Nos últimos tempos, cresceu a percepção de que a impunidade voltou a ganhar terreno. Não é apenas a constatação de que o combate à corrupção não é prioridade no governo de Jair Bolsonaro, mas a impressão de que houve um arrefecimento nessa batalha por parte do próprio Poder Judiciário. Por exemplo, levantamento do Estado mostrou que, no âmbito de operações que investigavam escândalos de corrupção, a Justiça anulou recentemente condenações que somavam 277 anos e 9 meses de prisão.
Cada caso tem suas especificidades, sendo arriscado fazer diagnósticos gerais a partir desses números. De toda forma, eles mostram que a percepção da população sobre a impunidade tem algum respaldo na realidade. De forma recorrente, os tribunais têm reconhecido nulidades em processos penais envolvendo grandes escândalos de corrupção.
No entanto, – e aqui está o aspecto muitas vezes esquecido –, decisões reconhecendo nulidades processuais não são a causa da impunidade. O Judiciário cumpre perfeitamente o seu papel constitucional quando, após verificar que a lei processual não foi cumprida, impede que ilegalidades produzam efeitos. Nulidades são exatamente isto: um mecanismo civilizatório para que atos investigativos e processuais fora dos limites legais não gerem consequências sobre os cidadãos. Trata-se de importante proteção do indivíduo ante o abuso do poder estatal.
Não é, portanto, a Justiça que fica mal com esse conjunto de condenações anuladas, como se os tribunais tivessem agido indevidamente. Quem fica rigorosamente mal são os órgãos policiais, o Ministério Público e os juízes que acompanharam os respectivos inquéritos e processos onde ocorreram tais nulidades. Foram eles que, tendo a missão de defender a lei, praticaram ou foram coniventes com atos contrários à lei, que depois ensejaram nulidades. No Estado Democrático de Direito, não cabe combater supostas ações ilegais praticando novas ilegalidades.
A lei deve ser defendida dentro da lei. Também vale para a Polícia, o Ministério Público e magistrados a máxima de que os fins não justificam os meios. Precisamente por isso, existe, no regime republicano, a figura das nulidades. Além de ferir direitos e garantias individuais, permitir que um ato ilegal (nulo) produzisse efeitos estimularia novas ilegalidades.
É preocupante, não há dúvida, esse conjunto de condenações anuladas. Longos trabalhos investigativos foram declarados inúteis. Mas há uma circunstância agravante. Esse padrão de comportamento – órgãos estatais que atuam fora da lei, acarretando nulidades processuais – tem sido recorrente ao longo dos anos. Veja-se, por exemplo, o histórico de operações policiais anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em razão de flagrantes ilegalidades: Castelo de Areia, Satiagraha e Boi Barrica. Muitas vezes, erros já identificados pela Justiça foram repetidos nas operações seguintes.
A cada decisão do STJ a respeito de nulidades processuais, tinha-se a esperança de que, nas futuras investigações, delegados federais e procuradores atuariam dentro dos limites estabelecidos pela lei e recordados pela Corte. No entanto, o conjunto de operações anuladas revela outra realidade. Renovam-se as operações e os processos, mas parece que as práticas permanecem as mesmas.
Em vez de um aprendizado, com uma atuação dos órgãos estatais em maior conformidade com a lei, o que se viu foi a promoção de verdadeira campanha difamatória contra as nulidades, como se elas fossem as responsáveis pela impunidade. Por exemplo, nas famosas Dez Medidas Anticorrupção, o pacote de propostas legislativas patrocinado por membros do Ministério Público, pretendeu-se, em absurda inversão de valores, reduzir o escopo das nulidades, com o objetivo de que atos ilegais (nulos) produzissem efeitos.
O problema não é a Justiça reconhecer as nulidades, quando elas existem. A grande catástrofe, verdadeiro retrocesso civilizatório, é essa produção insistente de nulidades por parte de agentes públicos que atuam à margem da lei.