Miguel Nicolelis não precisa ser reconhecido por mais ninguém – e nem ganhar o Nobel no qual é listado como eterno candidato – para provar que é o cientista brasileiro mais importante hoje. O paulistano da Bela Vista ganhou no ano passado um prêmio de mais de US$ 2,5 milhões (R$ 4,4 milhões) dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH, na sigla em inglês) que, distribuído ao longo de cinco anos, financiará sua pesquisa sobre a fusão entre homens e máquinas, cujos resultados vêm devolvendo a esperança para tetraplégicos e pacientes de Parkinson. Há mais vinte anos à frente de um laboratório na Universidade Duke, o neurocientista acaba de reunir suas ideias, teorias e descobertas em um livro publicado em março nos EUA e que chega em junho ao Brasil, pela Companhia das Letras, como Muito além do nosso eu – A nova neurociência que une cérebro e máquinas e como ela pode mudar nossas vidas.
Agora, ele se prepara para finalizar seus dois maiores projetos na vida: a construção de um polo de ciência em Macaíba, Natal, e a finalização de uma veste robótica que poderá fazer que tetraplégicos voltem a andar, usando só a força do pensamento. “É o que quero fazer com um adolescente brasileiro paralisado na abertura da Copa do Mundo de 2014. Não me interesso por prêmios. Esse sim é o meu maior sonho. Se tudo der certo, esse menino dará o pontapé inicial”, promete.
E, se tudo parece dar certo, o Nobel também parece mais próximo. O cientista foi convidado para apresentar um simpósio em plena Fundação Nobel, em Estocolmo, na Suécia. Pela primeira vez, os comitês responsáveis pelas premiações nas área da Medicina, Química e Física se reuniram para organizar um evento multidisciplinar, cujo tema é justamente a fusão homem-robô, assunto do qual ele é a maior autoridade no mundo.
Quais foram as descobertas mais importantes da neurociência nos últimos dez anos?Primeiramente, ela possibilitou observar populações de células de uma dimensão que ninguém tinha visto ainda. No meu livro, separei dez princípios descobertos pela nova neurociência. Experimentos nos últimos dez anos mostraram, por exemplo, que o processamento não é localizado, mas distribuído. Que os neurônios podem participar de vários circuitos simultaneamente. Que o sistema incorpora ferramentas artificiais como extensões do modelo do seu próprio corpo. O nosso corpo não termina no epitélio, mas se estende até o limite da ferramenta que a gente usa sobre o controle do cérebro. E uma série de outras descobertas mais técnicas e específicas, mas que na minha opinião formam o corpo de uma nova ciência do cérebro.
A resposta de um membro biônico já é similar à do corpo? Pode explicar como o órgão se adapta a uma estrutura externa?Mesmo se você enviar o sinal para o Japão e esperar ele voltar, é 20 milissegundos mais rápido do que o sinal que sai da cabeça e vai para o músculo do macaco. Mas, para que isso ocorra, o cérebro tem de ser retreinado. Esse é outro princípio, o da plasticidade, o cérebro pode se adaptar. Uma vez que você está usando um artefato robótico, artificial, o cérebro tem de remapear sua relação com ele. Nós medimos isso, pela primeira vez, em tempo real. Com isso, o que demonstramos foi a capacidade do corpo de se estender, a libertação dos limites físicos através do cérebro. A mente pode entrar em um diálogo bidirecional com outro dispositivo. Era isso que ninguém sabia ainda. Mas esse meu experimento ainda era uma parte básica da pesquisa. Na verdade, ele surgiu para tentar provar uma teoria de quase duzentos anos. Queríamos resolver essa questão, e conseguimos, mas, no processo, notamos que estávamos mexendo em uma área que tinha um enorme potencial clínico. Poderia realmente ajudar as pessoas.
