Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Anarquia jurídica


É a situação que o Brasil vive hoje. Quem ‘declara’ o que é a Constituição? O STF...

Por Bolívar Lamounier

“Quem está preso pode ser solto,

quem está solto pode ser preso”

Ditado mineiro

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Desde o dia, milênios atrás, em que os seres humanos conseguiram concatenar duas ideias, eles entenderam que a vida em sociedade é impossível sem um conjunto de normas às quais a maioria esteja disposta a obedecer.

Séculos mais tarde perceberam que normas convencionais, surgidas com a lenta evolução dos costumes, não seriam suficientes. A vida social exigia normas propriamente jurídicas, criadas sempre que necessário a fim de prover respostas para os desafios de cada época. De fato, o Direito distingue-se da convenção, desde logo, por implicar sanções – vale dizer, o recurso à força – contra eventuais infratores. E o recurso à força implicava a formação de um grupo de profissionais especializado e dotado de legitimidade para aplicar as leis.

Dá-se, entretanto, que o conteúdo do Direito não é evidente por si mesmo. Os profissionais responsáveis por sua aplicação podem e de certa forma são forçados a “interpretá-lo”, diria mesmo a “declará-lo”. Isso ocorre em inúmeras ocasiões, seja pela complexidade intrínseca das normas ou do meio social circundante, seja, e não menos importante, pela influência das ideologias ou interesses do referido grupo de profissionais.

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A esta altura, peço licença para deixar de lado as abstrações e me concentrar numa ocasião em que o conteúdo da lei foi “declarado” de uma forma até pitoresca. Todos se lembram da sessão do Senado, presidida por Ricardo Lewandowski, à época presidente do Supremo Tribunal Federal, que votou o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Segundo o artigo 52, inciso 14, parágrafo único, da Constituição da República, a autoridade afastada torna-se inelegível por oito anos e inabilitada para o exercício de qualquer função pública. Esse, contudo, não foi o entendimento do ministro Lewandowski. Sua Excelência e o não menos excelente senador Renan Calheiros alvitraram um sutil expediente para desmembrar o “indesmembrável” parágrafo único, consumando, assim, uma dupla agressão: à Constituição e à língua portuguesa.

Vejamos a Constituição brasileira de 1988. Nos processos referentes ao triplex no Guarujá e ao sítio em Atibaia, Lula foi condenado pelo juiz Sérgio Moro na primeira instância, pelo TRF-4 (com sede em Porto Alegre) e pelo STJ (sediado em Brasília), ou seja, até a terceira instância. Mas decorridos cinco anos, o proverbialmente cuidadoso ministro Edson Fachin atinou com um erro de origem – o foro apropriado haveria de ser Brasília, e não Curitiba – com o que as condenações ficaram suspensas, devendo todo o processo voltar à estaca zero.

Lula é o caso mais cintilante, mas não se requer muita argúcia para perceber que o “trânsito em julgado” reduz o artigo 37 (que estatui a probidade como princípio fundamental da administração pública) e seus incisos a pó de traque. Esse exemplo deveria bastar para substanciar o diagnóstico que venho de defender, qual seja, o de que o Brasil vive uma anarquia jurídica. Quem “declara” o que é a Constituição? O STF, obviamente, Poder não eletivo, ab-solutus, não atingível por nenhum controle, salvo na remota hipótese de o Senado remover algum ministro por meio do instituto do impeachment.

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Hans Kelsen, não obstante o radical formalismo de seu pensamento, estipulou também que a ideia de um sistema jurídico implica não apenas a coerência interna e uma ascensão lógica entre as normas que o integram, mas também um certo grau de “eficácia” do conjunto.

O “trânsito em julgado” – norma concebida no nível mais alto, na verdade uma “cláusula pétrea”, que só pode ser alterada por outro Poder constituinte originário – satisfaz o critério da eficácia? Sim, satisfaz, às mil maravilhas, mas, infelizmente, no sentido mais perverso que se possa imaginar. Parece ter sido inventado com o fim específico de impedir a condenação de criminosos de colarinho branco, vale dizer, daqueles que ocupam posições elevadas na escala do poder político ou detêm recursos financeiros suficientes para contratar advogados de padrão Kakay. Os três PPPs (pobres, pretos e putas) que carecem de tais recursos ficam amontoados nos cadeiões que há por aí, evidenciando que o Brasil é um país com duas justiças.

Imediatamente após a decisão do ministro Fachin, o ministro Gilmar Mendes pautou e fez aprovar na segunda turma a suspeição do juiz Sergio Moro, em sessão que contou até mesmo com a inusitada posição da ministra Cármen Lúcia, que inverteu, sem fundamentação, seu voto de 2016, violando, pois, a legislação existente sobre a matéria. Por um lapso, quem sabe, Gilmar Mendes esqueceu-se de estender a suspeição aos magistrados que convalidaram as decisões de Sergio Moro na segunda e na terceira instâncias.

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Uma descrição mais completa das posições que estão transformando numa completa anarquia o resto de sistema jurídico que ainda nos rege exigiria uma vista d’olhos sobre os primeiros 27 meses de Jair Bolsonaro na Presidência da República, mas infelizmente não disponho de espaço para tanto.

