Em janeiro de 2021 e, novamente, em janeiro de 2023, duas das maiores democracias do mundo sofreram agressões muito parecidas com o que normalmente designamos como tentativa de golpe de Estado.
Em janeiro de 2021, a agressão ocorreu nos Estados Unidos, orquestrada por este mesmo senhor, Donald Trump, que a Suprema Corte norte-americana, por uma unanimidade de nove votos a zero, considerou elegível. A Corte baseou-se na 14.ª emenda à Constituição, mas o fator que mais pesou na decisão, salvo melhor juízo, foi a série de retumbantes vitórias de Trump nas primárias do Partido Republicano. À primeira vista execrável, tal decisão comporta duas outras leituras. Uma, o desejo de evitar uma crise política de extrema gravidade, na hipótese de os magistrados se posicionarem contra uma candidatura aparentemente endossada por uma ampla maioria dos cidadãos. Outra, a norma jurídica in dubio pro reo: havendo margem para dúvida – ou seja, não se tendo absoluta certeza de que a arruaça promovida por trumpistas às portas do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021 –, a Corte teria mesmo de votar a favor dele.
O trumpismo é a encarnação numa pessoa da crise sistêmica que vem se manifestando nos Estados Unidos. Em dezembro de 2019, na edição comemorativa de seus 162 anos de publicação ininterrupta, a revista The Atlantic convocou um time de 25 grandes escritores e recorreu à expressão How to Stop a Civil War (Como Impedir uma Guerra Civil) para intitular sua matéria de capa. Em seu texto introdutório, denominado A Nation Coming Apart (Uma Nação Caindo aos Pedaços), o editor-geral, Jeffrey Goldberg, escreveu: “O 45.º presidente dos Estados Unidos é singularmente despreparado para o cargo e representa uma multifária ameaça às nossas instituições democráticas. E, no entanto, ele talvez não seja o desafio mais severo com que o nosso país se depara. As deficiências estruturais de nosso sistema democrático, que permitiram a chegada de um trapaceiro à Casa Branca – esse parece ser nosso mais grave desafio. Ou talvez a tribalização de nossa vida política, provocada por níveis patológicos de desigualdade, turbulência tecnológica e deslocamentos demográficos, e a persistente tenacidade do racismo. Ou, ainda, é possível que nós, como povo, já não sabemos quem somos ou qual é nosso propósito comum”.
O que Goldberg nos apresenta, como se vê, é uma perplexidade decorrente de uma possível crise sistêmica, catalisada por um velhaco bilionário. Embora alguns pontos de contato possam ser identificados, não é isso o que estamos vivendo no Brasil. Nossa crise se deve, claramente, à estagnação econômica, aos nossos obscenos índices de desigualdade social e de oportunidades e ao descrédito das engrenagens da representação política, notadamente do Congresso Nacional e dos partidos políticos. Um resumo de tudo isso é a perceptível ausência de lideranças competentes, íntegras e devotadas ao bem do País.
Ou seja, Jair Bolsonaro não encarna uma nação caindo aos pedaços. Com sua habitual precisão, o jurista Miguel Reale Júnior o retratou dias atrás neste jornal: “A tática bolsonarista consiste em juntar pessoas não a favor de algum programa ou projeto, mas sim contra algo configurado como ameaça, unindo desconhecidos por meio do medo de desgraça iminente” (Discurso revelador, 2/3/2024). De fato, foi o que ele fez, por exemplo, na reunião ministerial de 5 de julho de 2022: “Eu peço todo dia: não deixe o povo experimentar o que é comunismo, p**ra! Meu Deus, não deixe o povo experimentar o comunismo” (ibidem). Não menos precisa, a jornalista Eliane Cantanhêde escreveu na página A9 do dia 5/3, sob o título Entre a vida e a morte: “O raio X que o Tribunal de Contas da União fez (...) sobre armas e munições em mãos de civis é estarrecedor e fecha um círculo de vida e morte da era Jair Bolsonaro no Brasil: o relatório final da CPI da Covid, as investigações e provas da articulação de um golpe e, agora, o resultado detalhado de sua política pró-armas”.
Crises tão portentosas não brotam naturalmente da terra, dos sofrimentos e angústias que atormentam os desprovidos da sorte. Mesmo no caso dos Estados Unidos, que cheguei ao extremo de descrever como sistêmica, nenhum grupo de fanáticos se mobilizaria sponte sua para atacar a sede do Poder Legislativo. Lá, como cá, é sumamente improvável que algum grupo de políticos “normais”, carentes de recursos, representantes de bases sociais modestas, extravasasse dessa forma algum sentimento irracional de ódio que eventualmente o acometesse.
Noves fora, somos forçados a concluir que arruaceiros como aqueles a que acima me referi só se organizam em duas hipóteses: quando se identificam com líderes ou pseudolíderes que controlam recursos suficientes para desequilibrar o processo democrático normal (um bilionário de Nova York, um indivíduo qualquer com uma mentalidade militar distorcida); ou, como escreveu Goldberg, quando todos nós, como povo, “já não sabemos quem somos ou qual é nosso propósito comum”.
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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS