Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Anatomia da vertigem política


Nossos episódios associativos carecem de referências à vida pública, ou àquilo que Aristóteles denominou bem comum

Por Bolívar Lamounier

Em 1835, Alexis de Tocqueville, um aristocrata e grande escritor francês, teve uma ideia deveras inovadora. Tornou-se, como direi, o primeiro cientista político moderno, observando de perto os fatos que o intrigavam, colhendo informações e fazendo entrevistas, com o objetivo de responder a uma indagação que até hoje nos atormenta. Queria entender por que o sistema político dos Estados Unidos evoluía firmemente no sentido de uma democracia pacífica, progressista e competitiva, enquanto na Europa, excetuada a Inglaterra, nem os países mais importantes pareciam capazes de se livrar de suas tradições dinásticas e autoritárias. Mesmo sua França natal, que fez a maior revolução dos tempos modernos, quase sucumbiu a um regime de terror, o que só não aconteceu graças à ação militar de Napoleão Bonaparte, que preservou muitos ganhos do processo revolucionário, mas implantou um sistema de governo que só após a 2.ª Guerra Mundial se firmou como uma democracia de alto desempenho.

A chave da interpretação proposta por Tocqueville no clássico A Democracia na América foi o que ele denominou “arte da associação”. Não custa acrescentar que Tocqueville lá esteve durante o período conhecido como “democracia jacksoniana”, assim designada pelo importante impulso democratizante que lhe deu o presidente Andrew Jackson, eleito em 1828. A arte de confiar nos outros e com eles colaborar já começara a se delinear havia mais de um século, quando as 13 colônias, que ainda eram propriedade da Inglaterra, mostravam-se ciosas de sua autonomia e insistiam em organizar como lhes aprouvesse os negócios que somente a elas diziam respeito.

Ora, se a “arte da associação” foi um fator tão importante, vem-me à mente uma ideia que o leitor talvez considere estapafúrdia: a importância da neve. Numa região ou país cujo inverno se caracteriza por nevascas terríveis, vizinhos que ontem se detestavam, na manhã de amanhã, estarão se ajudando mutuamente na remoção daquele enorme entulho que logo se transformará em gelo, pois do contrário não conseguirão tirar da garagem o carro (ou seu equivalente naqueles tempos distantes). No fundo da alma, poderão detestar o quanto quiserem, mas a neve era um fato que os obrigava a “dar um tempo”. Algo semelhante se passou no Brasil semanas atrás, por ocasião da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. De repente começamos a ver pela televisão comoventes cenas de cooperação, fato que nós, brasileiros, nunca tínhamos visto.

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Contudo, o paralelo com os Estados Unidos precisa ser tomado com cautela. Não é que desconheçamos por completo a arte da associação. O problema são os usos que dela fazemos. O que nos reúne é muito mais o desejo de tomar uma cerveja e comentar os resultados do futebol. Mais que isso: às vezes grupos se organizam, arrendam quatro ou cinco ônibus e lá vão, batucando e cantarolando, assistir a um jogo noutro Estado, ou para assistir ao Rock in Rio. Ou seja, nossos episódios associativos carecem totalmente de referências à vida pública, ou àquilo que Aristóteles denominou bem comum. Xingar os Três Poderes sediados em Brasília todos nós adoramos, mas falta-nos paciência para calcular na ponta do lápis quanto pagamos em impostos, quanto falta para a arrecadação empatar com a despesa, ou quanto e como o governo gasta em educação, saúde e saneamento.

