Os exegetas de Lula estão tendo trabalho dobrado desde o dia 27/10, quando o presidente resolveu queimar seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e dizer que a meta de déficit nas contas públicas “não precisa ser zero”. Ruim de conta, mas bom de lábia, o petista argumentou: “E se o Brasil tiver déficit de 0,5%, de 0,25%, o que é? Nada”.
Houve quem dissesse que Lula apenas reconheceu a realidade. Houve quem sugerisse que Lula quis ajudar Haddad ao livrá-lo do fardo de ter que reconhecer essa realidade. Houve quem atribuísse a fala de Lula aos tropeços do improviso. E houve também quem considerasse que Lula foi, na verdade, apenas ingênuo, como se ele ou não soubesse o que estava falando ou não fosse capaz de perceber a mancada. Ou seja, há interpretações para todos os gostos, todas dependentes de boa vontade.
A coisa toda, no entanto, é muito mais simples: Lula da Silva funciona permanentemente no modo eleitoral. É como sua segunda pele. Tudo o que diz e faz está diretamente relacionado a esse mister. Isso significa que Lula, no momento em que se observa queda de sua popularidade, perda de confiança de consumidores e empresários e uma notável dificuldade de articulação no Congresso, percebeu que tinha de virar a chave de seu governo.
Durante dez meses, o ministro Haddad vendeu a fantasia do controle das contas públicas e se impôs a ousada meta de déficit zero, sinalizando disposição de pelo menos tentar fazer a coisa certa, ainda que pela via de aumento de receitas, e não do corte de despesas. Mas Lula não quis nem isso: mesmo estando em começo de governo, momento ideal para propor sacrifícios, aproveitando a legitimidade conferida pelas urnas, o presidente refugou. Nenhuma surpresa: sempre que teve de escolher entre a responsabilidade e a popularidade, Lula nunca titubeou. Haddad é o sacrificado da vez no altar do populismo lulopetista, e outros certamente virão. Ao contrário do que pensam os exegetas de Lula, o presidente não é sincero nem ingênuo – é apenas calculista.
E nesse cálculo não cabem nem respeito aos limites fiscais nem preocupação com a sustentabilidade da política econômica, como ficou claro desde o segundo mandato de Lula e cujo estado da arte foi o desastre de Dilma Rousseff – aquela que disse que “gasto é vida” e que classificou de “rudimentar” o projeto de zerar o déficit nominal, proposto pela equipe econômica do primeiro mandato de Lula. Como se vê, não é de hoje que o lulopetismo sabota os que tentam impor racionalidade no manejo do dinheiro do contribuinte.
E o inimigo também permanece o mesmo: o mercado. “Eu acho que muitas vezes o mercado é ganancioso demais e fica cobrando a meta que eles acreditam que vai ser cumprida”, disse Lula, ignorando o fato de que questionar o déficit zero significaria comprometer a meta proposta por seu próprio ministro da Fazenda e o clima favorável para a redução dos juros pelo Banco Central.
A bem da verdade, o discurso do petista foi apenas a reiteração do que ele havia proferido há um ano, ainda no período de transição de governo, com críticas ao finado teto de gastos e à inexistência de um regime de metas de crescimento, em contraponto ao de metas de inflação.
É um discurso inaceitável para um presidente da República, que deveria saber da importância da estabilidade econômica para o País. Não é preciso ir longe para imaginar as consequências da gastança desenfreada na economia. Somente agora o País começou a colher os frutos da desaceleração da inflação após a pandemia de covid-19 – e nem todo o dinheiro que Jair Bolsonaro injetou na economia foi capaz de reelegê-lo.
Sem uma âncora crível, a inflação voltará a subir e os juros também, não por capricho do mercado, mas porque a necessidade de financiamento da dívida pública exige um altíssimo patamar de juros. Eis a importância de buscar atingir o déficit fiscal zero: sinalizar um limite, ainda que frouxo, para o avanço do endividamento. E se Lula ignora essas condições, não é por desconhecimento ou amor à democracia, mas por apego ao poder.