Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A falta que um muro de arrimo nos faz


A quem crê piamente na ‘robustez’ de nossas instituições, lembro que até o poderoso general Geisel precisou se precaver contra um golpe

Por Bolívar Lamounier

Se fôssemos julgar pelos últimos quatro ou cinco anos, nossa conclusão só poderia ser a de que a maioria dos brasileiros, mesmo os poliglotas e os pertencentes às camadas ditas “nobres”, adora o debate público, não porque tenha grande interesse no desenvolvimento do País, mas porque seus maiores deleites são maldizer as instituições e insultar adversários.

Confesso que não tenho mais paciência para isso. Dou atenção a tais embates – que tiveram seu ápice na eleição presidencial de 2018 – por razões estritamente profissionais. Pessoalmente, posso manifestar desânimo, resmungar e até grunhir quando me deparo com algum fato público abominável – e os há em abundância; mas deixo para os desocupados o contentamento de martelar sandices como essas dos últimos anos.

Nossa história ostenta uma pândega simetria. Cerca de 80 anos atrás, os poliglotas e nobres a que acima me referi, representando-se como combatentes das justas medievais, abarrotavam-se nos melhores salões a fim de esgrimir no mais castiço português a contraposição de suas teses sobre o que significava “ser brasileiro”. Era raro irem à janela para dar uma olhada no ambiente externo; se lá fossem, não veriam muita coisa, pois a iluminação era escassa, uns poucos pobretões matavam o tempo e a maioria da população não estava lá, estava no interior, tentando sobreviver como trabalhadores rurais.

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Nos salões, os que se mantinham em suas poltronas acompanhavam a liça, liderada, de um lado, por um grande historiador, Sérgio Buarque de Holanda, do outro pelo poeta Cassiano Ricardo, louvaminheiro-mor da ditadura Vargas. Sérgio defendia que o traço que nos distinguia como povo era um legado português, a “cordialidade”, frisando que tomava esse termo no sentido etimológico (aquilo que vem do coração, que tanto pode ser um jeito pacífico ou um jeito odiento); Cassiano esbravejava que o sentido profundo de nossa cordialidade era não sermos propensos ao conflito, fruto de nossa abundância de recursos, da quantidade de terras, e, portanto, em última análise, da vontade de Deus.

Subjacente a essa elegante esgrima, o que encontramos é a peculiar recusa brasileira em entender que sociedades tanto podem progredir como regredir. Se avanços acontecem, retrocessos, recuos e rupturas também podem acontecer. Já usei este espaço algumas vezes para lembrar que a mesma Argentina que um dia ostentou uma renda anual per capita no mesmo nível da de Espanha, Itália, Alemanha e Suécia, na hora atual marcha célere para se tornar um dos países mais pobres do hemisfério, com uma inflação anual perigando bater nos três dígitos.

E daí?, poderá perguntar meu impaciente leitor. Daí duas coisas. Primeiro, sabemos todos que nossa democracia é defeituosa. Quem preferir viver sob uma ditadura, em vez de contribuir para o aprimoramento desta democracia que bem ou mal temos, só o que tem a fazer é escolher a linha aérea de sua preferência.

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Segundo, ressaltar que somos um país sem muro de arrimo. Muro de arrimo, como também sabemos, é uma barreira formada por milhares ou milhões de pedras. Imaginemos, contudo, um arrimo formado não por pedras, mas por milhões de seres humanos – vale dizer, de cidadãos. Para tornar compreensível essa sugestão, permitam-me acrescentar dois pontos. Nossas instituições políticas são inexpugnáveis, invulneráveis, imunes a uma queda como a sofrida pela Argentina durante o século 20. Aos que acreditam piamente na “robustez” de nossas instituições, lembrarei apenas que, mesmo no período dos governos militares, até o poderoso general Ernesto Geisel precisou se precaver contra um golpe. O segundo ponto é nossa distribuição de renda. Ninguém ignora que o conjunto formado pelos 10% mais pobres de nosso país é centenas de vezes maior que o constituído pelos 10% mais ricos. Ou, abrindo um breve espaço para a linguagem jornalística corrente, que os descamisados que passam o dia catando ossos e restos de comida para a sopa da noite são um colossal múltiplo daqueles que vez por outra se reúnem para saborear um camarão e um bom vinho. Entre os de cima e os de baixo, nada há que possa escorar as instituições políticas. Para termos mais segurança, alguns milhões de integrantes das camadas médias teriam de se preparar para uma função de arrimo. Mas, por favor, não me entendam mal: no Brasil (como na maioria dos países semelhantes ao nosso) os desacertos e retrocessos constitucionais são mais frequentemente causados por aqueles, fardados ou não, que preferem crustáceos a sopas de ossos.

