Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Eleições 2024 – cenário e elenco


Nós, que preferimos ser governados por uma Mangustina que por uma Naja, ficaríamos aliviados se os indiferentes cogitassem apoiar o lado mais promissor

Por Bolívar Lamounier

Até o momento, o brilho da eleição municipal ficou por conta dos ipês. Frondosos ipês amarelos, ipês brancos e até vermelhos. No que toca ao elenco, o que temos visto é o de sempre: gente que não deveria se candidatar nem a vereador, talvez nem mesmo a gerente de condomínio.

Mas, com um pouco de boa vontade, algo sempre se encontra. Na capital paulista, temos a grata novidade da candidatura de Tabata Amaral. Mulher, jovem, inteligente, ela pode vir a ser o impulso de renovação pelo qual temos ansiado. A questão é: será ela capaz de ganhar corpo a ponto de bater os supostamente mais fortes e experientes?

Permita-me aqui o leitor uma breve digressão. Nenhuma contenda está realmente decidida enquanto a plateia não manifesta com clareza seu espectro de preferências. É óbvio que, por plateia, quero aqui me referir aos nossos cerca de 10 milhões de cidadãos aptos a votar. Sendo o voto obrigatório, podemos afirmar com segurança que cerca de 80% deles comparecerão às urnas, mas, infelizmente, podemos também afirmar que poucos refletirão sobre o que exatamente irão se pronunciar. É possível que os 20% mais escolarizados e atentos à vida pública o façam, e é destes, precisamente, que Tabata Amaral precisa para sobrepujar os supostamente “grandes”. Da metade para baixo, a triste verdade é que uma parcela expressiva é constituída por desinteressados e indiferentes. Assim, permaneceremos onde sempre estivemos, ou seja, sujeitos a impostos escorchantes e maus governos e vivendo numa cidade incapaz de se alçar ao papel que lhe caberia no Brasil e no hemisfério.

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Voltamos, assim, à milenar contraposição entre o “pequeno” e o “grande”. Ao episódio bíblico do confronto entre o pequenino Davi e o gigante Golias. O vencido e seu povo ficariam na condição de escravos do vencedor. Deu-se, entretanto, que Davi, valendo-se de sua funda, acertou uma pedra de bom tamanho na testa de Golias, matando-o e preservando a liberdade de seu povo. A História registra inúmeras variações dessa história. Nos dias de hoje, a que mais me impressiona é a do Mangusto, um bichinho do tamanho de um gato, que enfrenta serpentes como a Naja e a Mamba-Negra, ferocíssimas, e impõe-lhes um destino semelhante ao de Golias em 9 de cada 10 pelejas. Isso não acontece porque ele tenha o benefício de uma plateia empenhada e numerosa, mas porque a natureza lhe prodigalizou com uma velocidade e uma astúcia fora do comum. Ao vê-lo em seu caminho, a Naja pensa que será um passeio, mas engana-se redondamente. O Mangusto a provoca, dança em volta dela, chega mesmo a saltar sobre ela, até que ela, a Naja, lhe desfere um violento golpe. Ele desvencilha e ela bate com a cabeça no chão, sofrendo o efeito de sua própria pancada. Mais uma rodada e a cena se repete. Furibunda, soberba, ela acha que desta vez o matará, mas outra vez bate com a cabeça no chão. Na sexta ou sétima rodadas, exausta, estatelada, ela se deixa ficar no chão, imóvel. É aí, então, que o Mangusto mete-lhe uma dentada no crânio, pega o celular e liga para a Mangustina, pedindo-lhe capricho nos temperos do jantar.

“Tudo é bom que bem termina”, escreveu Shakespeare, mas nós, que preferimos ser governados por uma Mangustina que por uma Naja, ficaríamos aliviados se, pelo menos uma vez na vida, os indiferentes se enchessem de brios e cogitassem apoiar o lado mais promissor. Quando, em vez de se dirigirem aos cidadãos com maus modos e impropérios, discorressem sobre propostas e projetos minimamente consistentes. Quando convidassem os indiferentes a imaginar uma cidade digna de sua antiga imagem de progresso, dinamismo e altivez. Digna de algo melhor do que isto a que nos submetemos todo dia: criminalidade comum e organizada em ascensão, insegurança generalizada, 30% de semianalfabetos, corrupção sem pejo até entre altos magistrados e, por último, mas não menos importante, cracolândias e miseráveis catando comida em latas de lixo. A tanto só chegaremos se Mangustos e indiferentes se derem as mãos.

