O Brasil não é particularmente conhecido pelo alto padrão de qualidade de seus serviços públicos, à exceção de algumas ilhas de excelência. Contudo, mesmo para um Estado com esse histórico de negligência em determinadas áreas da administração, até pouco tempo atrás era inimaginável a mera possibilidade de homicidas, traficantes e membros de organizações criminosas receberem uma licença para comprar legalmente armas de fogo e munições – inclusive de grosso calibre. Pois isso aconteceu no País. Não uma vez nem duas: foram milhares de vezes ao longo dos quatro anos do tenebroso governo de Jair Bolsonaro.
O plano de armar a população até os dentes por meio da concessão de licenças para Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) pelo Exército – executado com denodo por Bolsonaro sob a falácia de que “um povo armado jamais será escravizado” – era temerário por si só, ainda que a autorização para compra de armas de fogo fosse massificada apenas entre os cidadãos com ficha criminal imaculada. Não foi o caso. Um detalhado relatório feito por técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU), ao qual o Estadão teve acesso, revelou que pistolas, fuzis e metralhadoras foram comprados legalmente, pasme o leitor, por criminosos condenados pela Justiça – uns cumprindo pena; outros, foragidos – por meio da apresentação de certificado de CAC.
A frouxidão do Exército no processo de concessão desse documento a torto e a direito durante o governo passado não é novidade. Em julho de 2022, quando vieram a público informações sobre fraudes e erros no processo de emissão dos certificados de CAC para cidadãos que claramente não poderiam recebê-los, alertamos para o problema duas vezes nesta página (ver Incúria perigosa, de 23/7/2022, e CAC, bom negócio para o PCC, de 27/7/2022). O TCU, contudo, tem o mérito de revelar a dimensão desse descuido, pois o relatório da Corte de Contas abrange a emissão dos certificados entre 2019 e 2022, ou seja, durante todo o mandato de Bolsonaro, quando o armamento desenfreado da população foi convertido em política de governo.
Segundo o TCU, nada menos que 5.235 pessoas receberam novos registros de CAC ou renovaram registros anteriores mesmo havendo processo de execução penal contra elas por crimes como tráfico de drogas, homicídio e lesão corporal, entre outros. Quase 2,7 mil pessoas obtiveram do Exército licença para comprar armas de fogo mesmo sendo alvo de mandados de prisão em aberto. Num recorte que seria risível se não fosse trágico, o TCU apontou ainda que 94 pessoas declaradas mortas no período “compraram” 16.669 munições em 67 processos registrados.
Por fim, a partir de um perspicaz cruzamento entre as bases de dados do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) e o CadÚnico, os técnicos do TCU identificaram que 22.493 cidadãos que constam na base do governo federal para concessão de benefícios destinados à população de baixa renda foram autorizados pelo Exército a comprar armas e munições cujos valores são sabidamente altos. Como é óbvio, tudo indica que essas pessoas foram usadas como “laranjas” por organizações criminosas – e sabe-se lá qual é e onde está todo o poder de fogo adquirido em seus nomes por meio de fraude.
Eis o grau de irresponsabilidade de autoridades militares na emissão dessas licenças para aquisição de armas no Brasil, muitas das quais decerto foram parar nas mãos de quem atenta contra a vida de agentes do Estado e dos cidadãos em geral. Diante de números tão alarmantes, resta evidente que o Exército é incapaz de seguir fiscalizando a emissão de certificados de CAC nos moldes atuais, seja por falhas sistêmicas, seja por falta de mão de obra, como alega a instituição.
Algo tem de ser feito já. Para a sociedade, pouco importa se essa fiscalização permanecerá a cargo dos militares, o que implica rigorosa revisão de processos, ou se passará a ser responsabilidade da Polícia Federal, como querem alguns delegados. Um serviço público como esse tem de ser prestado por quem quer que se mostre à altura de sua relevância social.