Um esclarecimento final. Meu propósito neste artigo não foi entoar cantilenas de Cassandra. Torço para que o próximo governo seja capaz de nos tirar deste atoleiro em que nos meteram. Sempre tive ressalvas a respeito do sr. Lula, mas reconheço que ele amadureceu no transcurso dos últimos 20 anos; reconheço, principalmente, que agora ele parece compenetrado de que nossa primeiríssima prioridade é desarmar os ânimos, ou seja, repor nossa vida pública num ambiente de comedimento e bons modos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Se fôssemos julgar pelos últimos quatro ou cinco anos, nossa conclusão só poderia ser a de que a maioria dos brasileiros, mesmo os poliglotas e os pertencentes às camadas ditas “nobres”, adora o debate público, não porque tenha grande interesse no desenvolvimento do País, mas porque seus maiores deleites são maldizer as instituições e insultar adversários.

Confesso que não tenho mais paciência para isso. Dou atenção a tais embates – que tiveram seu ápice na eleição presidencial de 2018 – por razões estritamente profissionais. Pessoalmente, posso manifestar desânimo, resmungar e até grunhir quando me deparo com algum fato público abominável – e os há em abundância; mas deixo para os desocupados o contentamento de martelar sandices como essas dos últimos anos.

Nossa história ostenta uma pândega simetria. Cerca de 80 anos atrás, os poliglotas e nobres a que acima me referi, representando-se como combatentes das justas medievais, abarrotavam-se nos melhores salões a fim de esgrimir no mais castiço português a contraposição de suas teses sobre o que significava “ser brasileiro”. Era raro irem à janela para dar uma olhada no ambiente externo; se lá fossem, não veriam muita coisa, pois a iluminação era escassa, uns poucos pobretões matavam o tempo e a maioria da população não estava lá, estava no interior, tentando sobreviver como trabalhadores rurais.

Nos salões, os que se mantinham em suas poltronas acompanhavam a liça, liderada, de um lado, por um grande historiador, Sérgio Buarque de Holanda, do outro pelo poeta Cassiano Ricardo, louvaminheiro-mor da ditadura Vargas. Sérgio defendia que o traço que nos distinguia como povo era um legado português, a “cordialidade”, frisando que tomava esse termo no sentido etimológico (aquilo que vem do coração, que tanto pode ser um jeito pacífico ou um jeito odiento); Cassiano esbravejava que o sentido profundo de nossa cordialidade era não sermos propensos ao conflito, fruto de nossa abundância de recursos, da quantidade de terras, e, portanto, em última análise, da vontade de Deus.

Subjacente a essa elegante esgrima, o que encontramos é a peculiar recusa brasileira em entender que sociedades tanto podem progredir como regredir. Se avanços acontecem, retrocessos, recuos e rupturas também podem acontecer. Já usei este espaço algumas vezes para lembrar que a mesma Argentina que um dia ostentou uma renda anual per capita no mesmo nível da de Espanha, Itália, Alemanha e Suécia, na hora atual marcha célere para se tornar um dos países mais pobres do hemisfério, com uma inflação anual perigando bater nos três dígitos.

E daí?, poderá perguntar meu impaciente leitor. Daí duas coisas. Primeiro, sabemos todos que nossa democracia é defeituosa. Quem preferir viver sob uma ditadura, em vez de contribuir para o aprimoramento desta democracia que bem ou mal temos, só o que tem a fazer é escolher a linha aérea de sua preferência.