Até aqui, limitei-me a tratar, como numa pequena peça de ficção, do cenário e do elenco, deixando de lado o enredo. Dá-se, porém, que nossos maravilhosos ipês compõem o cenário da natureza, não o da política. Nesta, o cenário só ganha forma quando os contendores se dão conta de que os cargos aos quais concorrem não são meros “empregos públicos”, mas pilares da esfera pública.

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Esta última observação adquire relevo quando pensamos que o Brasil não tem atualmente – e nada faz crer que venha um dia a ter – partidos políticos de verdade, capazes de cumprir os papéis que deles se espera. O primeiro de tais papéis é motivar cidadãos sérios a participar da vida pública. O segundo é servir como fator de ponderação e correia de transmissão entre as preferências da sociedade e os poderes públicos, notadamente o Legislativo. Terceiro, respeitando-se mutuamente, participar da formulação e da implementação de programas públicos que não se resumam na obtenção de “emendas” orçamentárias e de cargos para suas parentelas.

*

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Até o momento, o brilho da eleição municipal ficou por conta dos ipês. Frondosos ipês amarelos, ipês brancos e até vermelhos. No que toca ao elenco, o que temos visto é o de sempre: gente que não deveria se candidatar nem a vereador, talvez nem mesmo a gerente de condomínio.

Mas, com um pouco de boa vontade, algo sempre se encontra. Na capital paulista, temos a grata novidade da candidatura de Tabata Amaral. Mulher, jovem, inteligente, ela pode vir a ser o impulso de renovação pelo qual temos ansiado. A questão é: será ela capaz de ganhar corpo a ponto de bater os supostamente mais fortes e experientes?

Permita-me aqui o leitor uma breve digressão. Nenhuma contenda está realmente decidida enquanto a plateia não manifesta com clareza seu espectro de preferências. É óbvio que, por plateia, quero aqui me referir aos nossos cerca de 10 milhões de cidadãos aptos a votar. Sendo o voto obrigatório, podemos afirmar com segurança que cerca de 80% deles comparecerão às urnas, mas, infelizmente, podemos também afirmar que poucos refletirão sobre o que exatamente irão se pronunciar. É possível que os 20% mais escolarizados e atentos à vida pública o façam, e é destes, precisamente, que Tabata Amaral precisa para sobrepujar os supostamente “grandes”. Da metade para baixo, a triste verdade é que uma parcela expressiva é constituída por desinteressados e indiferentes. Assim, permaneceremos onde sempre estivemos, ou seja, sujeitos a impostos escorchantes e maus governos e vivendo numa cidade incapaz de se alçar ao papel que lhe caberia no Brasil e no hemisfério.

Voltamos, assim, à milenar contraposição entre o “pequeno” e o “grande”. Ao episódio bíblico do confronto entre o pequenino Davi e o gigante Golias. O vencido e seu povo ficariam na condição de escravos do vencedor. Deu-se, entretanto, que Davi, valendo-se de sua funda, acertou uma pedra de bom tamanho na testa de Golias, matando-o e preservando a liberdade de seu povo. A História registra inúmeras variações dessa história. Nos dias de hoje, a que mais me impressiona é a do Mangusto, um bichinho do tamanho de um gato, que enfrenta serpentes como a Naja e a Mamba-Negra, ferocíssimas, e impõe-lhes um destino semelhante ao de Golias em 9 de cada 10 pelejas. Isso não acontece porque ele tenha o benefício de uma plateia empenhada e numerosa, mas porque a natureza lhe prodigalizou com uma velocidade e uma astúcia fora do comum. Ao vê-lo em seu caminho, a Naja pensa que será um passeio, mas engana-se redondamente. O Mangusto a provoca, dança em volta dela, chega mesmo a saltar sobre ela, até que ela, a Naja, lhe desfere um violento golpe. Ele desvencilha e ela bate com a cabeça no chão, sofrendo o efeito de sua própria pancada. Mais uma rodada e a cena se repete. Furibunda, soberba, ela acha que desta vez o matará, mas outra vez bate com a cabeça no chão. Na sexta ou sétima rodadas, exausta, estatelada, ela se deixa ficar no chão, imóvel. É aí, então, que o Mangusto mete-lhe uma dentada no crânio, pega o celular e liga para a Mangustina, pedindo-lhe capricho nos temperos do jantar.