Fato é que, embora não tenhamos neve e enchentes devastadoras sejam raras, a comparação com a América do Norte requer cautela centenas de vezes maior. Muitos tormentos provêm da natureza, mas os piores são provavelmente os que nós mesmos engendramos, mercê de nosso desleixo, de nossa preguiça e de nossa estupidez. Como todos se lembram, Jano, o deus romano do tempo, dos primórdios e das transições, tinha duas faces, o que lhe permitia enxergar o passado e o futuro ao mesmo tempo. O olhar retrospectivo indicava-lhe a prudência, ou seja, o que fizemos de certo ou errado, e o que precisamos fazer melhor da próxima vez. Aqui já temos matéria para nos associarmos assiduamente. O olhar prospectivo dava-lhe coragem e determinação, mas alertava-o contra as pedras que encontraria pelo caminho, alertando-lhe para a necessidade do tirocínio, da coragem e da determinação. No Brasil, só os muito obtusos ignoram que uma séria crise provavelmente nos atingirá dentro de duas ou três décadas, graças à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com a classe política e os partidos políticos que hoje possuímos, e a possível reeleição de Lula da Silva, é fácil inferir que tal crise poderá ser pior que o necessário. Somos, como é sabido, abundantes em tudo, inclusive em arrogância. A perspectiva acima alinhada significa que insistiremos na pretensão econômica que nós acompanhamos desde a Revolução de 1930: a de querer crescer somente com recursos públicos e com uma economia fechada, abominando o mercado e nos lixando para a indispensável criação de um ambiente sadio para os negócios.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Em 1835, Alexis de Tocqueville, um aristocrata e grande escritor francês, teve uma ideia deveras inovadora. Tornou-se, como direi, o primeiro cientista político moderno, observando de perto os fatos que o intrigavam, colhendo informações e fazendo entrevistas, com o objetivo de responder a uma indagação que até hoje nos atormenta. Queria entender por que o sistema político dos Estados Unidos evoluía firmemente no sentido de uma democracia pacífica, progressista e competitiva, enquanto na Europa, excetuada a Inglaterra, nem os países mais importantes pareciam capazes de se livrar de suas tradições dinásticas e autoritárias. Mesmo sua França natal, que fez a maior revolução dos tempos modernos, quase sucumbiu a um regime de terror, o que só não aconteceu graças à ação militar de Napoleão Bonaparte, que preservou muitos ganhos do processo revolucionário, mas implantou um sistema de governo que só após a 2.ª Guerra Mundial se firmou como uma democracia de alto desempenho.

A chave da interpretação proposta por Tocqueville no clássico A Democracia na América foi o que ele denominou “arte da associação”. Não custa acrescentar que Tocqueville lá esteve durante o período conhecido como “democracia jacksoniana”, assim designada pelo importante impulso democratizante que lhe deu o presidente Andrew Jackson, eleito em 1828. A arte de confiar nos outros e com eles colaborar já começara a se delinear havia mais de um século, quando as 13 colônias, que ainda eram propriedade da Inglaterra, mostravam-se ciosas de sua autonomia e insistiam em organizar como lhes aprouvesse os negócios que somente a elas diziam respeito.

Ora, se a “arte da associação” foi um fator tão importante, vem-me à mente uma ideia que o leitor talvez considere estapafúrdia: a importância da neve. Numa região ou país cujo inverno se caracteriza por nevascas terríveis, vizinhos que ontem se detestavam, na manhã de amanhã, estarão se ajudando mutuamente na remoção daquele enorme entulho que logo se transformará em gelo, pois do contrário não conseguirão tirar da garagem o carro (ou seu equivalente naqueles tempos distantes). No fundo da alma, poderão detestar o quanto quiserem, mas a neve era um fato que os obrigava a “dar um tempo”. Algo semelhante se passou no Brasil semanas atrás, por ocasião da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. De repente começamos a ver pela televisão comoventes cenas de cooperação, fato que nós, brasileiros, nunca tínhamos visto.