O primeiro protótipo do exoesqueleto já foi finalizado?O exoesqueleto está sendo desenvolvido por um roboticista com o qual trabalho há muitos anos, Gordon Cheng. Está sendo finalizado agora, em Munique. Criamos uma versão que será controlada de forma autônoma por um macaco – o que ele pensar, a tecnologia reproduzirá. Será uma estrutura de corpo inteiro, muito similar à que estamos desenvolvendo para a aplicação clínica em pessoas. Claro que o macaco não vai sair jogando bola, mas, se demonstrarmos que ele pode ter autonomia de movimento, cumpriremos o objetivo final. Conseguimos mexer com três variáveis fundamentais: tempo – a tecnologia é mais veloz que o ‘hardware biológico’ –, espaço – o membro biônico pode estar em qualquer lugar do universo – e força – o cérebro pode movimentar um guindaste industrial ou uma ferramenta nanométrica com o mesmo esforço. O controle do robô mistura os sinais dos pensamentos com reflexos robóticos. É como se fosse o corpo da gente, que tem comandos central e local. Ele é movimentado por motores hidráulicos. É feito de um material muito leve, que, apesar de resistente, pode ser dobrado.
Que tecnologias podem surgir a partir do seu trabalho?O aprimoramento da nanomedicina, por exemplo. Será possível fazer intervenções dentro da célula, retirar uma única célula cancerígena. Teoricamente, com a nossa tecnologia, no futuro, o operador poderia controlar essa ferramenta diretamente pela mente. Também seria possível controlar um foguete com a força do pensamento, ou mesmo um avatar.
Isso não é só ficção?A prova de que isso não é ficção é que a maioria das grandes empresas de tecnologia do mundo já têm departamentos dedicados a estudar o impacto da tecnologia no cérebro e o desenvolvimento de interfaces entre a mente e os computadores. Google, Microsoft, Intel e IBM já têm essas divisões, o que é uma coisa inédita. Eu mesmo já fui palestrar no Google três vezes.
Muito picareta entrou nesse ramo nos últimos anos, puxado por essa onda do futurismo?Sim, muitos. A maioria ligada a essa história de Singularidade, essa ideia de que as máquinas podem resolver todos os problemas humanos. Acho mais fácil ter uma invasão de aliens que isso que eles propõem acontecer. Eu tenho uma opinião totalmente oposta a deles. Não acredito na proposta filosófica de que as máquinas vão dominar o mundo e nos substituir. Acredito no oposto, que qualquer máquina é uma imagem do que nosso cérebro imaginou. Elas são continuações do nosso processo de pensar ou de tentar imitar a natureza. Acredito em um simbiose homem-máquina em que o cérebro humano vai continuar controlando e assimilando tudo. O cérebro assimila o que usa com frequência, não é a toa que somos viciados em celular, computador, TV. Aquilo é parte de nós. A imortalidade para mim vai chegar, mas vai acontecer de outra maneira: quando pudermos fazer um download dos nossos pensamentos, das nossas ideias, das nossas memórias. Isso é possível. Tudo o que fazemos é por meio de sinais elétricos e isso pode ser reproduzido até em avatares. Mas um avatar não inventa nada, não tem novas experiências. Eu gosto dessa ideia, acho até poética, mas não tem nada a ver com a imortalidade física. No futuro, quando criarmos métodos não-invasivos para captar a atividade cerebral com grande resolução – e esse equipamentos vão vir, é inevitável – ou mesmo se um dia as pessoas acharem que tudo bem implantar um chip, poderemos registrar milhares, um dia quem sabe milhões, de células individuais ao mesmo tempo. Hoje conseguimos registrar cerca de mil células ao mesmo tempo. Nesse patamar, já é possível sonhar com alguém andando, e é isso que eu quero fazer na abertura da Copa do Mundo, aqui no Brasil, com um adolescente brasileiro.
