Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) um processo que é uma aula de como as coisas funcionam no Brasil. Não é preciso generalizar, mas apenas reconhecer um padrão de comportamento por parte de vários órgãos e entidades, padrão esse que permite a captura do aparato estatal por setores da elite do funcionalismo público.
Proposta há 17 anos pela Advocacia-Geral da União (AGU), ainda no primeiro governo Lula, a ação questiona a constitucionalidade de um dos penduricalhos do Ministério Público: os chamados “quinto”, “décimo” e “opção”. São “vantagens pessoais” concedidas a quem exerceu cargos de direção, de chefia ou de assessoramento em algum momento da carreira, mas que continuam sendo pagas mesmo após o término dessas funções.
Chama a atenção, em primeiro lugar, a demora no julgamento de uma ação bastante simples. A Constituição de 1988 proíbe esse tipo de incorporação de benefício. Já era assim antes, mas a Emenda Constitucional (EC) 19/1998 deixou o tema ainda mais cristalino. Não se pode transformar em permanente o valor extra motivado por trabalho ou função adicional.
Agora, formou-se maioria, no plenário virtual, para declarar a inconstitucionalidade desse penduricalho. Seis votos acompanharam o entendimento do relator, ministro Luís Roberto Barroso, no sentido de que a Constituição de 1988 proíbe o “acréscimo de qualquer espécie remuneratória ou de vantagens pessoais decorrentes do exercício regular do cargo”. O julgamento terminará após o recesso do Judiciário.
Diante de tema cuja resolução é tão evidente, a pergunta que surge é: por que o STF precisou de 17 anos para reconhecer essa inconstitucionalidade? Aqui entram em cena os outros atores envolvidos na captura do Estado por interesses privados.
O penduricalho agora julgado pelo STF não nasceu por geração espontânea. Ele foi criado por uma norma de 2006 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), estabelecendo que os integrantes mais antigos do Ministério Público poderiam continuar recebendo, à parte dos holerites, valores referentes a funções de chefia que exerceram em alguma etapa da carreira. O Conselho também liberou o pagamento de adicional de 20% para quem tivesse se aposentado antes de 1998.
Eis a situação indignante. O CNMP foi criado em 2004 pela Reforma do Judiciário (EC 45/2004) para fiscalizar e disciplinar administrativa e financeiramente o Ministério Público. No entanto, o órgão que vinha moralizar fez, antes mesmo de completar dois anos de funcionamento, o exato contrário. Em vez de fiscalizar, ele autorizou o penduricalho inconstitucional.
Há um problema muito grave quando o órgão de fiscalização se torna o próprio agente de ilegalidades; no caso, de uma inconstitucionalidade. Não é apenas a realização de uma coisa malfeita, mas a aprovação – como se estivesse tudo bem – do que está fora da lei. Trata-se de violação descarada e aplaudida da República.
Mas há outro fator, sempre presente nas manobras de captura do Estado por setores do funcionalismo, que ajuda a explicar a demora do julgamento pelo STF. Desde que foi proposta pela AGU, a ação de inconstitucionalidade contra o penduricalho sofreu enorme oposição por parte de várias entidades privadas de membros do Ministério Público, a começar pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)– aquela que deseja submeter o processo de escolha do procurador-geral da República à sua lista de indicações. O argumento corporativista foi o mesmo de sempre: não se pode aplicar as regras constitucionais sobre os procuradores e os promotores, uma vez que eles têm “direito adquirido” ao penduricalho. Trata-se de manifestação evidente de que essas entidades atuam no interesse de seus membros, e não têm maiores pudores em usar interpretações criativas em seu benefício.
A Constituição deve valer para todos. A começar para quem, como o Ministério Público, tem o dever de defender a ordem jurídica e o regime democrático. Chega de penduricalho. Chega de tanta conivência com tamanha praga.