Segundo, ressaltar que somos um país sem muro de arrimo. Muro de arrimo, como também sabemos, é uma barreira formada por milhares ou milhões de pedras. Imaginemos, contudo, um arrimo formado não por pedras, mas por milhões de seres humanos – vale dizer, de cidadãos. Para tornar compreensível essa sugestão, permitam-me acrescentar dois pontos. Nossas instituições políticas são inexpugnáveis, invulneráveis, imunes a uma queda como a sofrida pela Argentina durante o século 20. Aos que acreditam piamente na “robustez” de nossas instituições, lembrarei apenas que, mesmo no período dos governos militares, até o poderoso general Ernesto Geisel precisou se precaver contra um golpe. O segundo ponto é nossa distribuição de renda. Ninguém ignora que o conjunto formado pelos 10% mais pobres de nosso país é centenas de vezes maior que o constituído pelos 10% mais ricos. Ou, abrindo um breve espaço para a linguagem jornalística corrente, que os descamisados que passam o dia catando ossos e restos de comida para a sopa da noite são um colossal múltiplo daqueles que vez por outra se reúnem para saborear um camarão e um bom vinho. Entre os de cima e os de baixo, nada há que possa escorar as instituições políticas. Para termos mais segurança, alguns milhões de integrantes das camadas médias teriam de se preparar para uma função de arrimo. Mas, por favor, não me entendam mal: no Brasil (como na maioria dos países semelhantes ao nosso) os desacertos e retrocessos constitucionais são mais frequentemente causados por aqueles, fardados ou não, que preferem crustáceos a sopas de ossos.

Um esclarecimento final. Meu propósito neste artigo não foi entoar cantilenas de Cassandra. Torço para que o próximo governo seja capaz de nos tirar deste atoleiro em que nos meteram. Sempre tive ressalvas a respeito do sr. Lula, mas reconheço que ele amadureceu no transcurso dos últimos 20 anos; reconheço, principalmente, que agora ele parece compenetrado de que nossa primeiríssima prioridade é desarmar os ânimos, ou seja, repor nossa vida pública num ambiente de comedimento e bons modos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Se fôssemos julgar pelos últimos quatro ou cinco anos, nossa conclusão só poderia ser a de que a maioria dos brasileiros, mesmo os poliglotas e os pertencentes às camadas ditas “nobres”, adora o debate público, não porque tenha grande interesse no desenvolvimento do País, mas porque seus maiores deleites são maldizer as instituições e insultar adversários.

Confesso que não tenho mais paciência para isso. Dou atenção a tais embates – que tiveram seu ápice na eleição presidencial de 2018 – por razões estritamente profissionais. Pessoalmente, posso manifestar desânimo, resmungar e até grunhir quando me deparo com algum fato público abominável – e os há em abundância; mas deixo para os desocupados o contentamento de martelar sandices como essas dos últimos anos.

Nossa história ostenta uma pândega simetria. Cerca de 80 anos atrás, os poliglotas e nobres a que acima me referi, representando-se como combatentes das justas medievais, abarrotavam-se nos melhores salões a fim de esgrimir no mais castiço português a contraposição de suas teses sobre o que significava “ser brasileiro”. Era raro irem à janela para dar uma olhada no ambiente externo; se lá fossem, não veriam muita coisa, pois a iluminação era escassa, uns poucos pobretões matavam o tempo e a maioria da população não estava lá, estava no interior, tentando sobreviver como trabalhadores rurais.

Nos salões, os que se mantinham em suas poltronas acompanhavam a liça, liderada, de um lado, por um grande historiador, Sérgio Buarque de Holanda, do outro pelo poeta Cassiano Ricardo, louvaminheiro-mor da ditadura Vargas. Sérgio defendia que o traço que nos distinguia como povo era um legado português, a “cordialidade”, frisando que tomava esse termo no sentido etimológico (aquilo que vem do coração, que tanto pode ser um jeito pacífico ou um jeito odiento); Cassiano esbravejava que o sentido profundo de nossa cordialidade era não sermos propensos ao conflito, fruto de nossa abundância de recursos, da quantidade de terras, e, portanto, em última análise, da vontade de Deus.

Subjacente a essa elegante esgrima, o que encontramos é a peculiar recusa brasileira em entender que sociedades tanto podem progredir como regredir. Se avanços acontecem, retrocessos, recuos e rupturas também podem acontecer. Já usei este espaço algumas vezes para lembrar que a mesma Argentina que um dia ostentou uma renda anual per capita no mesmo nível da de Espanha, Itália, Alemanha e Suécia, na hora atual marcha célere para se tornar um dos países mais pobres do hemisfério, com uma inflação anual perigando bater nos três dígitos.

