Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A primeira classe também cai


O quadro infesto, praticamente sinônimo de estagnação, já deveria ser suficiente para meter medo, não fora toda a tragédia que ele oculta

Por Bolívar Lamounier

A tortura de quem escreve para o público é a véspera, quando bate o fantasma da repetição.

Desde anos atrás, toda a imprensa do mundo discorreu sobre um confuso conceito de “populismo” todos os dias do ano. Nomes como Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (Índia) se espicharam nos sofás de nossas salas e nada faz crer que tão cedo consigamos apontar-lhes o caminho da rua. A tentativa russa de massacrar a Ucrânia e a guerra de Israel contra os grupos terroristas mantidos pelo Irã vieram complementar e elevar à enésima potência a tortura do “populismo”.

No Brasil, temos vivido sob o fantasma da “crise fiscal”. Fantasma, sandice, dê-se-lhe o nome que se quiser, mas no fundo a questão é muito simples. É uma batalha diária para equilibrar a receita e a despesa, proeza quase irrealizável, uma vez que enchemos um prato da balança com gastança e desperdício e o outro com irresponsabilidade, miopia e falta de coragem para reformar a máquina do Estado. Esse quadro infesto, praticamente sinônimo de estagnação, já deveria ser suficiente para meter medo, não fora toda a tragédia que ele oculta. Discorrer sobre o sistema de ensino, a quase metade das residências sem conexão com as redes públicas de esgoto, e a chusma de quase desocupados que recebem supersalários em Brasília é perda de tempo. Nesta semana o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou que, no frigir dos ovos, “o tributo é o mesmo para assalariados e ultrarricos” (Estadão, 30/10). Divulgou-se também que cerca de 1,5 milhão de habitantes da maior cidade do Brasil e da América do Sul mal consegue comer.

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Crise fiscal: o termo indica que estamos nos contorcendo para obrigar a receita e a despesa a andarem juntas. Nossas autoridades, com as exceções de praxe, odeiam o capital privado, doméstico ou internacional, e se recusam a adotar um modelo econômico mais aberto ao exterior. Já seria surrealista se elas se desapegassem da fixação, originária da Revolução de 1930 e da ditadura varguista, de que um país só é autônomo e digno de respeito se conseguir promover o crescimento valendo-se basicamente de empresas públicas. No mês passado (13/10), o economista Maílson da Nóbrega e João Pedro Leme, ambos da Tendências Consultoria, publicaram neste jornal um primoroso artigo mostrando que nas condições atuais, e principalmente com as regras orçamentárias plantadas na Constituição de 1988, poderemos chegar a uma “severa crise fiscal” num prazo relativamente curto. Com essa formulação relativamente branda, os autores, consciente ou inconscientemente, indicaram que a crise decorrente de uma “crise severa” pode ser uma catástrofe social. Foi seguramente para nos trazer algum alívio que o economista Gustavo Franco, um dos pais do Real, sugeriu que a situação de médio prazo pode melhorar se devotarmos quantias bem maiores à área do saneamento. Así lo quiera Dios! O que não podemos é fugir de uma verdade que qualquer criança de 12 anos conhece: a primeira classe também cai. Não há notícia de uma aeronave cuja parte anterior tenha despencado sem levar consigo a da frente, com o piloto no seu lugar, conduzindo-a como sempre faz, voando lépido e fagueiro.

Parece-me essencial acrescentar uma consideração mais ampla ao que acima vai exposto. Existem fortes indícios de que nós, brasileiros, estamos perdendo uma parte importante de nossa capacidade de pensar. Em tempos idos, podíamos nos dar o direito de sermos ingênuos, pois toda a nossa mediocridade parecia ter aqui aportado nos porões das caravelas portuguesas. A lavoura canavieira produzia praticamente todo o açúcar de que o mundo demandava, os senhores de engenho constituíam uma primeira classe inexpugnável. Com o ouro foi um pouco diferente, mas depois o café reeditou o enredo canavieiro. Supriu café suficiente para satisfazer quase todo o mundo, mas não teve fôlego para sustentar a competição com outros centros produtores que surgiam por toda parte. O jeito foi o Estado bancar o estrago e encaixar os proprietários daqueles magníficos palacetes da Avenida Paulista nos altos escalões do Estado. Fórmula de pouca duração que deixou em seu rastro um grave conflito entre regiões produtoras e não produtoras e, finalmente, a contrafação batizada como Revolução de 1930.