“Tudo é bom que bem termina”, escreveu Shakespeare, mas nós, que preferimos ser governados por uma Mangustina que por uma Naja, ficaríamos aliviados se, pelo menos uma vez na vida, os indiferentes se enchessem de brios e cogitassem apoiar o lado mais promissor. Quando, em vez de se dirigirem aos cidadãos com maus modos e impropérios, discorressem sobre propostas e projetos minimamente consistentes. Quando convidassem os indiferentes a imaginar uma cidade digna de sua antiga imagem de progresso, dinamismo e altivez. Digna de algo melhor do que isto a que nos submetemos todo dia: criminalidade comum e organizada em ascensão, insegurança generalizada, 30% de semianalfabetos, corrupção sem pejo até entre altos magistrados e, por último, mas não menos importante, cracolândias e miseráveis catando comida em latas de lixo. A tanto só chegaremos se Mangustos e indiferentes se derem as mãos.

Até aqui, limitei-me a tratar, como numa pequena peça de ficção, do cenário e do elenco, deixando de lado o enredo. Dá-se, porém, que nossos maravilhosos ipês compõem o cenário da natureza, não o da política. Nesta, o cenário só ganha forma quando os contendores se dão conta de que os cargos aos quais concorrem não são meros “empregos públicos”, mas pilares da esfera pública.

Esta última observação adquire relevo quando pensamos que o Brasil não tem atualmente – e nada faz crer que venha um dia a ter – partidos políticos de verdade, capazes de cumprir os papéis que deles se espera. O primeiro de tais papéis é motivar cidadãos sérios a participar da vida pública. O segundo é servir como fator de ponderação e correia de transmissão entre as preferências da sociedade e os poderes públicos, notadamente o Legislativo. Terceiro, respeitando-se mutuamente, participar da formulação e da implementação de programas públicos que não se resumam na obtenção de “emendas” orçamentárias e de cargos para suas parentelas.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Até o momento, o brilho da eleição municipal ficou por conta dos ipês. Frondosos ipês amarelos, ipês brancos e até vermelhos. No que toca ao elenco, o que temos visto é o de sempre: gente que não deveria se candidatar nem a vereador, talvez nem mesmo a gerente de condomínio.

Mas, com um pouco de boa vontade, algo sempre se encontra. Na capital paulista, temos a grata novidade da candidatura de Tabata Amaral. Mulher, jovem, inteligente, ela pode vir a ser o impulso de renovação pelo qual temos ansiado. A questão é: será ela capaz de ganhar corpo a ponto de bater os supostamente mais fortes e experientes?

Permita-me aqui o leitor uma breve digressão. Nenhuma contenda está realmente decidida enquanto a plateia não manifesta com clareza seu espectro de preferências. É óbvio que, por plateia, quero aqui me referir aos nossos cerca de 10 milhões de cidadãos aptos a votar. Sendo o voto obrigatório, podemos afirmar com segurança que cerca de 80% deles comparecerão às urnas, mas, infelizmente, podemos também afirmar que poucos refletirão sobre o que exatamente irão se pronunciar. É possível que os 20% mais escolarizados e atentos à vida pública o façam, e é destes, precisamente, que Tabata Amaral precisa para sobrepujar os supostamente “grandes”. Da metade para baixo, a triste verdade é que uma parcela expressiva é constituída por desinteressados e indiferentes. Assim, permaneceremos onde sempre estivemos, ou seja, sujeitos a impostos escorchantes e maus governos e vivendo numa cidade incapaz de se alçar ao papel que lhe caberia no Brasil e no hemisfério.