E daí?, poderá perguntar meu impaciente leitor. Daí duas coisas. Primeiro, sabemos todos que nossa democracia é defeituosa. Quem preferir viver sob uma ditadura, em vez de contribuir para o aprimoramento desta democracia que bem ou mal temos, só o que tem a fazer é escolher a linha aérea de sua preferência.

Segundo, ressaltar que somos um país sem muro de arrimo. Muro de arrimo, como também sabemos, é uma barreira formada por milhares ou milhões de pedras. Imaginemos, contudo, um arrimo formado não por pedras, mas por milhões de seres humanos – vale dizer, de cidadãos. Para tornar compreensível essa sugestão, permitam-me acrescentar dois pontos. Nossas instituições políticas são inexpugnáveis, invulneráveis, imunes a uma queda como a sofrida pela Argentina durante o século 20. Aos que acreditam piamente na “robustez” de nossas instituições, lembrarei apenas que, mesmo no período dos governos militares, até o poderoso general Ernesto Geisel precisou se precaver contra um golpe. O segundo ponto é nossa distribuição de renda. Ninguém ignora que o conjunto formado pelos 10% mais pobres de nosso país é centenas de vezes maior que o constituído pelos 10% mais ricos. Ou, abrindo um breve espaço para a linguagem jornalística corrente, que os descamisados que passam o dia catando ossos e restos de comida para a sopa da noite são um colossal múltiplo daqueles que vez por outra se reúnem para saborear um camarão e um bom vinho. Entre os de cima e os de baixo, nada há que possa escorar as instituições políticas. Para termos mais segurança, alguns milhões de integrantes das camadas médias teriam de se preparar para uma função de arrimo. Mas, por favor, não me entendam mal: no Brasil (como na maioria dos países semelhantes ao nosso) os desacertos e retrocessos constitucionais são mais frequentemente causados por aqueles, fardados ou não, que preferem crustáceos a sopas de ossos.

Um esclarecimento final. Meu propósito neste artigo não foi entoar cantilenas de Cassandra. Torço para que o próximo governo seja capaz de nos tirar deste atoleiro em que nos meteram. Sempre tive ressalvas a respeito do sr. Lula, mas reconheço que ele amadureceu no transcurso dos últimos 20 anos; reconheço, principalmente, que agora ele parece compenetrado de que nossa primeiríssima prioridade é desarmar os ânimos, ou seja, repor nossa vida pública num ambiente de comedimento e bons modos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Se fôssemos julgar pelos últimos quatro ou cinco anos, nossa conclusão só poderia ser a de que a maioria dos brasileiros, mesmo os poliglotas e os pertencentes às camadas ditas “nobres”, adora o debate público, não porque tenha grande interesse no desenvolvimento do País, mas porque seus maiores deleites são maldizer as instituições e insultar adversários.

Confesso que não tenho mais paciência para isso. Dou atenção a tais embates – que tiveram seu ápice na eleição presidencial de 2018 – por razões estritamente profissionais. Pessoalmente, posso manifestar desânimo, resmungar e até grunhir quando me deparo com algum fato público abominável – e os há em abundância; mas deixo para os desocupados o contentamento de martelar sandices como essas dos últimos anos.

Nossa história ostenta uma pândega simetria. Cerca de 80 anos atrás, os poliglotas e nobres a que acima me referi, representando-se como combatentes das justas medievais, abarrotavam-se nos melhores salões a fim de esgrimir no mais castiço português a contraposição de suas teses sobre o que significava “ser brasileiro”. Era raro irem à janela para dar uma olhada no ambiente externo; se lá fossem, não veriam muita coisa, pois a iluminação era escassa, uns poucos pobretões matavam o tempo e a maioria da população não estava lá, estava no interior, tentando sobreviver como trabalhadores rurais.