Hoje, tentar compreender a mentalidade que emergiu de tudo isso parece nos causar tédio. Caminhando para lá e para cá como sonâmbulos, nós hoje nem nos damos conta de que o cenário externo não é reconfortante. Embora tenhamos escapado de uma recessão global em 2024-2025, o Panorama Econômico Global do Fundo Monetário Internacional (FMI) faz um enérgico alerta quanto aos riscos de baixar a guarda: ao contrário, afirma, é hora de fortalecer os fundamentos para o crescimento futuro.

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O fecho destas reflexões só pode ser a radicalização política nos Estados Unidos e a possível reeleição de um senhor já unanimemente condenado por golpismo político e obcecado pelo protecionismo.

*

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A tortura de quem escreve para o público é a véspera, quando bate o fantasma da repetição.

Desde anos atrás, toda a imprensa do mundo discorreu sobre um confuso conceito de “populismo” todos os dias do ano. Nomes como Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (Índia) se espicharam nos sofás de nossas salas e nada faz crer que tão cedo consigamos apontar-lhes o caminho da rua. A tentativa russa de massacrar a Ucrânia e a guerra de Israel contra os grupos terroristas mantidos pelo Irã vieram complementar e elevar à enésima potência a tortura do “populismo”.

No Brasil, temos vivido sob o fantasma da “crise fiscal”. Fantasma, sandice, dê-se-lhe o nome que se quiser, mas no fundo a questão é muito simples. É uma batalha diária para equilibrar a receita e a despesa, proeza quase irrealizável, uma vez que enchemos um prato da balança com gastança e desperdício e o outro com irresponsabilidade, miopia e falta de coragem para reformar a máquina do Estado. Esse quadro infesto, praticamente sinônimo de estagnação, já deveria ser suficiente para meter medo, não fora toda a tragédia que ele oculta. Discorrer sobre o sistema de ensino, a quase metade das residências sem conexão com as redes públicas de esgoto, e a chusma de quase desocupados que recebem supersalários em Brasília é perda de tempo. Nesta semana o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou que, no frigir dos ovos, “o tributo é o mesmo para assalariados e ultrarricos” (Estadão, 30/10). Divulgou-se também que cerca de 1,5 milhão de habitantes da maior cidade do Brasil e da América do Sul mal consegue comer.

Crise fiscal: o termo indica que estamos nos contorcendo para obrigar a receita e a despesa a andarem juntas. Nossas autoridades, com as exceções de praxe, odeiam o capital privado, doméstico ou internacional, e se recusam a adotar um modelo econômico mais aberto ao exterior. Já seria surrealista se elas se desapegassem da fixação, originária da Revolução de 1930 e da ditadura varguista, de que um país só é autônomo e digno de respeito se conseguir promover o crescimento valendo-se basicamente de empresas públicas. No mês passado (13/10), o economista Maílson da Nóbrega e João Pedro Leme, ambos da Tendências Consultoria, publicaram neste jornal um primoroso artigo mostrando que nas condições atuais, e principalmente com as regras orçamentárias plantadas na Constituição de 1988, poderemos chegar a uma “severa crise fiscal” num prazo relativamente curto. Com essa formulação relativamente branda, os autores, consciente ou inconscientemente, indicaram que a crise decorrente de uma “crise severa” pode ser uma catástrofe social. Foi seguramente para nos trazer algum alívio que o economista Gustavo Franco, um dos pais do Real, sugeriu que a situação de médio prazo pode melhorar se devotarmos quantias bem maiores à área do saneamento. Así lo quiera Dios! O que não podemos é fugir de uma verdade que qualquer criança de 12 anos conhece: a primeira classe também cai. Não há notícia de uma aeronave cuja parte anterior tenha despencado sem levar consigo a da frente, com o piloto no seu lugar, conduzindo-a como sempre faz, voando lépido e fagueiro.

