No crispado ambiente político nacional, com um debate público contaminado por radicalização, intolerância e polarização, que converte adversários em inimigos, parece especialmente difícil a vida do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que tenta agradar a seu padrinho Jair Bolsonaro ao mesmo tempo que procura se apresentar como moderado e democrata.
Trata-se obviamente de uma impossibilidade, porque Bolsonaro é um orgulhoso liberticida e costuma jogar ao mar quem ousa reivindicar o apoio de seus devotos enquanto respeita instituições e adversários. Os recentes ataques que Tarcísio sofreu do pastor Silas Malafaia só reafirmaram o tamanho do desafio para o governador.
Tanto por comandar São Paulo quanto por se credenciar como substituto de Bolsonaro, Tarcísio precisa se equilibrar entre um campo que busca alternativas concretas de gestão e outro que prefere espalhar brasas onde já existe muito fogo. É esse o caso de Malafaia, que, na condição de profeta do bolsonarismo, é responsável pela revelação dos desígnios de Bolsonaro.
À imprensa, em diferentes entrevistas, o pastor disse desconfiar que Tarcísio atua nos bastidores para que Bolsonaro continue inelegível – e, assim, possa disputar a Presidência em 2026. Cobrou-lhe falas mais duras contra a inelegibilidade do ex-presidente. Também o criticou por manter diálogo produtivo com desafetos figadais do bolsonarismo, como o presidente Lula da Silva, os ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o presidente do PSD, Gilberto Kassab. Em Kassab, aliás, disse o pastor, Tarcísio deveria “dar uma prensa”, pois o secretário de Governo de São Paulo, auxiliar e mentor político do governador, é visto pelos bolsonaristas mais empedernidos como um forte aliado de Lula. Malafaia avisou: “Quem é amigo do meu inimigo meu amigo não é”.
Qualquer liderança da direita que se insinue como herdeira dos votos de Bolsonaro, como Tarcísio ou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, é desde logo considerada traidora pelo entorno do ex-presidente, que ainda nutre a esperança de reverter sua inelegibilidade e de se candidatar na eleição presidencial de 2026. A família de Bolsonaro deixou clara sua fúria contra os que tratam Bolsonaro não como potencial candidato, mas como um “movimento”, como aliás disse Tarcísio em comício recente. Carlos Bolsonaro, em seu dialeto peculiar, exortou seus seguidores nas redes sociais a “desconfiar” de quem “exclui a possibilidade de Jair Bolsonaro de concorrer à futura disputa eleitoral” e “usa a imagem do presidente”. Segundo ele, trata-se de um movimento “oportunista”, que “tem a intenção de visivelmente enfraquecer o capitão”. Já a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro deu entrevista ao site bolsonarista Pleno News advertindo os “precoces” de que “o Jair está mais ativo do que nunca” e de que “nós estamos trabalhando para reverter as injustiças que ele vem sofrendo, e eu acredito que ele será o nosso próximo presidente”.
É esse o desafio de uma direita que precisa ser uma espécie de “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Para o bem do País, deveria optar pela ideia liberal, republicana e democrática, enquanto galvaniza o espírito do antipetismo ou do desencanto com os rumos tomados pelo atual governo – que, eleito com o adorno da frente ampla e do horizonte de reconstrução e pacificação do País, segue sem cumprir tal promessa. A tarefa de Tarcísio hoje é virtualmente impossível: se, de um lado, é preciso conquistar os eleitores de centro com demonstrações de respeito às regras da democracia, aceitação dos resultados das urnas e repúdio ao uso da violência, por outro lado, muitos acreditam que, para ter viabilidade eleitoral, é preciso rezar o credo de uma seita cujo evangelho enaltece o vale-tudo, a intolerância e o golpismo.
Eis aí a quadratura do círculo que o governador paulista pretende solucionar.l