Foi a maior ameaça ao regime de Vladimir Putin em 20 anos. O motim de Yevgeni Prigozhin e seus mercenários do Grupo Wagner se dissipou tão inesperada e nebulosamente quanto começou. Mas deixou sangue na água e a sensação de que a estocada pode ter ferido o coração do sistema de Putin.
Putin subiu e se manteve no poder renovando uma barganha: mais eficiência e estabilidade ao custo de menos democracia e liberdades. No caos dos anos 1990, ele prometeu unidade, segurança e o resgate das glórias da Mãe Rússia. Valendo-se de sua experiência na KGB, empregou estruturas informais, intrigas e intimidação para, tal como a máfia, arbitrar facções rivais.
O próprio Prigozhin é um expoente. Após ser condenado por liderar uma gangue de assaltantes, ele entrou no ramo de cassinos e restaurantes, um deles frequentado por Putin, recebeu milhões em contratos públicos e fundou sua milícia, que fez o serviço sujo para Putin na Líbia, Mali e Síria. Na Ucrânia, além das vitórias na batalha, Prigozhin se mostrou útil a Putin em suas invectivas contra o desempenho do establishment militar. Quando sua virulência começou a sair do controle, o Kremlin decidiu integrar parte de seus homens ao Exército. Neste ponto, a criatura se rebelou, expondo fissuras no sistema do criador que podem estar se abrindo em crateras.
O mundo viu atônito a retirada das tropas de Prigozhin do front na sexta-feira e seu avanço pela Rússia. Ele capturou sem resistência Rostov, a nona maior cidade russa, e chegou a 200 km de Moscou, denunciando os pretextos de Putin para a guerra – uma ameaça coordenada pela Otan e a opressão de etnias russas por “fascistas” ucranianos – como farsas.
Compare-se a reação de Putin à de Volodmir Zelenski após a invasão. No dia seguinte, enquanto os russos avançavam para Kiev, Zelenski e seus colegas circularam a céu aberto prometendo defender o país. Já Putin desapareceu – houve rumores de que fugira de Moscou – e só na manhã seguinte se manifestou na TV. Falando de um escritório, acusou uma “punhalada nas costas” similar a 1917 – quando facções do Exército instadas pelos bolcheviques abandonaram o front, dando início à guerra civil – e prometeu trucidar os traidores. À tarde, foi anunciado um acordo: as acusações seriam retiradas e Prigozhin se exilaria na Bielorússia. “De um lado, coragem, camaradagem e uma demonstração de unidade nacional; de outro, medo, isolamento e divisão”, notou o articulista Gideon Rachman, do Financial Times.
Agora, Putin luta pela sobrevivência em duas frentes. Internamente, os russos viram seu Exército condescender à milícia rebelde. Punir seus generais soaria a uma concessão a Prigozhin. Integrar os rebeldes soa a fraqueza. Mas abrir mão deles enfraquecerá a Rússia no combate. Seria preciso convocar mais reservistas, ameaçando estimular a revolta de um povo que já se pergunta sobre o sentido dessa guerra. Externamente, essas vulnerabilidades serão exploradas pelos ucranianos em sua contraofensiva. A estratégia de Putin é que uma guerra longa de atrito levaria os ocidentais à distração e à exaustão. Mas ela está acelerando as tensões e debilidades do regime de Putin. “Duas décadas de domínio (de Putin) esvaziaram as instituições russas”, sentenciou Chris Donnelly, ex-conselheiro da Otan para a Rússia. “O sistema não pode funcionar sem uma mão forte no volante, e a mão de Putin já não é mais forte.”
A ironia é que os abusos de Putin despertaram o que ele mais temia. A invasão à Ucrânia deveria coroar seu sistema, esmagando os anseios por um regime democrático pró-ocidental em Kiev (e o risco de contágio para Moscou) e humilhando e dividindo os países da Otan. Mas está acontecendo o contrário. Para o Ocidente, o motim é uma faca de dois gumes: ele traz oportunidades, mas serve como uma advertência de que uma queda de Putin pode elevar ao comando da potência nuclear forças ainda mais radicais e virulentas.
Até aqui, nada é inevitável. Mas é possível que no futuro a história registre o putsch não só como o início do fim da guerra, mas como o início do fim do regime de Putin.