Parece-me essencial acrescentar uma consideração mais ampla ao que acima vai exposto. Existem fortes indícios de que nós, brasileiros, estamos perdendo uma parte importante de nossa capacidade de pensar. Em tempos idos, podíamos nos dar o direito de sermos ingênuos, pois toda a nossa mediocridade parecia ter aqui aportado nos porões das caravelas portuguesas. A lavoura canavieira produzia praticamente todo o açúcar de que o mundo demandava, os senhores de engenho constituíam uma primeira classe inexpugnável. Com o ouro foi um pouco diferente, mas depois o café reeditou o enredo canavieiro. Supriu café suficiente para satisfazer quase todo o mundo, mas não teve fôlego para sustentar a competição com outros centros produtores que surgiam por toda parte. O jeito foi o Estado bancar o estrago e encaixar os proprietários daqueles magníficos palacetes da Avenida Paulista nos altos escalões do Estado. Fórmula de pouca duração que deixou em seu rastro um grave conflito entre regiões produtoras e não produtoras e, finalmente, a contrafação batizada como Revolução de 1930.

Hoje, tentar compreender a mentalidade que emergiu de tudo isso parece nos causar tédio. Caminhando para lá e para cá como sonâmbulos, nós hoje nem nos damos conta de que o cenário externo não é reconfortante. Embora tenhamos escapado de uma recessão global em 2024-2025, o Panorama Econômico Global do Fundo Monetário Internacional (FMI) faz um enérgico alerta quanto aos riscos de baixar a guarda: ao contrário, afirma, é hora de fortalecer os fundamentos para o crescimento futuro.

O fecho destas reflexões só pode ser a radicalização política nos Estados Unidos e a possível reeleição de um senhor já unanimemente condenado por golpismo político e obcecado pelo protecionismo.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A tortura de quem escreve para o público é a véspera, quando bate o fantasma da repetição.

Desde anos atrás, toda a imprensa do mundo discorreu sobre um confuso conceito de “populismo” todos os dias do ano. Nomes como Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (Índia) se espicharam nos sofás de nossas salas e nada faz crer que tão cedo consigamos apontar-lhes o caminho da rua. A tentativa russa de massacrar a Ucrânia e a guerra de Israel contra os grupos terroristas mantidos pelo Irã vieram complementar e elevar à enésima potência a tortura do “populismo”.

No Brasil, temos vivido sob o fantasma da “crise fiscal”. Fantasma, sandice, dê-se-lhe o nome que se quiser, mas no fundo a questão é muito simples. É uma batalha diária para equilibrar a receita e a despesa, proeza quase irrealizável, uma vez que enchemos um prato da balança com gastança e desperdício e o outro com irresponsabilidade, miopia e falta de coragem para reformar a máquina do Estado. Esse quadro infesto, praticamente sinônimo de estagnação, já deveria ser suficiente para meter medo, não fora toda a tragédia que ele oculta. Discorrer sobre o sistema de ensino, a quase metade das residências sem conexão com as redes públicas de esgoto, e a chusma de quase desocupados que recebem supersalários em Brasília é perda de tempo. Nesta semana o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou que, no frigir dos ovos, “o tributo é o mesmo para assalariados e ultrarricos” (Estadão, 30/10). Divulgou-se também que cerca de 1,5 milhão de habitantes da maior cidade do Brasil e da América do Sul mal consegue comer.