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“Quem está preso pode ser solto,

quem está solto pode ser preso”

Ditado mineiro

Desde o dia, milênios atrás, em que os seres humanos conseguiram concatenar duas ideias, eles entenderam que a vida em sociedade é impossível sem um conjunto de normas às quais a maioria esteja disposta a obedecer.

Séculos mais tarde perceberam que normas convencionais, surgidas com a lenta evolução dos costumes, não seriam suficientes. A vida social exigia normas propriamente jurídicas, criadas sempre que necessário a fim de prover respostas para os desafios de cada época. De fato, o Direito distingue-se da convenção, desde logo, por implicar sanções – vale dizer, o recurso à força – contra eventuais infratores. E o recurso à força implicava a formação de um grupo de profissionais especializado e dotado de legitimidade para aplicar as leis.

Dá-se, entretanto, que o conteúdo do Direito não é evidente por si mesmo. Os profissionais responsáveis por sua aplicação podem e de certa forma são forçados a “interpretá-lo”, diria mesmo a “declará-lo”. Isso ocorre em inúmeras ocasiões, seja pela complexidade intrínseca das normas ou do meio social circundante, seja, e não menos importante, pela influência das ideologias ou interesses do referido grupo de profissionais.

A esta altura, peço licença para deixar de lado as abstrações e me concentrar numa ocasião em que o conteúdo da lei foi “declarado” de uma forma até pitoresca. Todos se lembram da sessão do Senado, presidida por Ricardo Lewandowski, à época presidente do Supremo Tribunal Federal, que votou o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Segundo o artigo 52, inciso 14, parágrafo único, da Constituição da República, a autoridade afastada torna-se inelegível por oito anos e inabilitada para o exercício de qualquer função pública. Esse, contudo, não foi o entendimento do ministro Lewandowski. Sua Excelência e o não menos excelente senador Renan Calheiros alvitraram um sutil expediente para desmembrar o “indesmembrável” parágrafo único, consumando, assim, uma dupla agressão: à Constituição e à língua portuguesa.

Vejamos a Constituição brasileira de 1988. Nos processos referentes ao triplex no Guarujá e ao sítio em Atibaia, Lula foi condenado pelo juiz Sérgio Moro na primeira instância, pelo TRF-4 (com sede em Porto Alegre) e pelo STJ (sediado em Brasília), ou seja, até a terceira instância. Mas decorridos cinco anos, o proverbialmente cuidadoso ministro Edson Fachin atinou com um erro de origem – o foro apropriado haveria de ser Brasília, e não Curitiba – com o que as condenações ficaram suspensas, devendo todo o processo voltar à estaca zero.

Lula é o caso mais cintilante, mas não se requer muita argúcia para perceber que o “trânsito em julgado” reduz o artigo 37 (que estatui a probidade como princípio fundamental da administração pública) e seus incisos a pó de traque. Esse exemplo deveria bastar para substanciar o diagnóstico que venho de defender, qual seja, o de que o Brasil vive uma anarquia jurídica. Quem “declara” o que é a Constituição? O STF, obviamente, Poder não eletivo, ab-solutus, não atingível por nenhum controle, salvo na remota hipótese de o Senado remover algum ministro por meio do instituto do impeachment.

Hans Kelsen, não obstante o radical formalismo de seu pensamento, estipulou também que a ideia de um sistema jurídico implica não apenas a coerência interna e uma ascensão lógica entre as normas que o integram, mas também um certo grau de “eficácia” do conjunto.

O “trânsito em julgado” – norma concebida no nível mais alto, na verdade uma “cláusula pétrea”, que só pode ser alterada por outro Poder constituinte originário – satisfaz o critério da eficácia? Sim, satisfaz, às mil maravilhas, mas, infelizmente, no sentido mais perverso que se possa imaginar. Parece ter sido inventado com o fim específico de impedir a condenação de criminosos de colarinho branco, vale dizer, daqueles que ocupam posições elevadas na escala do poder político ou detêm recursos financeiros suficientes para contratar advogados de padrão Kakay. Os três PPPs (pobres, pretos e putas) que carecem de tais recursos ficam amontoados nos cadeiões que há por aí, evidenciando que o Brasil é um país com duas justiças.

Imediatamente após a decisão do ministro Fachin, o ministro Gilmar Mendes pautou e fez aprovar na segunda turma a suspeição do juiz Sergio Moro, em sessão que contou até mesmo com a inusitada posição da ministra Cármen Lúcia, que inverteu, sem fundamentação, seu voto de 2016, violando, pois, a legislação existente sobre a matéria. Por um lapso, quem sabe, Gilmar Mendes esqueceu-se de estender a suspeição aos magistrados que convalidaram as decisões de Sergio Moro na segunda e na terceira instâncias.

Uma descrição mais completa das posições que estão transformando numa completa anarquia o resto de sistema jurídico que ainda nos rege exigiria uma vista d’olhos sobre os primeiros 27 meses de Jair Bolsonaro na Presidência da República, mas infelizmente não disponho de espaço para tanto.

