Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Farol alto


Se cada cidadão dotado de recursos se dispuser a participar mais e substituir nossos amebianos partidos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno

Por Bolívar Lamounier

O fato que narro a seguir ocorreu no segundo semestre de 1983, no Rio de Janeiro, numa sala espaçosa do terceiro andar do Hotel Ouro Verde.

Um grupo de amigos – literatos, políticos, jornalistas – convidou Franco Montoro, governador de São Paulo, para um bate-papo. Com seu insuperável bom humor, Montoro cumprimentou-os um por um e se propôs a fazer uma exposição sobre seu governo. Começou pelas valiosas contribuições que recebia de Dona Lucy, sua esposa, e prosseguiu discorrendo sobre seus projetos: hortas comunitárias, a até então esquecida área das estradas vicinais e por aí afora. A certa altura, foi interpelado pelo saudoso Otto Lara Resende: “Farol alto, governador, farol alto”. Durante a risadinha que se seguiu, coisa de um minuto, Montoro não deixou a bola cair: engatou a terceira nos grandes problemas do País, no moribundo arbítrio militar, nos projetos “faraônicos” da era Geisel, que haviam aberto as portas do País para a “década perdida” – e, claro, foi efusivamente aplaudido.

Àquela altura, Dante de Oliveira, deputado federal pelo Mato Grosso, vinha solitariamente cogitando uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tornaria direto o processo sucessório do general João Baptista Figueiredo, cujo mandato expiraria no final de 1984. Proposta moderada, já se vê, pois tinha em vista apenas o pleito posterior à saída de Figueiredo. O assunto rarissimamente aparecia na imprensa escrita e nunca, ça va sans dire, na Rede Globo. Mas, como certa vez sentenciou uma ilustre figura da política nacional, “o futuro a Deus pertence”. E tanto isso é verdade que a reunião do Hotel Ouro Verde foi a sementinha que, paulatinamente, deu origem à campanha das Diretas Já, o maior movimento de massas que o Brasil conheceu, cujo ponto culminante viria a ser o colossal comício realizado na Praça da Sé no dia 25 de abril de 1984.

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Nesta altura, é oportuno recordar que os três principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) haviam passado às mãos de candidatos de oposição (o próprio Montoro, Tancredo Neves e Leonel Brizola) na eleição de 1982. Associada ao elevado nível de fermentação criado pela campanha das Diretas Já e aos desastres do endividamento externo e da “década perdida” engendrados pela quimera da industrialização em marcha forçada por Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo na Presidência, a referida mudança nos três principais governos estaduais alterou a realidade política do País, que se converteu, como acertadamente diagnosticou o cientista político Juan Linz, numa “instável diarquia”, que não se poderia manter dentro de um quadro institucional normal.

A Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso, mas a lucidez de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e outros obteve apoio de massas para reorientar o movimento. Se a negativa do Congresso fechou o caminho da eleição direta, o enfrentamento seria levado à cova dos leões, ou seja, ao próprio Colégio Eleitoral que os militares haviam estabelecido 21 anos antes com o objetivo de blindar o acesso à Presidência por alguma oposição (no caso, o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB). E foi lá, com efeito, que Tancredo Neves bateu Paulo Maluf, o candidato da continuidade do regime militar.

Otto Lara Resende não está mais conosco, mas a necessidade de alguém que exclame “farol alto” permanece, quiçá até com mais gravidade. Onde tínhamos um amplo consenso entre grandes líderes e na sociedade, hoje, temos uma desarrazoada polarização entre Lula e Jair Bolsonaro. Onde podíamos ter começado a construir partidos políticos sérios, hoje, temos uma miríade de interesses de duvidosa legitimidade. Quando nos imergimos na esperança de mudanças que deveriam vir com a Constituinte, Suas Excelências partejaram uma Carta contra a maioria das reformas necessárias e, ela mesma, virtualmente irreformável.

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A julgar pelas últimas cogitações sobre a questão fiscal trazidas a público, a hipótese de um minúsculo superávit nas contas públicas ficou para 2026, ou seja, para o final do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Daria para sorrir, não fora a também irreformável mania de que nossa economia só conseguirá crescer por meio de (inexistentes) recursos públicos.

No quadro descrito e no curto prazo, é cabível supor que não desembocaremos numa guerra civil ou em alguma monstruosa anarquia. Essa, entretanto, é uma hipótese que só um obtuso incapaz de visualizar um horizonte de 15 ou 20 anos descartaria sem a devida reflexão. Até porque, enfrentar desafios não é o nosso forte. Cabe, aqui, uma analogia com o conceito de produtividade em economia. Se cada cidadão dotado de recursos (pecuniários, educacionais, de liderança ou qualquer outro que se queira cogitar) se dispuser a participar mais e, assim, substituir nossos amebianos partidos políticos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno. Se não, ele pertencerá a Deus, como sempre pertenceu.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O fato que narro a seguir ocorreu no segundo semestre de 1983, no Rio de Janeiro, numa sala espaçosa do terceiro andar do Hotel Ouro Verde.