Crise fiscal: o termo indica que estamos nos contorcendo para obrigar a receita e a despesa a andarem juntas. Nossas autoridades, com as exceções de praxe, odeiam o capital privado, doméstico ou internacional, e se recusam a adotar um modelo econômico mais aberto ao exterior. Já seria surrealista se elas se desapegassem da fixação, originária da Revolução de 1930 e da ditadura varguista, de que um país só é autônomo e digno de respeito se conseguir promover o crescimento valendo-se basicamente de empresas públicas. No mês passado (13/10), o economista Maílson da Nóbrega e João Pedro Leme, ambos da Tendências Consultoria, publicaram neste jornal um primoroso artigo mostrando que nas condições atuais, e principalmente com as regras orçamentárias plantadas na Constituição de 1988, poderemos chegar a uma “severa crise fiscal” num prazo relativamente curto. Com essa formulação relativamente branda, os autores, consciente ou inconscientemente, indicaram que a crise decorrente de uma “crise severa” pode ser uma catástrofe social. Foi seguramente para nos trazer algum alívio que o economista Gustavo Franco, um dos pais do Real, sugeriu que a situação de médio prazo pode melhorar se devotarmos quantias bem maiores à área do saneamento. Así lo quiera Dios! O que não podemos é fugir de uma verdade que qualquer criança de 12 anos conhece: a primeira classe também cai. Não há notícia de uma aeronave cuja parte anterior tenha despencado sem levar consigo a da frente, com o piloto no seu lugar, conduzindo-a como sempre faz, voando lépido e fagueiro.

Parece-me essencial acrescentar uma consideração mais ampla ao que acima vai exposto. Existem fortes indícios de que nós, brasileiros, estamos perdendo uma parte importante de nossa capacidade de pensar. Em tempos idos, podíamos nos dar o direito de sermos ingênuos, pois toda a nossa mediocridade parecia ter aqui aportado nos porões das caravelas portuguesas. A lavoura canavieira produzia praticamente todo o açúcar de que o mundo demandava, os senhores de engenho constituíam uma primeira classe inexpugnável. Com o ouro foi um pouco diferente, mas depois o café reeditou o enredo canavieiro. Supriu café suficiente para satisfazer quase todo o mundo, mas não teve fôlego para sustentar a competição com outros centros produtores que surgiam por toda parte. O jeito foi o Estado bancar o estrago e encaixar os proprietários daqueles magníficos palacetes da Avenida Paulista nos altos escalões do Estado. Fórmula de pouca duração que deixou em seu rastro um grave conflito entre regiões produtoras e não produtoras e, finalmente, a contrafação batizada como Revolução de 1930.

Hoje, tentar compreender a mentalidade que emergiu de tudo isso parece nos causar tédio. Caminhando para lá e para cá como sonâmbulos, nós hoje nem nos damos conta de que o cenário externo não é reconfortante. Embora tenhamos escapado de uma recessão global em 2024-2025, o Panorama Econômico Global do Fundo Monetário Internacional (FMI) faz um enérgico alerta quanto aos riscos de baixar a guarda: ao contrário, afirma, é hora de fortalecer os fundamentos para o crescimento futuro.

O fecho destas reflexões só pode ser a radicalização política nos Estados Unidos e a possível reeleição de um senhor já unanimemente condenado por golpismo político e obcecado pelo protecionismo.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A tortura de quem escreve para o público é a véspera, quando bate o fantasma da repetição.

Desde anos atrás, toda a imprensa do mundo discorreu sobre um confuso conceito de “populismo” todos os dias do ano. Nomes como Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (Índia) se espicharam nos sofás de nossas salas e nada faz crer que tão cedo consigamos apontar-lhes o caminho da rua. A tentativa russa de massacrar a Ucrânia e a guerra de Israel contra os grupos terroristas mantidos pelo Irã vieram complementar e elevar à enésima potência a tortura do “populismo”.

No Brasil, temos vivido sob o fantasma da “crise fiscal”. Fantasma, sandice, dê-se-lhe o nome que se quiser, mas no fundo a questão é muito simples. É uma batalha diária para equilibrar a receita e a despesa, proeza quase irrealizável, uma vez que enchemos um prato da balança com gastança e desperdício e o outro com irresponsabilidade, miopia e falta de coragem para reformar a máquina do Estado. Esse quadro infesto, praticamente sinônimo de estagnação, já deveria ser suficiente para meter medo, não fora toda a tragédia que ele oculta. Discorrer sobre o sistema de ensino, a quase metade das residências sem conexão com as redes públicas de esgoto, e a chusma de quase desocupados que recebem supersalários em Brasília é perda de tempo. Nesta semana o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou que, no frigir dos ovos, “o tributo é o mesmo para assalariados e ultrarricos” (Estadão, 30/10). Divulgou-se também que cerca de 1,5 milhão de habitantes da maior cidade do Brasil e da América do Sul mal consegue comer.

