No domingo passado, o massacre do Carandiru completou 30 anos. Trata-se de um dos episódios mais terríveis da história nacional. Para conter uma rebelião, 111 pessoas sob a custódia do Estado foram mortas por policiais militares no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo. O fato, por si só, é de extrema barbaridade, com uma atuação dos órgãos estatais incompatível com os direitos e garantias fundamentais. No entanto, o que veio depois – a resposta do Estado perante o massacre – tem sido igualmente lamentável, explicitando não apenas a dificuldade da Justiça de apurar responsabilidades e aplicar as penas cabíveis, como a própria conivência de parte da população com o abuso policial.
O processo judicial do Carandiru tem mais de 100 mil páginas. A discussão sobre a competência do caso – se os policiais deviam ser julgados pela Justiça comum ou pela Justiça Militar – levou uma década. Os policiais foram a júri popular entre 2013 e 2014. Houve condenação, com penas entre 48 e 624 anos de reclusão. No entanto, após vários recursos, o caso ainda não transitou em julgado. Ou seja, 30 anos depois do massacre, os policiais condenados não começaram a cumprir as respectivas penas.
Em agosto deste ano, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), rejeitou um recurso da defesa, mantendo a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pela condenação dos policiais. Em que pesem todas as complexidades do caso, a Justiça não cumpre seu papel quando, 30 anos depois do massacre, não há ainda uma decisão definitiva sobre o processo. É assim que o Estado apura seus erros?
O massacre do Carandiru suscitou pronta reação da sociedade. Por exemplo, advogados, defensores públicos, promotores e juízes uniram-se para fundar, no fim de 1992, o que viria a ser a principal entidade de estudo e discussão no País sobre o sistema de justiça penal, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Não era possível assistir passivamente a uma atuação estatal tão disfuncional que, longe de ser um caso isolado e excepcional, expunha contradições e violências presentes em todo o sistema penitenciário. Ao longo do tempo, a mobilização da sociedade civil nascida em razão do massacre do Carandiru produziu resultados importantes, apesar de haver ainda muito a melhorar. Em 2015, o STF qualificou a situação prisional brasileira como um “estado de coisas inconstitucional”, reconhecendo a “violação massiva de direitos fundamentais” dos presos, em razão de diversas omissões do poder público.
No entanto, o massacre do Carandiru não recebeu uma unânime reprovação por parte da população. Não foi apenas o Poder Judiciário que teve dificuldades de aplicar ao caso as consequências previstas na lei penal. Houve quem tenha tolerado e, não poucas vezes, aplaudido a barbárie policial. Em 2019, o presidente Bolsonaro disse que, se “o comandante do Carandiru (coronel Ubiratan Guimarães) estivesse vivo”, daria a ele o indulto. Naquele ano, o governo federal tentou ampliar as hipóteses de exclusão de ilicitude para policiais. O objetivo era deixar impunes ações hoje consideradas criminosas.
No ano passado, o deputado Capitão Augusto (PL-SP) apresentou um projeto de lei (PL 2.821/2021) para conceder anistia aos policiais militares envolvidos no massacre do Carandiru. Com parecer do deputado Sargento Fahur (PSD-PR) qualificando os policiais de “heróis” que “deveriam ser condecorados”, o texto foi aprovado em agosto pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados e agora está na Comissão de Constituição e Justiça.
O PL 2.821/2021 viola a separação dos Poderes e os princípios do Estado Democrático de Direito. No entanto, seu autor foi reeleito deputado federal no domingo passado com 168.740 votos, evento sintomático dos tempos atuais. Como se não bastasse a Justiça demorar 30 anos para terminar um julgamento, há quem queira autorizar por lei os abusos do Estado. O massacre do Carandiru não pode ser esquecido e, muito menos, incentivado.