Nos salões, os que se mantinham em suas poltronas acompanhavam a liça, liderada, de um lado, por um grande historiador, Sérgio Buarque de Holanda, do outro pelo poeta Cassiano Ricardo, louvaminheiro-mor da ditadura Vargas. Sérgio defendia que o traço que nos distinguia como povo era um legado português, a “cordialidade”, frisando que tomava esse termo no sentido etimológico (aquilo que vem do coração, que tanto pode ser um jeito pacífico ou um jeito odiento); Cassiano esbravejava que o sentido profundo de nossa cordialidade era não sermos propensos ao conflito, fruto de nossa abundância de recursos, da quantidade de terras, e, portanto, em última análise, da vontade de Deus.

Subjacente a essa elegante esgrima, o que encontramos é a peculiar recusa brasileira em entender que sociedades tanto podem progredir como regredir. Se avanços acontecem, retrocessos, recuos e rupturas também podem acontecer. Já usei este espaço algumas vezes para lembrar que a mesma Argentina que um dia ostentou uma renda anual per capita no mesmo nível da de Espanha, Itália, Alemanha e Suécia, na hora atual marcha célere para se tornar um dos países mais pobres do hemisfério, com uma inflação anual perigando bater nos três dígitos.

E daí?, poderá perguntar meu impaciente leitor. Daí duas coisas. Primeiro, sabemos todos que nossa democracia é defeituosa. Quem preferir viver sob uma ditadura, em vez de contribuir para o aprimoramento desta democracia que bem ou mal temos, só o que tem a fazer é escolher a linha aérea de sua preferência.

Segundo, ressaltar que somos um país sem muro de arrimo. Muro de arrimo, como também sabemos, é uma barreira formada por milhares ou milhões de pedras. Imaginemos, contudo, um arrimo formado não por pedras, mas por milhões de seres humanos – vale dizer, de cidadãos. Para tornar compreensível essa sugestão, permitam-me acrescentar dois pontos. Nossas instituições políticas são inexpugnáveis, invulneráveis, imunes a uma queda como a sofrida pela Argentina durante o século 20. Aos que acreditam piamente na “robustez” de nossas instituições, lembrarei apenas que, mesmo no período dos governos militares, até o poderoso general Ernesto Geisel precisou se precaver contra um golpe. O segundo ponto é nossa distribuição de renda. Ninguém ignora que o conjunto formado pelos 10% mais pobres de nosso país é centenas de vezes maior que o constituído pelos 10% mais ricos. Ou, abrindo um breve espaço para a linguagem jornalística corrente, que os descamisados que passam o dia catando ossos e restos de comida para a sopa da noite são um colossal múltiplo daqueles que vez por outra se reúnem para saborear um camarão e um bom vinho. Entre os de cima e os de baixo, nada há que possa escorar as instituições políticas. Para termos mais segurança, alguns milhões de integrantes das camadas médias teriam de se preparar para uma função de arrimo. Mas, por favor, não me entendam mal: no Brasil (como na maioria dos países semelhantes ao nosso) os desacertos e retrocessos constitucionais são mais frequentemente causados por aqueles, fardados ou não, que preferem crustáceos a sopas de ossos.

Um esclarecimento final. Meu propósito neste artigo não foi entoar cantilenas de Cassandra. Torço para que o próximo governo seja capaz de nos tirar deste atoleiro em que nos meteram. Sempre tive ressalvas a respeito do sr. Lula, mas reconheço que ele amadureceu no transcurso dos últimos 20 anos; reconheço, principalmente, que agora ele parece compenetrado de que nossa primeiríssima prioridade é desarmar os ânimos, ou seja, repor nossa vida pública num ambiente de comedimento e bons modos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Se fôssemos julgar pelos últimos quatro ou cinco anos, nossa conclusão só poderia ser a de que a maioria dos brasileiros, mesmo os poliglotas e os pertencentes às camadas ditas “nobres”, adora o debate público, não porque tenha grande interesse no desenvolvimento do País, mas porque seus maiores deleites são maldizer as instituições e insultar adversários.

Confesso que não tenho mais paciência para isso. Dou atenção a tais embates – que tiveram seu ápice na eleição presidencial de 2018 – por razões estritamente profissionais. Pessoalmente, posso manifestar desânimo, resmungar e até grunhir quando me deparo com algum fato público abominável – e os há em abundância; mas deixo para os desocupados o contentamento de martelar sandices como essas dos últimos anos.

