10 meses.

Nosso empreendedor é mais preparado para crises que o americano ou europeu, então?

Talvez ele saiba fazer ajustes mais rápido. No pré-crise, ficávamos discutindo que os negócios nasciam muito preocupados com a sustentabilidade, o que pode ser ruim em épocas de bonança, já que pode segurar o crescimento da empresa.

A resposta rápida dos nossos ‘unicórnios’ à crise que se formava no primeiro semestre reforça isso?

Sim, esse é um indicativo de que os fundadores da nossa região percebem que vai ter crise antes da hora. Cortar 30% das pessoas é, infelizmente, horrível, mas o tamanho do ajuste torna isso relevante para o negócio. Essas empresas mais maduras, além de realizarem os ajustes, estão fazendo uma escolha entre crescer menos e estender o runway (dinheiro em caixa até levantar a próxima rodada). Ou seja, é o tempo que elas podem viver sem precisar de mais capital. Essa é também uma escolha meio privilegiada, porque o fundador vai crescer menos, mas vai continuar crescendo. Fizemos uma análise entre nossas startups investidas e todas estão crescendo receita. Então, volto à sua pergunta: não é uma crise inerente ao Brasil, em que os clientes compram menos e as receitas caem. Ao contrário, é uma questão de liquidez e, por isso, as startups escolhem crescer menos. Em nossa pesquisa, os fundadores dizem que estão investindo menos em marketing, diminuindo despesas, contratando menos pessoas ou até cortando pessoal. São coisas a ver com crescimento. E isso é atitude de quem já passou por mais crises.

Qual é o papel dos fundos de venture capital neste momento?

Os fundos estão colocando muito mais energia interna para ajudar as empresas já investidas do que para fazer novos investimentos. Todo mundo está tentando ajudar os fundadores a navegar por essa crise, ajudando a pensar no orçamento daqui para frente, por exemplo. No Canary, nós gastamos bastante energia passando a mensagem sobre a crise no começo do ano. Tivemos o papel de aconselhar todo mundo e nivelar o conhecimento. E a reação foi muito boa, porque mostrou como boa parte dos fundadores já sabia disso também e que são experientes sobre crises. Depois, tivemos um trabalho muito grande de um a um, de ir conversando e tentando entender o momento em que as empresas investidas estavam. E não paramos de investir. Só neste ano, tivemos 20 rodadas de investimento subsequente a nós, quando algum fundo no mundo investe em uma empresa nossa. Então, a narrativa de que não há mais aportes não é muito verdade. Há menos, claro, mas ainda existem. E nosso papel como fundo é fazer essa conexão das nossas startups com os investidores globais para conseguir levantar capital.

Qual é o conselho para os fundadores?

Estamos recomendando formas criativas de levantar capital, já que o mercado é menos líquido. Por exemplo, uma forma de resolver isso é fazer uma rodada chamada de convertible, que é uma um instrumento conversível. Basicamente, o fundador diz para o investidor que não vai discutir a avaliação de mercado no momento de negociar o aporte, mas deixa para acertar isso depois. O investidor coloca o dinheiro na empresa e tem o retorno garantido lá na frente. Em vez de ser definido o preço hoje, em um momento de crise e cheio de barulho, isso fica para uma rodada maior daqui a dois anos. É uma forma de jogar a discussão para frente, deixa a startup capitalizada e garante retorno para o investidor.

Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas

Marcos Toledo, sócio do Canary

Outra coisa que recomendamos é levantar capital agora, quem puder. Na pior das hipóteses, é melhor levantar capital e sobreviver à crise do que esperar que as coisas vão melhorar eventualmente e não melhoram. Então, é melhor levantar dinheiro, mesmo que seja em termos piores para o fundador, o que significa receber um down round (quando o valuation da companhia cai em relação à rodada anterior) para sobreviver à crise. Ninguém falou que a jornada de uma startup seria uma escalada linear, sempre para cima e um mar de rosas.

Além disso, boa parte das companhias estão bem capitalizadas hoje, se fizeram ajustes. Então, daqui a dois anos, muitos fundadores planejam levantar nova rodada no final de 2023, início de 2024. Mas e se essa crise não melhorar? Vai ter muita gente buscando capital ao mesmo tempo e vai ter muito mais demanda do que oferta. Por isso, recomendamos que levante hoje, mesmo que seja com um downround.

Qual é a previsão para 2023?

Nos próximos seis a 10 meses, vamos ver muitas notícias que aumentam a aversão a risco dos investidores de forma geral. Um exemplo é a quebra da FTX, que deixa as pessoas céticas. E, também, ninguém sabe ainda como é que a Europa vai se comportar neste inverno, com a pressão energética e crise geopolítica. Se vier qualquer notícia ruim de um país europeu, isso vai aumentar a aversão, e não diminuir. Por conta dessa seleção adversa de notícias, muita empresa vai tentar igualar as despesas e receita (break even) e ficar mais low profile no ano. Ao mesmo tempo, as pessoas vão ler notícias de empresas que quebraram ou demitiram, o que aumenta a aversão, mas não deveria, porque significa que as companhias estão se ajustando. Nenhum desses riscos são relacionados ao mercado de tecnologia.

Entrevista por Guilherme Guerra

Repórter do Estadão desde 2018, com passagem pelas coberturas de educação, internacional, economia e tecnologia. Formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e pós-graduado em Estudos Brasileiros pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

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