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“Quem está preso pode ser solto,

quem está solto pode ser preso”

Ditado mineiro

Desde o dia, milênios atrás, em que os seres humanos conseguiram concatenar duas ideias, eles entenderam que a vida em sociedade é impossível sem um conjunto de normas às quais a maioria esteja disposta a obedecer.

Séculos mais tarde perceberam que normas convencionais, surgidas com a lenta evolução dos costumes, não seriam suficientes. A vida social exigia normas propriamente jurídicas, criadas sempre que necessário a fim de prover respostas para os desafios de cada época. De fato, o Direito distingue-se da convenção, desde logo, por implicar sanções – vale dizer, o recurso à força – contra eventuais infratores. E o recurso à força implicava a formação de um grupo de profissionais especializado e dotado de legitimidade para aplicar as leis.

Dá-se, entretanto, que o conteúdo do Direito não é evidente por si mesmo. Os profissionais responsáveis por sua aplicação podem e de certa forma são forçados a “interpretá-lo”, diria mesmo a “declará-lo”. Isso ocorre em inúmeras ocasiões, seja pela complexidade intrínseca das normas ou do meio social circundante, seja, e não menos importante, pela influência das ideologias ou interesses do referido grupo de profissionais.

A esta altura, peço licença para deixar de lado as abstrações e me concentrar numa ocasião em que o conteúdo da lei foi “declarado” de uma forma até pitoresca. Todos se lembram da sessão do Senado, presidida por Ricardo Lewandowski, à época presidente do Supremo Tribunal Federal, que votou o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Segundo o artigo 52, inciso 14, parágrafo único, da Constituição da República, a autoridade afastada torna-se inelegível por oito anos e inabilitada para o exercício de qualquer função pública. Esse, contudo, não foi o entendimento do ministro Lewandowski. Sua Excelência e o não menos excelente senador Renan Calheiros alvitraram um sutil expediente para desmembrar o “indesmembrável” parágrafo único, consumando, assim, uma dupla agressão: à Constituição e à língua portuguesa.

Vejamos a Constituição brasileira de 1988. Nos processos referentes ao triplex no Guarujá e ao sítio em Atibaia, Lula foi condenado pelo juiz Sérgio Moro na primeira instância, pelo TRF-4 (com sede em Porto Alegre) e pelo STJ (sediado em Brasília), ou seja, até a terceira instância. Mas decorridos cinco anos, o proverbialmente cuidadoso ministro Edson Fachin atinou com um erro de origem – o foro apropriado haveria de ser Brasília, e não Curitiba – com o que as condenações ficaram suspensas, devendo todo o processo voltar à estaca zero.

Lula é o caso mais cintilante, mas não se requer muita argúcia para perceber que o “trânsito em julgado” reduz o artigo 37 (que estatui a probidade como princípio fundamental da administração pública) e seus incisos a pó de traque. Esse exemplo deveria bastar para substanciar o diagnóstico que venho de defender, qual seja, o de que o Brasil vive uma anarquia jurídica. Quem “declara” o que é a Constituição? O STF, obviamente, Poder não eletivo, ab-solutus, não atingível por nenhum controle, salvo na remota hipótese de o Senado remover algum ministro por meio do instituto do impeachment.

Hans Kelsen, não obstante o radical formalismo de seu pensamento, estipulou também que a ideia de um sistema jurídico implica não apenas a coerência interna e uma ascensão lógica entre as normas que o integram, mas também um certo grau de “eficácia” do conjunto.

O “trânsito em julgado” – norma concebida no nível mais alto, na verdade uma “cláusula pétrea”, que só pode ser alterada por outro Poder constituinte originário – satisfaz o critério da eficácia? Sim, satisfaz, às mil maravilhas, mas, infelizmente, no sentido mais perverso que se possa imaginar. Parece ter sido inventado com o fim específico de impedir a condenação de criminosos de colarinho branco, vale dizer, daqueles que ocupam posições elevadas na escala do poder político ou detêm recursos financeiros suficientes para contratar advogados de padrão Kakay. Os três PPPs (pobres, pretos e putas) que carecem de tais recursos ficam amontoados nos cadeiões que há por aí, evidenciando que o Brasil é um país com duas justiças.

Imediatamente após a decisão do ministro Fachin, o ministro Gilmar Mendes pautou e fez aprovar na segunda turma a suspeição do juiz Sergio Moro, em sessão que contou até mesmo com a inusitada posição da ministra Cármen Lúcia, que inverteu, sem fundamentação, seu voto de 2016, violando, pois, a legislação existente sobre a matéria. Por um lapso, quem sabe, Gilmar Mendes esqueceu-se de estender a suspeição aos magistrados que convalidaram as decisões de Sergio Moro na segunda e na terceira instâncias.

Uma descrição mais completa das posições que estão transformando numa completa anarquia o resto de sistema jurídico que ainda nos rege exigiria uma vista d’olhos sobre os primeiros 27 meses de Jair Bolsonaro na Presidência da República, mas infelizmente não disponho de espaço para tanto.

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