Nossa história ostenta uma pândega simetria. Cerca de 80 anos atrás, os poliglotas e nobres a que acima me referi, representando-se como combatentes das justas medievais, abarrotavam-se nos melhores salões a fim de esgrimir no mais castiço português a contraposição de suas teses sobre o que significava “ser brasileiro”. Era raro irem à janela para dar uma olhada no ambiente externo; se lá fossem, não veriam muita coisa, pois a iluminação era escassa, uns poucos pobretões matavam o tempo e a maioria da população não estava lá, estava no interior, tentando sobreviver como trabalhadores rurais.

Nos salões, os que se mantinham em suas poltronas acompanhavam a liça, liderada, de um lado, por um grande historiador, Sérgio Buarque de Holanda, do outro pelo poeta Cassiano Ricardo, louvaminheiro-mor da ditadura Vargas. Sérgio defendia que o traço que nos distinguia como povo era um legado português, a “cordialidade”, frisando que tomava esse termo no sentido etimológico (aquilo que vem do coração, que tanto pode ser um jeito pacífico ou um jeito odiento); Cassiano esbravejava que o sentido profundo de nossa cordialidade era não sermos propensos ao conflito, fruto de nossa abundância de recursos, da quantidade de terras, e, portanto, em última análise, da vontade de Deus.

Subjacente a essa elegante esgrima, o que encontramos é a peculiar recusa brasileira em entender que sociedades tanto podem progredir como regredir. Se avanços acontecem, retrocessos, recuos e rupturas também podem acontecer. Já usei este espaço algumas vezes para lembrar que a mesma Argentina que um dia ostentou uma renda anual per capita no mesmo nível da de Espanha, Itália, Alemanha e Suécia, na hora atual marcha célere para se tornar um dos países mais pobres do hemisfério, com uma inflação anual perigando bater nos três dígitos.

E daí?, poderá perguntar meu impaciente leitor. Daí duas coisas. Primeiro, sabemos todos que nossa democracia é defeituosa. Quem preferir viver sob uma ditadura, em vez de contribuir para o aprimoramento desta democracia que bem ou mal temos, só o que tem a fazer é escolher a linha aérea de sua preferência.

Segundo, ressaltar que somos um país sem muro de arrimo. Muro de arrimo, como também sabemos, é uma barreira formada por milhares ou milhões de pedras. Imaginemos, contudo, um arrimo formado não por pedras, mas por milhões de seres humanos – vale dizer, de cidadãos. Para tornar compreensível essa sugestão, permitam-me acrescentar dois pontos. Nossas instituições políticas são inexpugnáveis, invulneráveis, imunes a uma queda como a sofrida pela Argentina durante o século 20. Aos que acreditam piamente na “robustez” de nossas instituições, lembrarei apenas que, mesmo no período dos governos militares, até o poderoso general Ernesto Geisel precisou se precaver contra um golpe. O segundo ponto é nossa distribuição de renda. Ninguém ignora que o conjunto formado pelos 10% mais pobres de nosso país é centenas de vezes maior que o constituído pelos 10% mais ricos. Ou, abrindo um breve espaço para a linguagem jornalística corrente, que os descamisados que passam o dia catando ossos e restos de comida para a sopa da noite são um colossal múltiplo daqueles que vez por outra se reúnem para saborear um camarão e um bom vinho. Entre os de cima e os de baixo, nada há que possa escorar as instituições políticas. Para termos mais segurança, alguns milhões de integrantes das camadas médias teriam de se preparar para uma função de arrimo. Mas, por favor, não me entendam mal: no Brasil (como na maioria dos países semelhantes ao nosso) os desacertos e retrocessos constitucionais são mais frequentemente causados por aqueles, fardados ou não, que preferem crustáceos a sopas de ossos.

Um esclarecimento final. Meu propósito neste artigo não foi entoar cantilenas de Cassandra. Torço para que o próximo governo seja capaz de nos tirar deste atoleiro em que nos meteram. Sempre tive ressalvas a respeito do sr. Lula, mas reconheço que ele amadureceu no transcurso dos últimos 20 anos; reconheço, principalmente, que agora ele parece compenetrado de que nossa primeiríssima prioridade é desarmar os ânimos, ou seja, repor nossa vida pública num ambiente de comedimento e bons modos.

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Opinião por Bolívar Lamounier

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