Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Esse Brasil lindo e trigueiro


Sim, somos lindos e trigueiros, como disse Ary Barroso, mas cumpre reconhecer que somos também uma carneirada

Por Bolívar Lamounier

Oitenta e cinco anos atrás, em sua Aquarela do Brasil, Ary Barroso descreveu o Brasil como “lindo e trigueiro”. E acrescentou que não há maior felicidade neste mundo que cochilar numa rede amarrada a dois coqueiros.

De fato, coqueirais o Brasil tem a perder de vista. Se cocos fossem uma commodity, como a soja ou o minério de ferro, os chineses com certeza sairiam daqui com navios cheios do valioso produto. E nos pagariam com pandeiros made in China para o carnaval do Rio, sombrinhas para o frevo do Recife e, naturalmente, redes de amarrar em coqueiros.

Além de lindo, o grande Ary acrescentou que o Brasil era um país trigueiro, ou seja, pardo, mulato, moreno. Em 1938, a miscigenação racial era uma ínfima parcela do que é hoje, mas ele nem precisou de óculos para notar que, àquela época, já éramos um país amplamente miscigenado. E, juntando os dois adjetivos, lindo e trigueiro, deixou claro que só um rematado idiota vê a miscigenação como um mal. Um país trigueiro reduz ao mínimo possível a infinidade de conflitos que acontecem em países não miscigenados.

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Longe de mim desconhecer que nossas desigualdades raciais não estão resolvidas. Os não-brancos ainda aparecem em desvantagem em todos os indicadores coletados pelo IBGE. São discriminados com mais frequência, são menos escolarizados, auferem remuneração inferior (sobretudo as mulheres) por trabalho igual e têm maior chance de ser encarcerados ou assassinados. Somos menos racistas que, por exemplo, os Estados Unidos, mas o racismo existe, aninhado na mesma molécula que abriga a pobreza. O que acima vai dito é de uma meridiana clareza. Nunca me passou pela cabeça que um dia alguém viesse a pôr em dúvida os benefícios da miscigenação.

Mas, pasmem, esse alguém apareceu. São os chamados “identitários”. Segundo essa escola de pensamento (há quem a chame de seita), cada grupo tem de assumir sua identidade. Cada um no seu quadrado. Claro, a ideia de identidade comporta inúmeras variações. No limite, cada indivíduo tem a sua. Mas os “identitários” referem-se principalmente às etnias, abominando toda miscigenação entre elas. A política de cotas raciais reforça em alguma medida esse entendimento. Existem relatos de indivíduos morenos ou quase brancos que se declaram negros para se qualificar ao benefício da cota. Grave, porém, é o problema de fundo. “Cada um no seu quadrado” significa conferir menos valor ao que nos une do que ao que nos separa. Significa rejeitar a identidade nacional, ou seja, a identidade de todo o País, que a duras penas conseguimos construir, não obstante a pobreza, as desigualdades sociais e regionais e por aí afora. Dispenso-me de comentar aqui o show de identitarismo que Lula encenou em sua cerimônia de posse; esperto, ele sabia que tal sandice seria eterna enquanto durasse, e ela durou pouco, uma vez que o apoio do Centrão lhe seria mais rentável.

Um leitor excêntrico poderá objetar que, sem essa esdrúxula bandeira, os identitaristas nada teriam a fazer. Não questiono a força desse argumento, mas peço vênia para sugerir-lhes algumas alternativas. Por que não se dedicam a uma avaliação séria de nossa organização educacional? Por que não buscam uma justificativa (mesmo sabendo que não a irão encontrar) para a gratuidade do ensino superior nas universidades públicas para os filhos de famílias abastadas, aquelas que não dispensam uma casa na praia ou uma viagem anual à Europa? Quanto eu saiba, o primeiro a questionar isso foi Karl Marx, no documento intitulado Crítica ao Programa de Gotha, de 1875. Numa curta passagem, ele se referiu ao Estado norte-americano de Wisconsin, indagando por que o erário arcava com a formação superior dos filhos da burguesia. Apresso-me a acrescentar que tal situação piorou muito. Hoje, nos Estados Unidos, algumas universidades públicas cobram anuidades mais altas que as universidades aristocráticas do Leste (Princeton, Yale e Harvard), a chamada Ivy League. Sendo ou não um intento deliberado, o resultado, obviamente, é a exclusão de muitos candidatos aptos, entre os quais, não preciso dizer, avultam os negros. No Brasil, a gratuidade poderia ser mantida para os estudantes comprovadamente desprovidos de meios, exigindo-se, porém, dos abastados o pagamento de anuidade ou a dedicação de uma parte de seu tempo a contribuir para o aprimoramento dos docentes de primeiro grau em sua microrregião.

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A educação é apenas um exemplo, quiçá o mais óbvio. Mas todos nós – dos brancos de olhos azuis aos pretos retintos – pagamos impostos. Concebendo projetos que em muitos casos nem mereceriam comentário, o governo nos impõe (imposto não é voluntário, é algo que nos é imposto) o respectivo financiamento. O leitor por acaso se lembra da pletora de estádios de futebol construída com recursos públicos? Certos clubes despendem somas astronômicas para contratar atletas e técnicos, mas mandam a fatura para o governo, ou seja, para todos nós. Sim, somos lindos e trigueiros, mas cumpre reconhecer que somos também uma carneirada.

*

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Oitenta e cinco anos atrás, em sua Aquarela do Brasil, Ary Barroso descreveu o Brasil como “lindo e trigueiro”. E acrescentou que não há maior felicidade neste mundo que cochilar numa rede amarrada a dois coqueiros.

De fato, coqueirais o Brasil tem a perder de vista. Se cocos fossem uma commodity, como a soja ou o minério de ferro, os chineses com certeza sairiam daqui com navios cheios do valioso produto. E nos pagariam com pandeiros made in China para o carnaval do Rio, sombrinhas para o frevo do Recife e, naturalmente, redes de amarrar em coqueiros.

Além de lindo, o grande Ary acrescentou que o Brasil era um país trigueiro, ou seja, pardo, mulato, moreno. Em 1938, a miscigenação racial era uma ínfima parcela do que é hoje, mas ele nem precisou de óculos para notar que, àquela época, já éramos um país amplamente miscigenado. E, juntando os dois adjetivos, lindo e trigueiro, deixou claro que só um rematado idiota vê a miscigenação como um mal. Um país trigueiro reduz ao mínimo possível a infinidade de conflitos que acontecem em países não miscigenados.

Longe de mim desconhecer que nossas desigualdades raciais não estão resolvidas. Os não-brancos ainda aparecem em desvantagem em todos os indicadores coletados pelo IBGE. São discriminados com mais frequência, são menos escolarizados, auferem remuneração inferior (sobretudo as mulheres) por trabalho igual e têm maior chance de ser encarcerados ou assassinados. Somos menos racistas que, por exemplo, os Estados Unidos, mas o racismo existe, aninhado na mesma molécula que abriga a pobreza. O que acima vai dito é de uma meridiana clareza. Nunca me passou pela cabeça que um dia alguém viesse a pôr em dúvida os benefícios da miscigenação.

Mas, pasmem, esse alguém apareceu. São os chamados “identitários”. Segundo essa escola de pensamento (há quem a chame de seita), cada grupo tem de assumir sua identidade. Cada um no seu quadrado. Claro, a ideia de identidade comporta inúmeras variações. No limite, cada indivíduo tem a sua. Mas os “identitários” referem-se principalmente às etnias, abominando toda miscigenação entre elas. A política de cotas raciais reforça em alguma medida esse entendimento. Existem relatos de indivíduos morenos ou quase brancos que se declaram negros para se qualificar ao benefício da cota. Grave, porém, é o problema de fundo. “Cada um no seu quadrado” significa conferir menos valor ao que nos une do que ao que nos separa. Significa rejeitar a identidade nacional, ou seja, a identidade de todo o País, que a duras penas conseguimos construir, não obstante a pobreza, as desigualdades sociais e regionais e por aí afora. Dispenso-me de comentar aqui o show de identitarismo que Lula encenou em sua cerimônia de posse; esperto, ele sabia que tal sandice seria eterna enquanto durasse, e ela durou pouco, uma vez que o apoio do Centrão lhe seria mais rentável.

Um leitor excêntrico poderá objetar que, sem essa esdrúxula bandeira, os identitaristas nada teriam a fazer. Não questiono a força desse argumento, mas peço vênia para sugerir-lhes algumas alternativas. Por que não se dedicam a uma avaliação séria de nossa organização educacional? Por que não buscam uma justificativa (mesmo sabendo que não a irão encontrar) para a gratuidade do ensino superior nas universidades públicas para os filhos de famílias abastadas, aquelas que não dispensam uma casa na praia ou uma viagem anual à Europa? Quanto eu saiba, o primeiro a questionar isso foi Karl Marx, no documento intitulado Crítica ao Programa de Gotha, de 1875. Numa curta passagem, ele se referiu ao Estado norte-americano de Wisconsin, indagando por que o erário arcava com a formação superior dos filhos da burguesia. Apresso-me a acrescentar que tal situação piorou muito. Hoje, nos Estados Unidos, algumas universidades públicas cobram anuidades mais altas que as universidades aristocráticas do Leste (Princeton, Yale e Harvard), a chamada Ivy League. Sendo ou não um intento deliberado, o resultado, obviamente, é a exclusão de muitos candidatos aptos, entre os quais, não preciso dizer, avultam os negros. No Brasil, a gratuidade poderia ser mantida para os estudantes comprovadamente desprovidos de meios, exigindo-se, porém, dos abastados o pagamento de anuidade ou a dedicação de uma parte de seu tempo a contribuir para o aprimoramento dos docentes de primeiro grau em sua microrregião.

A educação é apenas um exemplo, quiçá o mais óbvio. Mas todos nós – dos brancos de olhos azuis aos pretos retintos – pagamos impostos. Concebendo projetos que em muitos casos nem mereceriam comentário, o governo nos impõe (imposto não é voluntário, é algo que nos é imposto) o respectivo financiamento. O leitor por acaso se lembra da pletora de estádios de futebol construída com recursos públicos? Certos clubes despendem somas astronômicas para contratar atletas e técnicos, mas mandam a fatura para o governo, ou seja, para todos nós. Sim, somos lindos e trigueiros, mas cumpre reconhecer que somos também uma carneirada.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Oitenta e cinco anos atrás, em sua Aquarela do Brasil, Ary Barroso descreveu o Brasil como “lindo e trigueiro”. E acrescentou que não há maior felicidade neste mundo que cochilar numa rede amarrada a dois coqueiros.

De fato, coqueirais o Brasil tem a perder de vista. Se cocos fossem uma commodity, como a soja ou o minério de ferro, os chineses com certeza sairiam daqui com navios cheios do valioso produto. E nos pagariam com pandeiros made in China para o carnaval do Rio, sombrinhas para o frevo do Recife e, naturalmente, redes de amarrar em coqueiros.

Além de lindo, o grande Ary acrescentou que o Brasil era um país trigueiro, ou seja, pardo, mulato, moreno. Em 1938, a miscigenação racial era uma ínfima parcela do que é hoje, mas ele nem precisou de óculos para notar que, àquela época, já éramos um país amplamente miscigenado. E, juntando os dois adjetivos, lindo e trigueiro, deixou claro que só um rematado idiota vê a miscigenação como um mal. Um país trigueiro reduz ao mínimo possível a infinidade de conflitos que acontecem em países não miscigenados.

Longe de mim desconhecer que nossas desigualdades raciais não estão resolvidas. Os não-brancos ainda aparecem em desvantagem em todos os indicadores coletados pelo IBGE. São discriminados com mais frequência, são menos escolarizados, auferem remuneração inferior (sobretudo as mulheres) por trabalho igual e têm maior chance de ser encarcerados ou assassinados. Somos menos racistas que, por exemplo, os Estados Unidos, mas o racismo existe, aninhado na mesma molécula que abriga a pobreza. O que acima vai dito é de uma meridiana clareza. Nunca me passou pela cabeça que um dia alguém viesse a pôr em dúvida os benefícios da miscigenação.

Mas, pasmem, esse alguém apareceu. São os chamados “identitários”. Segundo essa escola de pensamento (há quem a chame de seita), cada grupo tem de assumir sua identidade. Cada um no seu quadrado. Claro, a ideia de identidade comporta inúmeras variações. No limite, cada indivíduo tem a sua. Mas os “identitários” referem-se principalmente às etnias, abominando toda miscigenação entre elas. A política de cotas raciais reforça em alguma medida esse entendimento. Existem relatos de indivíduos morenos ou quase brancos que se declaram negros para se qualificar ao benefício da cota. Grave, porém, é o problema de fundo. “Cada um no seu quadrado” significa conferir menos valor ao que nos une do que ao que nos separa. Significa rejeitar a identidade nacional, ou seja, a identidade de todo o País, que a duras penas conseguimos construir, não obstante a pobreza, as desigualdades sociais e regionais e por aí afora. Dispenso-me de comentar aqui o show de identitarismo que Lula encenou em sua cerimônia de posse; esperto, ele sabia que tal sandice seria eterna enquanto durasse, e ela durou pouco, uma vez que o apoio do Centrão lhe seria mais rentável.

Um leitor excêntrico poderá objetar que, sem essa esdrúxula bandeira, os identitaristas nada teriam a fazer. Não questiono a força desse argumento, mas peço vênia para sugerir-lhes algumas alternativas. Por que não se dedicam a uma avaliação séria de nossa organização educacional? Por que não buscam uma justificativa (mesmo sabendo que não a irão encontrar) para a gratuidade do ensino superior nas universidades públicas para os filhos de famílias abastadas, aquelas que não dispensam uma casa na praia ou uma viagem anual à Europa? Quanto eu saiba, o primeiro a questionar isso foi Karl Marx, no documento intitulado Crítica ao Programa de Gotha, de 1875. Numa curta passagem, ele se referiu ao Estado norte-americano de Wisconsin, indagando por que o erário arcava com a formação superior dos filhos da burguesia. Apresso-me a acrescentar que tal situação piorou muito. Hoje, nos Estados Unidos, algumas universidades públicas cobram anuidades mais altas que as universidades aristocráticas do Leste (Princeton, Yale e Harvard), a chamada Ivy League. Sendo ou não um intento deliberado, o resultado, obviamente, é a exclusão de muitos candidatos aptos, entre os quais, não preciso dizer, avultam os negros. No Brasil, a gratuidade poderia ser mantida para os estudantes comprovadamente desprovidos de meios, exigindo-se, porém, dos abastados o pagamento de anuidade ou a dedicação de uma parte de seu tempo a contribuir para o aprimoramento dos docentes de primeiro grau em sua microrregião.

A educação é apenas um exemplo, quiçá o mais óbvio. Mas todos nós – dos brancos de olhos azuis aos pretos retintos – pagamos impostos. Concebendo projetos que em muitos casos nem mereceriam comentário, o governo nos impõe (imposto não é voluntário, é algo que nos é imposto) o respectivo financiamento. O leitor por acaso se lembra da pletora de estádios de futebol construída com recursos públicos? Certos clubes despendem somas astronômicas para contratar atletas e técnicos, mas mandam a fatura para o governo, ou seja, para todos nós. Sim, somos lindos e trigueiros, mas cumpre reconhecer que somos também uma carneirada.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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