Crise fiscal: o termo indica que estamos nos contorcendo para obrigar a receita e a despesa a andarem juntas. Nossas autoridades, com as exceções de praxe, odeiam o capital privado, doméstico ou internacional, e se recusam a adotar um modelo econômico mais aberto ao exterior. Já seria surrealista se elas se desapegassem da fixação, originária da Revolução de 1930 e da ditadura varguista, de que um país só é autônomo e digno de respeito se conseguir promover o crescimento valendo-se basicamente de empresas públicas. No mês passado (13/10), o economista Maílson da Nóbrega e João Pedro Leme, ambos da Tendências Consultoria, publicaram neste jornal um primoroso artigo mostrando que nas condições atuais, e principalmente com as regras orçamentárias plantadas na Constituição de 1988, poderemos chegar a uma “severa crise fiscal” num prazo relativamente curto. Com essa formulação relativamente branda, os autores, consciente ou inconscientemente, indicaram que a crise decorrente de uma “crise severa” pode ser uma catástrofe social. Foi seguramente para nos trazer algum alívio que o economista Gustavo Franco, um dos pais do Real, sugeriu que a situação de médio prazo pode melhorar se devotarmos quantias bem maiores à área do saneamento. Así lo quiera Dios! O que não podemos é fugir de uma verdade que qualquer criança de 12 anos conhece: a primeira classe também cai. Não há notícia de uma aeronave cuja parte anterior tenha despencado sem levar consigo a da frente, com o piloto no seu lugar, conduzindo-a como sempre faz, voando lépido e fagueiro.

Parece-me essencial acrescentar uma consideração mais ampla ao que acima vai exposto. Existem fortes indícios de que nós, brasileiros, estamos perdendo uma parte importante de nossa capacidade de pensar. Em tempos idos, podíamos nos dar o direito de sermos ingênuos, pois toda a nossa mediocridade parecia ter aqui aportado nos porões das caravelas portuguesas. A lavoura canavieira produzia praticamente todo o açúcar de que o mundo demandava, os senhores de engenho constituíam uma primeira classe inexpugnável. Com o ouro foi um pouco diferente, mas depois o café reeditou o enredo canavieiro. Supriu café suficiente para satisfazer quase todo o mundo, mas não teve fôlego para sustentar a competição com outros centros produtores que surgiam por toda parte. O jeito foi o Estado bancar o estrago e encaixar os proprietários daqueles magníficos palacetes da Avenida Paulista nos altos escalões do Estado. Fórmula de pouca duração que deixou em seu rastro um grave conflito entre regiões produtoras e não produtoras e, finalmente, a contrafação batizada como Revolução de 1930.

Hoje, tentar compreender a mentalidade que emergiu de tudo isso parece nos causar tédio. Caminhando para lá e para cá como sonâmbulos, nós hoje nem nos damos conta de que o cenário externo não é reconfortante. Embora tenhamos escapado de uma recessão global em 2024-2025, o Panorama Econômico Global do Fundo Monetário Internacional (FMI) faz um enérgico alerta quanto aos riscos de baixar a guarda: ao contrário, afirma, é hora de fortalecer os fundamentos para o crescimento futuro.

O fecho destas reflexões só pode ser a radicalização política nos Estados Unidos e a possível reeleição de um senhor já unanimemente condenado por golpismo político e obcecado pelo protecionismo.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A tortura de quem escreve para o público é a véspera, quando bate o fantasma da repetição.

Desde anos atrás, toda a imprensa do mundo discorreu sobre um confuso conceito de “populismo” todos os dias do ano. Nomes como Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (Índia) se espicharam nos sofás de nossas salas e nada faz crer que tão cedo consigamos apontar-lhes o caminho da rua. A tentativa russa de massacrar a Ucrânia e a guerra de Israel contra os grupos terroristas mantidos pelo Irã vieram complementar e elevar à enésima potência a tortura do “populismo”.

