O fortalecimento da democracia brasileira, submetida nos últimos quatro anos a ataques inéditos desde o fim da ditadura militar, passa, obrigatoriamente, pela despolitização das forças de segurança pública. Na prática, isso significa nada mais do que circunscrever a atuação dos agentes aos limites impostos pelas leis e pela Constituição.
Malgrado se tratar de uma obviedade, uma pesquisa realizada com policiais há poucos dias pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que o desafio de trazer parte deles para os trilhos do Estado Democrático de Direito nada tem de trivial. Quase 40% do total de entrevistados disseram concordar, no todo ou em parte, com o seguinte enunciado: “A invasão (da Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro) é condenável e não pode ser tolerada, mas as pautas defendidas pelos invasores eram legítimas e não atentam contra a democracia”.
O fato de 4 em cada 10 policiais do País verem como “legítima” a agenda golpista dos que tomaram de assalto as sedes dos Poderes em Brasília é, sem dúvida, muitíssimo preocupante. Resta evidente que há, no mínimo, uma lacuna de formação democrática para uma parcela expressiva das forças de segurança pública, se não um vácuo de comando. A bem da verdade, o problema é antigo. Desde muito antes de chegar à Presidência da República, Jair Bolsonaro já inoculava os vírus do golpismo e da insubordinação no seio das Forças Armadas e das polícias.
A integridade funcional de uma parcela dos policiais federais, rodoviários, civis e militares foi conspurcada pela ideologia bolsonarista, em tudo contrária aos princípios republicanos. Inspirados pelo ex-presidente, muitos policiais se sentiram confortáveis para manifestar publicamente suas visões peculiares sobre “liberdade de expressão”, “povo” e “democracia”. Naquele fatídico 8 de janeiro, o País pôde ver, atônito, o que acontece quando agentes públicos sobrepõem suas opiniões políticas às suas obrigações legais.
O Estado detém o monopólio da violência. Seus agentes armados, portanto, devem exercer a função pública no estrito cumprimento do ordenamento jurídico, independentemente de suas crenças, valores e opiniões políticas particulares. Quem serve ao Estado portando armas, é evidente, não pode se envolver em questões políticas. Trata-se de um princípio elementar da democracia. Apenas como exercício de imaginação, pensemos no caos em que o País estaria mergulhado se cada policial na esquina pautasse suas ações segundo suas convicções morais, políticas ou religiosas.
Ao mesmo tempo que lançou luz sobre o alto grau de contaminação política das forças de segurança pública, a pesquisa do FBSP também trouxe um dado alentador. Para 62,1% dos policiais entrevistados, seus colegas que, por ação ou omissão, facilitaram a ação dos golpistas devem ser punidos. Outro dado auspicioso trazido pela pesquisa é que a maioria dos agentes (62,9%) acredita que a politização atrapalha o bom exercício das atividades-fim das corporações.
“Isso prova que eles (os policiais) entendem que a questão política atrapalha (as atividades-fim das polícias)”, disse ao Estadão o presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima. Ao mesmo tempo, Lima ressaltou o quão árdua será a faina para afastar a política dos quartéis quando quase 40% dos policiais não veem como atentatórias à democracia as reivindicações dos extremistas bolsonaristas. Sem dúvida, reverter essa percepção será o desafio de uma geração de autoridades policiais absolutamente comprometidas com a Constituição.
A todos os brasileiros são assegurados o direito à opinião e a liberdade para expressá-las nos limites da lei. Evidentemente, militares e agentes de segurança pública, como cidadãos, podem e devem ter suas opiniões sobre qualquer tema. Entretanto, jamais podem manifestá-las nos casos em que há vedação legal para isso e, menos ainda, nortear o exercício de suas funções com base em suas convicções pessoais. Não há democracia sem respeito às leis. E são justamente os policiais, nas ruas, os primeiros a zelar por seu cumprimento por todos os cidadãos.