Voltamos, assim, à milenar contraposição entre o “pequeno” e o “grande”. Ao episódio bíblico do confronto entre o pequenino Davi e o gigante Golias. O vencido e seu povo ficariam na condição de escravos do vencedor. Deu-se, entretanto, que Davi, valendo-se de sua funda, acertou uma pedra de bom tamanho na testa de Golias, matando-o e preservando a liberdade de seu povo. A História registra inúmeras variações dessa história. Nos dias de hoje, a que mais me impressiona é a do Mangusto, um bichinho do tamanho de um gato, que enfrenta serpentes como a Naja e a Mamba-Negra, ferocíssimas, e impõe-lhes um destino semelhante ao de Golias em 9 de cada 10 pelejas. Isso não acontece porque ele tenha o benefício de uma plateia empenhada e numerosa, mas porque a natureza lhe prodigalizou com uma velocidade e uma astúcia fora do comum. Ao vê-lo em seu caminho, a Naja pensa que será um passeio, mas engana-se redondamente. O Mangusto a provoca, dança em volta dela, chega mesmo a saltar sobre ela, até que ela, a Naja, lhe desfere um violento golpe. Ele desvencilha e ela bate com a cabeça no chão, sofrendo o efeito de sua própria pancada. Mais uma rodada e a cena se repete. Furibunda, soberba, ela acha que desta vez o matará, mas outra vez bate com a cabeça no chão. Na sexta ou sétima rodadas, exausta, estatelada, ela se deixa ficar no chão, imóvel. É aí, então, que o Mangusto mete-lhe uma dentada no crânio, pega o celular e liga para a Mangustina, pedindo-lhe capricho nos temperos do jantar.

“Tudo é bom que bem termina”, escreveu Shakespeare, mas nós, que preferimos ser governados por uma Mangustina que por uma Naja, ficaríamos aliviados se, pelo menos uma vez na vida, os indiferentes se enchessem de brios e cogitassem apoiar o lado mais promissor. Quando, em vez de se dirigirem aos cidadãos com maus modos e impropérios, discorressem sobre propostas e projetos minimamente consistentes. Quando convidassem os indiferentes a imaginar uma cidade digna de sua antiga imagem de progresso, dinamismo e altivez. Digna de algo melhor do que isto a que nos submetemos todo dia: criminalidade comum e organizada em ascensão, insegurança generalizada, 30% de semianalfabetos, corrupção sem pejo até entre altos magistrados e, por último, mas não menos importante, cracolândias e miseráveis catando comida em latas de lixo. A tanto só chegaremos se Mangustos e indiferentes se derem as mãos.

Até aqui, limitei-me a tratar, como numa pequena peça de ficção, do cenário e do elenco, deixando de lado o enredo. Dá-se, porém, que nossos maravilhosos ipês compõem o cenário da natureza, não o da política. Nesta, o cenário só ganha forma quando os contendores se dão conta de que os cargos aos quais concorrem não são meros “empregos públicos”, mas pilares da esfera pública.

Esta última observação adquire relevo quando pensamos que o Brasil não tem atualmente – e nada faz crer que venha um dia a ter – partidos políticos de verdade, capazes de cumprir os papéis que deles se espera. O primeiro de tais papéis é motivar cidadãos sérios a participar da vida pública. O segundo é servir como fator de ponderação e correia de transmissão entre as preferências da sociedade e os poderes públicos, notadamente o Legislativo. Terceiro, respeitando-se mutuamente, participar da formulação e da implementação de programas públicos que não se resumam na obtenção de “emendas” orçamentárias e de cargos para suas parentelas.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Até o momento, o brilho da eleição municipal ficou por conta dos ipês. Frondosos ipês amarelos, ipês brancos e até vermelhos. No que toca ao elenco, o que temos visto é o de sempre: gente que não deveria se candidatar nem a vereador, talvez nem mesmo a gerente de condomínio.

Mas, com um pouco de boa vontade, algo sempre se encontra. Na capital paulista, temos a grata novidade da candidatura de Tabata Amaral. Mulher, jovem, inteligente, ela pode vir a ser o impulso de renovação pelo qual temos ansiado. A questão é: será ela capaz de ganhar corpo a ponto de bater os supostamente mais fortes e experientes?