Como você vê o modelo de investimento científico nos Estados Unidos e no Brasil?Os EUA estão em uma crise séria de pesquisa. Eles estão tendo um êxodo enorme. Ainda colocam uma quantidade enorme de dinheiro em ciência, mas o parque científico deles é muito grande. Para sustentar isso, mais de US$ 250 bilhões por ano, cerca de US$ 500 bilhões contando empresas privadas. O Brasil investe US$ 4 milhões. Quando eu falo que quero criar a Cidade do Cérebro em Natal, poucas pessoas me entendem. Mas existe algo bem previsível: alguém vai ter o primeiro parque neurotecnológico do mundo. E eu acredito que pode ser o Brasil. É o momento ideal para o Brasil se tornar um país que produz tecnologia de ponta, não dá só para ficar copiando o que os outros fazem. A nossa ciência precisa ser mais inovadora. O Brasil nunca pôde praticar a inovação. Quando conseguiu, se deu bem: Embraer, Petrobrás, Vale do Rio Doce. Mas um dia o minério de ferro vai acabar, precisamos produzir conhecimento. Temos de ensinar as crianças, desde bem cedo, a pensar criativamente. Não dá para importar inovação. Nos EUA, eles têm a ousadia no DNA, não sofrem com uma educação de colonizado como nós. Os norte-americanos não dormem no ponto. Muito menos na ciência. Quando eles veem que precisam investir, vão com tudo, como foi o caso da corrida espacial, que incentivou o pensamento criativo de uma maneira impressionante. Ainda hoje, os EUA vivem a última onda da inovação trazida pelo projeto espacial. Os engenheiros de ponta, matemáticos e molecada que cria ciência hoje, é toda daquela geração. O Brasil inteiro precisa ter uma educação libertadora. E não pode esperar que os talentos venham só de São Paulo. Pensa no Rivaldo, ídolo do meu Palmeiras. Ele foi visto na periferia de Pernambuco, jogando na rua. Se tem olheiro para futebol, por que não tem para a ciência? A academia brasileira não dá a cara para a sociedade. Nos EUA é diferente, o povo sabe que paga pela ciência. Meu vizinho chega para mim e pergunta o que estou fazendo com o dinheiro dele.
Você é um crítico do modelo de universidade adotado no Brasil, que chama de “colonial”. O que deve mudar? Como vocês estão conseguindo financiar o Campus do Cérebro, em Natal?Somos um projeto privado, temos parcerias com o governo federal, mas temos de achar recursos no mundo inteiro. Estamos conseguindo. Para cada R$ 1 público que conseguimos, temos R$ 1 ou R$ 2 privados. Por isso, a Cidade do Cérebro, última fase do projeto, é nossa ideia de autossustentabilidade. Já a academia brasileira é muito provinciana. Vê mal quando um cientista escreve um livro como o meu, de divulgação científica. Bem, eu escrevi porque isso é importante. As pessoas têm imagens de pura ficção na cabeça, de Hollywood, e alguém precisa chegar para elas e explicar como funciona. Na área tecnológica, as pessoas têm essas fantasias de que as máquinas vão nos dominar, de que o Big Brother vai entrar nas nossas mentes. Isso tem de ser esclarecido. Nos EUA, isso é bem-vindo. Aqui não. Acredito que, no futuro, o conhecimento produzido por essas instituições será inteiramente colaborativo. É só ver o projeto Walk Again, que envolve duas instituições alemãs, uma suíça, a Universidade Duke e o nosso instituto em Natal. A lógica colaborativa é muito emblemática do que o cérebro faz, por isso funciona tão bem.
Como assim?Eu tenho uma teoria, que ainda não posso provar cientificamente e que por enquanto é só uma hipótese, de que os modelos colaborativos funcionam tão bem porque a mente os reconhece como naturais. Somos animais sociais, não é à toa que as redes sociais são um sucesso. Temos de ter contato com os nossos pares. Nossas ações o muitas vezes são mímicas de como nossa mente age, até nossos modelos políticos refletem isso – nosso cérebro é uma grande democracia. Nós nos sentimos bem nesse modelo distribuído, exemplificado pela internet. Nossa cabeça funciona assim.