A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou um projeto que dá um ano de poderes extraordinários para o presidente Javier Milei governar por decreto em algumas áreas da administração. Ademais, o mesmo pacote aprovado prevê uma série de privatizações, além de diversas medidas impopulares, que mexem com aposentadorias e Imposto de Renda. O texto ainda seguirá para o Senado, onde Milei tem base ainda mais inexpressiva que na Câmara, mas está claro que o presidente, que se apresentava como um implacável algoz da classe política em geral, entendeu que depende da política para governar – e que está disposto a fazer concessões. “El Loco”, aparentemente, ficou manso, e a Argentina parece disposta a receber o choque fiscal e administrativo que o presidente prometeu em sua ruidosa campanha.
Há três meses, para evitar uma fragorosa derrota, o governo teve de retirar de pauta a chamada Lei Ônibus, pacote de mais de 600 artigos que viraria a Argentina do avesso. Em março, o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), com efeitos semelhantes ao de uma medida provisória, foi rejeitado pelo Senado. Vendo que a estratégia de culpar a casta política ameaçava a estabilidade de seu governo, Milei teve de ceder.
O pacote aprovado no dia 30 passado, chamado de Lei Bases, terminou com cerca de 230 artigos, bem mais modesto que a Lei Ônibus. Além disso, Milei queria quatro anos de poderes extraordinários e só conseguiu um, período em que poderá baixar decretos em temas administrativos, econômicos, financeiros e energéticos.
Milei também terá de se contentar com a privatização de 11 estatais, como a companhia aérea Aerolineas Argentinas e a petroleira Enarsa, em vez das 40 que pretendia, e ainda teve de abrir mão da venda do Banco de La Nacion.
Depois de ser obrigado pela Justiça a recuar de uma draconiana reforma trabalhista, Milei não teve alternativa senão conversar com os sindicatos. Nas negociações, o escopo da proposta foi reduzido de 60 para 16 artigos. Milei conseguiu ainda fixar um prazo mínimo de 30 anos de contribuição para a obtenção da aposentadoria plena, restabelecer a cobrança do imposto de renda para cerca de 800 mil argentinos e restaurar o imposto sobre lucros.
Os projetos ainda terão de passar pelo Senado, onde será preciso obter ao menos 37 dos 72 votos. Como Milei tem uma base de menos de dez senadores, dependerá do apoio da chamada “oposição dialoguista”. A experiência da bem-sucedida negociação com os governadores, que controlam bancadas na Câmara, mostra que há um caminho para avançar o pacote governista.
Ao que parece, os argentinos ainda estão dispostos a dar um voto de confiança em Milei, mesmo diante do duro ajuste – ou talvez por causa dele, já que o legado de populismo e irresponsabilidade do peronismo e do kirchnerismo depauperou dramaticamente o país. A aprovação do governo se mantém elevada, mas a pobreza aumentou consideravelmente, a inflação cede devagar e a Argentina ainda deve piorar muito antes de começar a melhorar. Será preciso nervos de aço – mas a Argentina parece estar no caminho certo.