O deslinde do caso Marielle Franco, no fim de março, já havia exposto ao País um Rio de Janeiro carcomido pela ação insidiosa do crime organizado, em particular das milícias, quase naturalizadas como parte integrante da paisagem política do Estado. Partindo de uma degeneração primordial – as milícias como grupos paraestatais formados por agentes de segurança treinados e armados pelo próprio Estado –, essas organizações criminosas, de fato, têm avançado de forma audaciosa sobre espaços cada vez mais amplos das esferas institucionais de poder, ora estreitando laços com autoridades corruptas, ora financiando ilegalmente seus próprios candidatos a mandatos eletivos.
No domingo passado, o Fantástico, da TV Globo, exibiu trechos do depoimento do ex-policial militar Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora carioca e de seu motorista, Anderson Gomes, que faz parte do acordo de colaboração premiada firmado entre o criminoso e a Polícia Federal (PF). No depoimento, Lessa eviscerou o sórdido modus operandi desse conluio entre autoridades constituídas e milicianos, uma espécie de hidra que tanto tem custado aos fluminenses, em múltiplos sentidos. Ao mesmo tempo, as declarações de Lessa deram a dimensão do desafio posto diante do País para eliminar da vida política a presença de criminosos que, para além de seus objetivos delitivos, ainda subvertem a democracia representativa.
Com espantosa naturalidade, Lessa admitiu aos policiais federais que “não foi contratado para matar Marielle, como matador de aluguel”, mas sim “chamado para uma sociedade” pelos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão – respectivamente, deputado federal (Sem Partido-RJ) e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. “Não é uma empreitada, para você chegar ali, matar uma pessoa e ganhar um dinheirinho”, disse o ex-policial militar, narrando o caráter extraordinário do convite, chamemos assim, que teria recebido dos irmãos Brazão.
Como se sabe, a Procuradoria-Geral da República (PGR) acusou Chiquinho e Domingos Brazão de serem os mandantes do assassinato de Marielle e Anderson, em associação com o delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil fluminense e à época a autoridade máxima responsável pela elucidação do crime. Os três foram presos preventivamente e aguardam o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a denúncia oferecida contra eles pela PGR, no dia 9 de maio.
A tal “sociedade”, que Lessa classificou no depoimento à PF como “o negócio” da vida dele, seria a ocupação de um loteamento irregular em Jacarepaguá, bairro da zona oeste do Rio, para lá “instalar uma nova milícia”, a ser chefiada, claro, pelo ex-policial militar. Além de render a Lessa “mais de US$ 20 milhões” – o equivalente a mais de R$ 100 milhões – com a exploração ilegal de serviços de segurança, moradia, transporte clandestino, venda de gás e do chamado “gatonet” (furto de sinal de TV por assinatura), a ocupação ilegal da área sob influência desse novo grupo paraestatal se prestaria a manter o poder político do clã Brazão. Segundo Lessa, a “questão valiosa” para os irmãos Brazão não era propriamente a instalação da milícia, mas sua manutenção, “porque a manutenção da milícia vai trazer votos”.
Marielle seria a “pedra no caminho” para a consecução desse arranjo criminoso entre Lessa e os irmãos Brazão, com a participação do então chefe da Polícia Civil. Pouco antes de ser brutalmente assassinada, a parlamentar vinha realizando reuniões com líderes comunitários da região a fim de desestimular a adesão dos moradores ao novo loteamento ilegal. Ou seja, sua atuação política, ainda segundo o depoimento de Ronnie Lessa, colidiu frontalmente com os interesses de criminosos comuns e de criminosos investidos de autoridade estatal.
O julgamento dos acusados, portanto, tem uma dimensão civilizatória que extrapola a exemplar condenação dos eventuais culpados. O caso deve ser um marco divisor para o fortalecimento das instituições democráticas, mostrando quão cara deve ser a conta para os que se aventuram a desvirtuar a política de maneira criminosa.