Permita-me aqui o leitor uma breve digressão. Nenhuma contenda está realmente decidida enquanto a plateia não manifesta com clareza seu espectro de preferências. É óbvio que, por plateia, quero aqui me referir aos nossos cerca de 10 milhões de cidadãos aptos a votar. Sendo o voto obrigatório, podemos afirmar com segurança que cerca de 80% deles comparecerão às urnas, mas, infelizmente, podemos também afirmar que poucos refletirão sobre o que exatamente irão se pronunciar. É possível que os 20% mais escolarizados e atentos à vida pública o façam, e é destes, precisamente, que Tabata Amaral precisa para sobrepujar os supostamente “grandes”. Da metade para baixo, a triste verdade é que uma parcela expressiva é constituída por desinteressados e indiferentes. Assim, permaneceremos onde sempre estivemos, ou seja, sujeitos a impostos escorchantes e maus governos e vivendo numa cidade incapaz de se alçar ao papel que lhe caberia no Brasil e no hemisfério.

Voltamos, assim, à milenar contraposição entre o “pequeno” e o “grande”. Ao episódio bíblico do confronto entre o pequenino Davi e o gigante Golias. O vencido e seu povo ficariam na condição de escravos do vencedor. Deu-se, entretanto, que Davi, valendo-se de sua funda, acertou uma pedra de bom tamanho na testa de Golias, matando-o e preservando a liberdade de seu povo. A História registra inúmeras variações dessa história. Nos dias de hoje, a que mais me impressiona é a do Mangusto, um bichinho do tamanho de um gato, que enfrenta serpentes como a Naja e a Mamba-Negra, ferocíssimas, e impõe-lhes um destino semelhante ao de Golias em 9 de cada 10 pelejas. Isso não acontece porque ele tenha o benefício de uma plateia empenhada e numerosa, mas porque a natureza lhe prodigalizou com uma velocidade e uma astúcia fora do comum. Ao vê-lo em seu caminho, a Naja pensa que será um passeio, mas engana-se redondamente. O Mangusto a provoca, dança em volta dela, chega mesmo a saltar sobre ela, até que ela, a Naja, lhe desfere um violento golpe. Ele desvencilha e ela bate com a cabeça no chão, sofrendo o efeito de sua própria pancada. Mais uma rodada e a cena se repete. Furibunda, soberba, ela acha que desta vez o matará, mas outra vez bate com a cabeça no chão. Na sexta ou sétima rodadas, exausta, estatelada, ela se deixa ficar no chão, imóvel. É aí, então, que o Mangusto mete-lhe uma dentada no crânio, pega o celular e liga para a Mangustina, pedindo-lhe capricho nos temperos do jantar.

“Tudo é bom que bem termina”, escreveu Shakespeare, mas nós, que preferimos ser governados por uma Mangustina que por uma Naja, ficaríamos aliviados se, pelo menos uma vez na vida, os indiferentes se enchessem de brios e cogitassem apoiar o lado mais promissor. Quando, em vez de se dirigirem aos cidadãos com maus modos e impropérios, discorressem sobre propostas e projetos minimamente consistentes. Quando convidassem os indiferentes a imaginar uma cidade digna de sua antiga imagem de progresso, dinamismo e altivez. Digna de algo melhor do que isto a que nos submetemos todo dia: criminalidade comum e organizada em ascensão, insegurança generalizada, 30% de semianalfabetos, corrupção sem pejo até entre altos magistrados e, por último, mas não menos importante, cracolândias e miseráveis catando comida em latas de lixo. A tanto só chegaremos se Mangustos e indiferentes se derem as mãos.

Até aqui, limitei-me a tratar, como numa pequena peça de ficção, do cenário e do elenco, deixando de lado o enredo. Dá-se, porém, que nossos maravilhosos ipês compõem o cenário da natureza, não o da política. Nesta, o cenário só ganha forma quando os contendores se dão conta de que os cargos aos quais concorrem não são meros “empregos públicos”, mas pilares da esfera pública.

Esta última observação adquire relevo quando pensamos que o Brasil não tem atualmente – e nada faz crer que venha um dia a ter – partidos políticos de verdade, capazes de cumprir os papéis que deles se espera. O primeiro de tais papéis é motivar cidadãos sérios a participar da vida pública. O segundo é servir como fator de ponderação e correia de transmissão entre as preferências da sociedade e os poderes públicos, notadamente o Legislativo. Terceiro, respeitando-se mutuamente, participar da formulação e da implementação de programas públicos que não se resumam na obtenção de “emendas” orçamentárias e de cargos para suas parentelas.

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