A vida de Carolina Ignarra está dividida em dois momentos: o “antes” e o “depois” de um acidente de moto, nos anos 2000, que a deixou sem os movimentos da cintura para baixo, aos 21 anos. À época, recém-formada em Educação Física e professora de ginástica laboral, ela viu sua carreira mudar. Deixou as salas de aula para entrar de vez no mercado de consultoria sobre diversidade e inclusão.
Agora, aos 43 anos, com quase metade da sua vida dedicada a levantar a discussão sobre diversidade dentro das empresas, Carolina espera também fazer a diferença nas campanhas publicitárias, lançando o UinStock, o primeiro banco de imagens brasileiro inteiramente focado em diversidade e dedicado a atores e modelos com algum tipo de deficiência.
Disponível desde o último dia 21 de setembro, data em que é celebrado no Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência (PcD), o banco de imagens estreou com cerca de 400 fotos disponíveis. A expectativa é alcançar a marca de 3 mil imagens em três meses, ampliando o acervo para além das pessoas com deficiência, na tentativa de atingir outros grupos minoritários, como geração 50+, membros da comunidade LGBTI+, e pessoas com recorte racial.
Para produzir as primeiras imagens, o projeto contou com o apoio de amigos que serviram de modelos e também de fotógrafos. Com o lançamento, o plano de Carolina é abrir a plataforma e atrair profissionais e personagens que estejam além do eixo Rio-São Paulo.
‘Eu não me via nas campanhas’
A percepção sobre a falta de representatividade de pessoas com deficiência na mídia não surgiu do dia para a noite. Carolina conta que esse entendimento se solidificou ao longo dos últimos 15 anos. Com o tempo, ela foi percebendo que raramente esse grupo ganhava espaço nas campanhas publicitárias.
Para a executiva, que é dona da consultoria Talento Incluir, a falta de representatividade das pessoas com deficiência nas ações de grandes empresas ocorre até mesmo quando esse grupo minoritário deveria ser o protagonista das ações – a exemplo de anúncios sobre vagas de trabalho destinadas ao público PcD, que geralmente usam imagens de pessoas “fingindo” ter alguma deficiência.
“Eu sou uma mulher cadeirante e dificilmente encontrava fotos de pessoas que conversassem com a minha realidade”, afirma. “Muitas marcas quando vão representar pessoas como eu, colocam modelos sem deficiência usando uma cadeira de rodas dessas usadas em hospitais. Isso precisa mudar”.
Atitude ‘capacitista’
Além de ampliar a diversidade na mídia e criar uma oportunidade de renda para modelos e atores com deficiência, que são remunerados pelos ensaios fotográficos para o UinStock, Carolina espera pôr fim as práticas “capacitistas” dentro do mercado, em especial o “cripface”.
Esse termo é usado para denominar a prática – ainda comum – de escalar modelos e atores sem deficiência para interpretar pessoas com deficiência. “Nós nunca somos representados. Quando somos, as fotos são de estrangeiros ou de falsos deficientes”, afirma a executiva. “No nosso serviço, haverá curadoria, não vai existir um modelo fingindo ser quem não é”.
Para o vice-presidente global da VLMY&R, Rafael Pitanguy, iniciativas como o UinStock ajudam a levantar as discussões sobre o “cripface” ao mesmo tempo em que apresentam ferramentas para evitar essa prática ainda comum na publicidade. “Ainda podem ocorrer deslizes em relação à forma como essa representatividade chega às peças publicitárias, mas as agências e os anunciantes estão muito mais atentos para evitar esses equívocos”, enfatiza.
Perguntas e respostas
Como identificar o ‘cripface’?
Uma das expectativas do banco de imagens UinStock é levantar as discussões dentro do mercado criativo de como identificar os casos de “cripface” e extinguir a prática.
‘Atuação’
São recorrentes os casos de filmes, séries e novelas em que atores sem deficiência interpretam papéis sobre pessoas com deficiências. A prática é vista pelos movimentos sociais como discriminatória, porque tira oportunidade de atores com deficiência.
Imagem distorcida
Outra situação comum na hora de mostrar imagens de pessoas com deficiência é a falta de características de cada grupo. Um exemplo são os cadeirantes: muitos bancos de imagens mostram pessoas em modelos de cadeira de rodas de hospital, modelo bem diferente do que é utilizado no dia a dia para locomoção.
Imitando ‘trejeitos’
No caso das pessoas com deficiências intelectuais, os atores sem deficiência fazem “cripface” ao retratar os personagens utilizando trejeitos que não representam todas as pessoas. As atuações nesse sentido são classificadas como caricatas e ofensivas para o grupo.