Contudo, o paralelo com os Estados Unidos precisa ser tomado com cautela. Não é que desconheçamos por completo a arte da associação. O problema são os usos que dela fazemos. O que nos reúne é muito mais o desejo de tomar uma cerveja e comentar os resultados do futebol. Mais que isso: às vezes grupos se organizam, arrendam quatro ou cinco ônibus e lá vão, batucando e cantarolando, assistir a um jogo noutro Estado, ou para assistir ao Rock in Rio. Ou seja, nossos episódios associativos carecem totalmente de referências à vida pública, ou àquilo que Aristóteles denominou bem comum. Xingar os Três Poderes sediados em Brasília todos nós adoramos, mas falta-nos paciência para calcular na ponta do lápis quanto pagamos em impostos, quanto falta para a arrecadação empatar com a despesa, ou quanto e como o governo gasta em educação, saúde e saneamento.

Fato é que, embora não tenhamos neve e enchentes devastadoras sejam raras, a comparação com a América do Norte requer cautela centenas de vezes maior. Muitos tormentos provêm da natureza, mas os piores são provavelmente os que nós mesmos engendramos, mercê de nosso desleixo, de nossa preguiça e de nossa estupidez. Como todos se lembram, Jano, o deus romano do tempo, dos primórdios e das transições, tinha duas faces, o que lhe permitia enxergar o passado e o futuro ao mesmo tempo. O olhar retrospectivo indicava-lhe a prudência, ou seja, o que fizemos de certo ou errado, e o que precisamos fazer melhor da próxima vez. Aqui já temos matéria para nos associarmos assiduamente. O olhar prospectivo dava-lhe coragem e determinação, mas alertava-o contra as pedras que encontraria pelo caminho, alertando-lhe para a necessidade do tirocínio, da coragem e da determinação. No Brasil, só os muito obtusos ignoram que uma séria crise provavelmente nos atingirá dentro de duas ou três décadas, graças à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com a classe política e os partidos políticos que hoje possuímos, e a possível reeleição de Lula da Silva, é fácil inferir que tal crise poderá ser pior que o necessário. Somos, como é sabido, abundantes em tudo, inclusive em arrogância. A perspectiva acima alinhada significa que insistiremos na pretensão econômica que nós acompanhamos desde a Revolução de 1930: a de querer crescer somente com recursos públicos e com uma economia fechada, abominando o mercado e nos lixando para a indispensável criação de um ambiente sadio para os negócios.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Em 1835, Alexis de Tocqueville, um aristocrata e grande escritor francês, teve uma ideia deveras inovadora. Tornou-se, como direi, o primeiro cientista político moderno, observando de perto os fatos que o intrigavam, colhendo informações e fazendo entrevistas, com o objetivo de responder a uma indagação que até hoje nos atormenta. Queria entender por que o sistema político dos Estados Unidos evoluía firmemente no sentido de uma democracia pacífica, progressista e competitiva, enquanto na Europa, excetuada a Inglaterra, nem os países mais importantes pareciam capazes de se livrar de suas tradições dinásticas e autoritárias. Mesmo sua França natal, que fez a maior revolução dos tempos modernos, quase sucumbiu a um regime de terror, o que só não aconteceu graças à ação militar de Napoleão Bonaparte, que preservou muitos ganhos do processo revolucionário, mas implantou um sistema de governo que só após a 2.ª Guerra Mundial se firmou como uma democracia de alto desempenho.

A chave da interpretação proposta por Tocqueville no clássico A Democracia na América foi o que ele denominou “arte da associação”. Não custa acrescentar que Tocqueville lá esteve durante o período conhecido como “democracia jacksoniana”, assim designada pelo importante impulso democratizante que lhe deu o presidente Andrew Jackson, eleito em 1828. A arte de confiar nos outros e com eles colaborar já começara a se delinear havia mais de um século, quando as 13 colônias, que ainda eram propriedade da Inglaterra, mostravam-se ciosas de sua autonomia e insistiam em organizar como lhes aprouvesse os negócios que somente a elas diziam respeito.

