Pergunte a dez pessoas o que elas entendem por “classe média” e prepare-se para receber dez respostas diferentes.
Ou, talvez, só nove: alguém poderá responder que é o conjunto de pessoas situado abaixo dos ricos e acima dos que exercem ocupações não manuais. Pistas quiçá mais proveitosas podem ser encontradas deitando uma vista d’olhos na história de alguns países. Na França, por exemplo, entendia-se (acho que ainda se entende) por petite bourgeoisie aqueles que tocavam pequenos negócios familiares, como padarias ou pequenas propriedades rurais, e transmitiam tal patrimônio e o respectivo modo de vida a seus descendentes. No Brasil, o conceito era semelhante, porém mais referido ao serviço público. Dizia respeito a uma camada estável, cujos integrantes viviam com certo conforto, em residências de padrão semelhante, e auferiam uma remuneração suficiente para assegurar a educação dos filhos, cuja aspiração era se alçarem à mesma posição dos pais.
No Brasil e noutros países “emergentes”, o quadro anteriormente delineado mudou muito, mas antes de discorrer sobre as mudanças devo mencionar uma interpretação diferente, substantiva, típica da Alemanha e das culturas nórdicas. Nessa linha, evitava-se o plural “classes médias” e contestava-se a noção de que elas seriam como nuvens esparsas. Tentava-se apontar um conteúdo ideológico definido, que conferisse à classe média (no singular) uma identidade homogênea. Em 1938, o sociólogo norueguês Svend Ranulf publicou um estudo (Moral Indignation and Middle Class Psychology) remontando à antiga teoria filosófica do “ressentimento”. Postulou, assim, que a identidade característica da classe média seria “uma tendência desinteressada a infligir o castigo” (“a disinterested tendency towards punishment”), sendo ela, por conseguinte, o principal núcleo empenhado na sistematização do Direito Penal.
Pelo caminho indicado (a teoria do ressentimento), chegamos à mais poderosa interpretação substantiva, a marxista, que proliferou na Alemanha. Do ponto de vista marxista, era mister contestar que o proletariado tivesse apoiado Hitler; a identidade de classe que “obviamente” combinaria com o nazi-fascismo seria a da classe média, ressentida contra os “burgueses” e temerosa de cair na vala comum do subproletariado (Lumpenproletariat). Essa interpretação resistiu ao tempo, tanto assim que, recentemente, uma célebre professora da Universidade de São Paulo (USP) vituperou a classe média, tomando-a, em bloco, como “fascista”. O problema com essa interpretação é que ela carece por completo de sustentação. Os estudos disponíveis sobre as opções eleitorais da era nazista escarafuncharam cada local de votação e os resultados encontrados foram sempre os mesmos: os alemães que votaram em Hitler fizeram-no com uma homogeneidade notavelmente perversa. Os louros da catástrofe não puderam ser reclamados por nenhum segmento social em particular.
No Brasil, teses quase tão audaciosas têm aparecido, com bases tão diáfanas como as acima expostas. Quando falo em “proletarização” da classe média, apresso-me em esclarecer que estou tentando transmitir uma impressão, indícios que podem ou não ser coerentes entre si. Quem talvez possa dar um testemunho consistente são os odontologistas, pois, realmente, parece haver um crescimento perceptível no número de pessoas que não dispõem de recursos para tratamentos por vezes até urgentes.
Constrange-me abordar um assunto de tamanha importância apoiando-me numa base factual tão anêmica. Atrevo-me a fazê-lo lembrando a teoria em voga poucos anos atrás, durante o mandato presidencial da sra. Dilma Rousseff, quando o Planalto defendeu com unhas e dentes a tese de que nos havíamos tornado um “país de classe média”, o que, ipso facto, nos colocava com um pé no Primeiro Mundo. Num pequeno livro escrito por mim e por meu saudoso amigo Amaury de Souza (A Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Projetos de Sociedade, Editora Elsevier, 2011), advertimos que aquela tese não parecia sustentável.
O que podemos dizer sem medo de errar é que o Brasil e diversos outros países situados num nível comparável de desenvolvimento foram sacudidos por fortes mudanças desde aproximadamente os anos 60 do século passado. Tentativas de acelerar o crescimento econômico abriram oportunidades de trabalho num nível inferior ao que antes existia, como foi o caso dos empregos blue-collar nos supermercados, além do aumento do número de funções públicas menos exigentes quanto à qualificação, forte crescimento populacional e imigração interna, estímulo à ambição de adquirir casa própria, multiplicação meio desordenada de vagas no ensino superior e por aí afora.
Hoje, a advertência que nos cabe fazer tem sentido oposto: temos como frear a volta do paraíso e a descida aos infernos? Numa economia de larga escala e, como sempre, incapazes de escolher entre contas públicas equilibradas e inflação galopante, essa parece ser a questão que nos espreita na esquina.
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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS