É intolerável que pelo menos 32 milhões de meninos e meninas no Brasil vivam na pobreza, como acaba de estimar o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef). Esse número representa 63% da população com idade até 17 anos no País. São seis em cada dez, a maioria absoluta desta nova geração. Por óbvio, há algo de muito errado quando uma nação descuida de suas crianças e de seus adolescentes. O que dizer, então, quando a desatenção chega a esse ponto?
Não é segredo que os primeiros anos de vida são decisivos para o ser humano, seja em termos físicos, cognitivos ou emocionais. É na infância que o cérebro se forma, e as vivências nessa fase têm peso enorme na trajetória de cada indivíduo. A adolescência, por sua vez, marca a transição para a vida adulta. Uma etapa que requer cuidados e apoio para o que vem pela frente − jamais descaso, menos ainda em tal proporção.
Deixar milhões de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade é tirar-lhes a possibilidade do desenvolvimento pleno. Uma privação que não compromete apenas seu futuro pessoal. Evidentemente, as consequências de relegar tamanha parcela de meninos e meninas à pobreza impactam o destino do País. A pergunta é simples (e a resposta, claro, perturbadora): qual projeto de nação resiste a uma realidade em que mais da metade das crianças e dos adolescentes é negligenciada?
O cálculo do Unicef, acertadamente, não se limita ao critério de renda. Embora seja determinante das precárias e indignas condições de vida de milhões de famílias, a baixa renda está longe de ser a única causa de vulnerabilidades estruturais. A pobreza tem múltiplas dimensões, e o levantamento analisou dados sobre renda, alimentação, moradia, saneamento básico, educação, trabalho infantil e acesso à internet. A soma de crianças e adolescentes em situação desfavorável, em uma ou mais variáveis, resulta no inaceitável universo de 32 milhões de excluídos.
A estimativa diz respeito a 2019, ano mais recente com dados para todos os indicadores analisados. Mas o estudo do Unicef, intitulado As múltiplas dimensões da pobreza na infância e na adolescência no Brasil e elaborado com apoio da Fundação Vale, traz informações mais atuais para algumas dessas variáveis. Em 2021, por exemplo, 13,7 milhões de crianças e adolescentes viviam em famílias cuja renda não era suficiente para garantir alimentação adequada. Já a falta de saneamento básico, grave risco para a saúde, era o problema mais abrangente, penalizando 21,2 milhões de meninos e meninas em 2020.
Na educação, 4,3 milhões de crianças e adolescentes estavam fora da escola, apresentavam atraso escolar ou ainda não tinham sido alfabetizados após os 7 anos, quadro que se agravou durante a pandemia de covid-19. Um número maior − 4,6 milhões − sofria com moradias inadequadas: lares cujas paredes são feitas de material inapropriado ou que têm quatro ou mais pessoas por dormitório. Pior: as históricas desigualdades raciais e regionais do País continuaram expondo parcelas da população a situações ainda mais preocupantes. Um efeito tipo bola de neve, em que uma privação não raro se sobrepõe a outras, reduzindo infinitamente as chances de que milhões de brasileiros possam superar a pobreza e ter aspirações concretas de mobilidade social.
As diferentes dimensões analisadas no relatório indicam falhas de todo tipo. Vale notar que o Brasil dispõe de legislação avançada, a começar pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, nos quais é notória a proteção aos direitos da infância e da adolescência. Entre a teoria e prática, porém, o País tropeça em ineficiências crônicas e na renitente miopia que o impede de perseguir metas de longo prazo. Não haverá presente nem futuro melhor sem investimento nas novas gerações.
Quanto a isso, é acertada e bem-vinda a intenção do atual governo de pagar um adicional do Bolsa Família a quem tem filhos de até 6 anos. O dinheiro público deve ir para quem mais precisa, e não resta dúvida de que as crianças, assim como os adolescentes, têm que estar no topo das prioridades.