Ora, se a “arte da associação” foi um fator tão importante, vem-me à mente uma ideia que o leitor talvez considere estapafúrdia: a importância da neve. Numa região ou país cujo inverno se caracteriza por nevascas terríveis, vizinhos que ontem se detestavam, na manhã de amanhã, estarão se ajudando mutuamente na remoção daquele enorme entulho que logo se transformará em gelo, pois do contrário não conseguirão tirar da garagem o carro (ou seu equivalente naqueles tempos distantes). No fundo da alma, poderão detestar o quanto quiserem, mas a neve era um fato que os obrigava a “dar um tempo”. Algo semelhante se passou no Brasil semanas atrás, por ocasião da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. De repente começamos a ver pela televisão comoventes cenas de cooperação, fato que nós, brasileiros, nunca tínhamos visto.

Contudo, o paralelo com os Estados Unidos precisa ser tomado com cautela. Não é que desconheçamos por completo a arte da associação. O problema são os usos que dela fazemos. O que nos reúne é muito mais o desejo de tomar uma cerveja e comentar os resultados do futebol. Mais que isso: às vezes grupos se organizam, arrendam quatro ou cinco ônibus e lá vão, batucando e cantarolando, assistir a um jogo noutro Estado, ou para assistir ao Rock in Rio. Ou seja, nossos episódios associativos carecem totalmente de referências à vida pública, ou àquilo que Aristóteles denominou bem comum. Xingar os Três Poderes sediados em Brasília todos nós adoramos, mas falta-nos paciência para calcular na ponta do lápis quanto pagamos em impostos, quanto falta para a arrecadação empatar com a despesa, ou quanto e como o governo gasta em educação, saúde e saneamento.

Fato é que, embora não tenhamos neve e enchentes devastadoras sejam raras, a comparação com a América do Norte requer cautela centenas de vezes maior. Muitos tormentos provêm da natureza, mas os piores são provavelmente os que nós mesmos engendramos, mercê de nosso desleixo, de nossa preguiça e de nossa estupidez. Como todos se lembram, Jano, o deus romano do tempo, dos primórdios e das transições, tinha duas faces, o que lhe permitia enxergar o passado e o futuro ao mesmo tempo. O olhar retrospectivo indicava-lhe a prudência, ou seja, o que fizemos de certo ou errado, e o que precisamos fazer melhor da próxima vez. Aqui já temos matéria para nos associarmos assiduamente. O olhar prospectivo dava-lhe coragem e determinação, mas alertava-o contra as pedras que encontraria pelo caminho, alertando-lhe para a necessidade do tirocínio, da coragem e da determinação. No Brasil, só os muito obtusos ignoram que uma séria crise provavelmente nos atingirá dentro de duas ou três décadas, graças à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com a classe política e os partidos políticos que hoje possuímos, e a possível reeleição de Lula da Silva, é fácil inferir que tal crise poderá ser pior que o necessário. Somos, como é sabido, abundantes em tudo, inclusive em arrogância. A perspectiva acima alinhada significa que insistiremos na pretensão econômica que nós acompanhamos desde a Revolução de 1930: a de querer crescer somente com recursos públicos e com uma economia fechada, abominando o mercado e nos lixando para a indispensável criação de um ambiente sadio para os negócios.

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Em 1835, Alexis de Tocqueville, um aristocrata e grande escritor francês, teve uma ideia deveras inovadora. Tornou-se, como direi, o primeiro cientista político moderno, observando de perto os fatos que o intrigavam, colhendo informações e fazendo entrevistas, com o objetivo de responder a uma indagação que até hoje nos atormenta. Queria entender por que o sistema político dos Estados Unidos evoluía firmemente no sentido de uma democracia pacífica, progressista e competitiva, enquanto na Europa, excetuada a Inglaterra, nem os países mais importantes pareciam capazes de se livrar de suas tradições dinásticas e autoritárias. Mesmo sua França natal, que fez a maior revolução dos tempos modernos, quase sucumbiu a um regime de terror, o que só não aconteceu graças à ação militar de Napoleão Bonaparte, que preservou muitos ganhos do processo revolucionário, mas implantou um sistema de governo que só após a 2.ª Guerra Mundial se firmou como uma democracia de alto desempenho.