No Brasil, temos vivido sob o fantasma da “crise fiscal”. Fantasma, sandice, dê-se-lhe o nome que se quiser, mas no fundo a questão é muito simples. É uma batalha diária para equilibrar a receita e a despesa, proeza quase irrealizável, uma vez que enchemos um prato da balança com gastança e desperdício e o outro com irresponsabilidade, miopia e falta de coragem para reformar a máquina do Estado. Esse quadro infesto, praticamente sinônimo de estagnação, já deveria ser suficiente para meter medo, não fora toda a tragédia que ele oculta. Discorrer sobre o sistema de ensino, a quase metade das residências sem conexão com as redes públicas de esgoto, e a chusma de quase desocupados que recebem supersalários em Brasília é perda de tempo. Nesta semana o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou que, no frigir dos ovos, “o tributo é o mesmo para assalariados e ultrarricos” (Estadão, 30/10). Divulgou-se também que cerca de 1,5 milhão de habitantes da maior cidade do Brasil e da América do Sul mal consegue comer.

Crise fiscal: o termo indica que estamos nos contorcendo para obrigar a receita e a despesa a andarem juntas. Nossas autoridades, com as exceções de praxe, odeiam o capital privado, doméstico ou internacional, e se recusam a adotar um modelo econômico mais aberto ao exterior. Já seria surrealista se elas se desapegassem da fixação, originária da Revolução de 1930 e da ditadura varguista, de que um país só é autônomo e digno de respeito se conseguir promover o crescimento valendo-se basicamente de empresas públicas. No mês passado (13/10), o economista Maílson da Nóbrega e João Pedro Leme, ambos da Tendências Consultoria, publicaram neste jornal um primoroso artigo mostrando que nas condições atuais, e principalmente com as regras orçamentárias plantadas na Constituição de 1988, poderemos chegar a uma “severa crise fiscal” num prazo relativamente curto. Com essa formulação relativamente branda, os autores, consciente ou inconscientemente, indicaram que a crise decorrente de uma “crise severa” pode ser uma catástrofe social. Foi seguramente para nos trazer algum alívio que o economista Gustavo Franco, um dos pais do Real, sugeriu que a situação de médio prazo pode melhorar se devotarmos quantias bem maiores à área do saneamento. Así lo quiera Dios! O que não podemos é fugir de uma verdade que qualquer criança de 12 anos conhece: a primeira classe também cai. Não há notícia de uma aeronave cuja parte anterior tenha despencado sem levar consigo a da frente, com o piloto no seu lugar, conduzindo-a como sempre faz, voando lépido e fagueiro.

Parece-me essencial acrescentar uma consideração mais ampla ao que acima vai exposto. Existem fortes indícios de que nós, brasileiros, estamos perdendo uma parte importante de nossa capacidade de pensar. Em tempos idos, podíamos nos dar o direito de sermos ingênuos, pois toda a nossa mediocridade parecia ter aqui aportado nos porões das caravelas portuguesas. A lavoura canavieira produzia praticamente todo o açúcar de que o mundo demandava, os senhores de engenho constituíam uma primeira classe inexpugnável. Com o ouro foi um pouco diferente, mas depois o café reeditou o enredo canavieiro. Supriu café suficiente para satisfazer quase todo o mundo, mas não teve fôlego para sustentar a competição com outros centros produtores que surgiam por toda parte. O jeito foi o Estado bancar o estrago e encaixar os proprietários daqueles magníficos palacetes da Avenida Paulista nos altos escalões do Estado. Fórmula de pouca duração que deixou em seu rastro um grave conflito entre regiões produtoras e não produtoras e, finalmente, a contrafação batizada como Revolução de 1930.

Hoje, tentar compreender a mentalidade que emergiu de tudo isso parece nos causar tédio. Caminhando para lá e para cá como sonâmbulos, nós hoje nem nos damos conta de que o cenário externo não é reconfortante. Embora tenhamos escapado de uma recessão global em 2024-2025, o Panorama Econômico Global do Fundo Monetário Internacional (FMI) faz um enérgico alerta quanto aos riscos de baixar a guarda: ao contrário, afirma, é hora de fortalecer os fundamentos para o crescimento futuro.

O fecho destas reflexões só pode ser a radicalização política nos Estados Unidos e a possível reeleição de um senhor já unanimemente condenado por golpismo político e obcecado pelo protecionismo.

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