A chave da interpretação proposta por Tocqueville no clássico A Democracia na América foi o que ele denominou “arte da associação”. Não custa acrescentar que Tocqueville lá esteve durante o período conhecido como “democracia jacksoniana”, assim designada pelo importante impulso democratizante que lhe deu o presidente Andrew Jackson, eleito em 1828. A arte de confiar nos outros e com eles colaborar já começara a se delinear havia mais de um século, quando as 13 colônias, que ainda eram propriedade da Inglaterra, mostravam-se ciosas de sua autonomia e insistiam em organizar como lhes aprouvesse os negócios que somente a elas diziam respeito.

Ora, se a “arte da associação” foi um fator tão importante, vem-me à mente uma ideia que o leitor talvez considere estapafúrdia: a importância da neve. Numa região ou país cujo inverno se caracteriza por nevascas terríveis, vizinhos que ontem se detestavam, na manhã de amanhã, estarão se ajudando mutuamente na remoção daquele enorme entulho que logo se transformará em gelo, pois do contrário não conseguirão tirar da garagem o carro (ou seu equivalente naqueles tempos distantes). No fundo da alma, poderão detestar o quanto quiserem, mas a neve era um fato que os obrigava a “dar um tempo”. Algo semelhante se passou no Brasil semanas atrás, por ocasião da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. De repente começamos a ver pela televisão comoventes cenas de cooperação, fato que nós, brasileiros, nunca tínhamos visto.

Contudo, o paralelo com os Estados Unidos precisa ser tomado com cautela. Não é que desconheçamos por completo a arte da associação. O problema são os usos que dela fazemos. O que nos reúne é muito mais o desejo de tomar uma cerveja e comentar os resultados do futebol. Mais que isso: às vezes grupos se organizam, arrendam quatro ou cinco ônibus e lá vão, batucando e cantarolando, assistir a um jogo noutro Estado, ou para assistir ao Rock in Rio. Ou seja, nossos episódios associativos carecem totalmente de referências à vida pública, ou àquilo que Aristóteles denominou bem comum. Xingar os Três Poderes sediados em Brasília todos nós adoramos, mas falta-nos paciência para calcular na ponta do lápis quanto pagamos em impostos, quanto falta para a arrecadação empatar com a despesa, ou quanto e como o governo gasta em educação, saúde e saneamento.

Fato é que, embora não tenhamos neve e enchentes devastadoras sejam raras, a comparação com a América do Norte requer cautela centenas de vezes maior. Muitos tormentos provêm da natureza, mas os piores são provavelmente os que nós mesmos engendramos, mercê de nosso desleixo, de nossa preguiça e de nossa estupidez. Como todos se lembram, Jano, o deus romano do tempo, dos primórdios e das transições, tinha duas faces, o que lhe permitia enxergar o passado e o futuro ao mesmo tempo. O olhar retrospectivo indicava-lhe a prudência, ou seja, o que fizemos de certo ou errado, e o que precisamos fazer melhor da próxima vez. Aqui já temos matéria para nos associarmos assiduamente. O olhar prospectivo dava-lhe coragem e determinação, mas alertava-o contra as pedras que encontraria pelo caminho, alertando-lhe para a necessidade do tirocínio, da coragem e da determinação. No Brasil, só os muito obtusos ignoram que uma séria crise provavelmente nos atingirá dentro de duas ou três décadas, graças à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com a classe política e os partidos políticos que hoje possuímos, e a possível reeleição de Lula da Silva, é fácil inferir que tal crise poderá ser pior que o necessário. Somos, como é sabido, abundantes em tudo, inclusive em arrogância. A perspectiva acima alinhada significa que insistiremos na pretensão econômica que nós acompanhamos desde a Revolução de 1930: a de querer crescer somente com recursos públicos e com uma economia fechada, abominando o mercado e nos lixando para a indispensável criação de um ambiente sadio para os negócios.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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