Um grupo de amigos – literatos, políticos, jornalistas – convidou Franco Montoro, governador de São Paulo, para um bate-papo. Com seu insuperável bom humor, Montoro cumprimentou-os um por um e se propôs a fazer uma exposição sobre seu governo. Começou pelas valiosas contribuições que recebia de Dona Lucy, sua esposa, e prosseguiu discorrendo sobre seus projetos: hortas comunitárias, a até então esquecida área das estradas vicinais e por aí afora. A certa altura, foi interpelado pelo saudoso Otto Lara Resende: “Farol alto, governador, farol alto”. Durante a risadinha que se seguiu, coisa de um minuto, Montoro não deixou a bola cair: engatou a terceira nos grandes problemas do País, no moribundo arbítrio militar, nos projetos “faraônicos” da era Geisel, que haviam aberto as portas do País para a “década perdida” – e, claro, foi efusivamente aplaudido.

Àquela altura, Dante de Oliveira, deputado federal pelo Mato Grosso, vinha solitariamente cogitando uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tornaria direto o processo sucessório do general João Baptista Figueiredo, cujo mandato expiraria no final de 1984. Proposta moderada, já se vê, pois tinha em vista apenas o pleito posterior à saída de Figueiredo. O assunto rarissimamente aparecia na imprensa escrita e nunca, ça va sans dire, na Rede Globo. Mas, como certa vez sentenciou uma ilustre figura da política nacional, “o futuro a Deus pertence”. E tanto isso é verdade que a reunião do Hotel Ouro Verde foi a sementinha que, paulatinamente, deu origem à campanha das Diretas Já, o maior movimento de massas que o Brasil conheceu, cujo ponto culminante viria a ser o colossal comício realizado na Praça da Sé no dia 25 de abril de 1984.

Nesta altura, é oportuno recordar que os três principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) haviam passado às mãos de candidatos de oposição (o próprio Montoro, Tancredo Neves e Leonel Brizola) na eleição de 1982. Associada ao elevado nível de fermentação criado pela campanha das Diretas Já e aos desastres do endividamento externo e da “década perdida” engendrados pela quimera da industrialização em marcha forçada por Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo na Presidência, a referida mudança nos três principais governos estaduais alterou a realidade política do País, que se converteu, como acertadamente diagnosticou o cientista político Juan Linz, numa “instável diarquia”, que não se poderia manter dentro de um quadro institucional normal.

A Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso, mas a lucidez de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e outros obteve apoio de massas para reorientar o movimento. Se a negativa do Congresso fechou o caminho da eleição direta, o enfrentamento seria levado à cova dos leões, ou seja, ao próprio Colégio Eleitoral que os militares haviam estabelecido 21 anos antes com o objetivo de blindar o acesso à Presidência por alguma oposição (no caso, o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB). E foi lá, com efeito, que Tancredo Neves bateu Paulo Maluf, o candidato da continuidade do regime militar.

Otto Lara Resende não está mais conosco, mas a necessidade de alguém que exclame “farol alto” permanece, quiçá até com mais gravidade. Onde tínhamos um amplo consenso entre grandes líderes e na sociedade, hoje, temos uma desarrazoada polarização entre Lula e Jair Bolsonaro. Onde podíamos ter começado a construir partidos políticos sérios, hoje, temos uma miríade de interesses de duvidosa legitimidade. Quando nos imergimos na esperança de mudanças que deveriam vir com a Constituinte, Suas Excelências partejaram uma Carta contra a maioria das reformas necessárias e, ela mesma, virtualmente irreformável.

A julgar pelas últimas cogitações sobre a questão fiscal trazidas a público, a hipótese de um minúsculo superávit nas contas públicas ficou para 2026, ou seja, para o final do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Daria para sorrir, não fora a também irreformável mania de que nossa economia só conseguirá crescer por meio de (inexistentes) recursos públicos.

No quadro descrito e no curto prazo, é cabível supor que não desembocaremos numa guerra civil ou em alguma monstruosa anarquia. Essa, entretanto, é uma hipótese que só um obtuso incapaz de visualizar um horizonte de 15 ou 20 anos descartaria sem a devida reflexão. Até porque, enfrentar desafios não é o nosso forte. Cabe, aqui, uma analogia com o conceito de produtividade em economia. Se cada cidadão dotado de recursos (pecuniários, educacionais, de liderança ou qualquer outro que se queira cogitar) se dispuser a participar mais e, assim, substituir nossos amebianos partidos políticos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno. Se não, ele pertencerá a Deus, como sempre pertenceu.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O fato que narro a seguir ocorreu no segundo semestre de 1983, no Rio de Janeiro, numa sala espaçosa do terceiro andar do Hotel Ouro Verde.

Um grupo de amigos – literatos, políticos, jornalistas – convidou Franco Montoro, governador de São Paulo, para um bate-papo. Com seu insuperável bom humor, Montoro cumprimentou-os um por um e se propôs a fazer uma exposição sobre seu governo. Começou pelas valiosas contribuições que recebia de Dona Lucy, sua esposa, e prosseguiu discorrendo sobre seus projetos: hortas comunitárias, a até então esquecida área das estradas vicinais e por aí afora. A certa altura, foi interpelado pelo saudoso Otto Lara Resende: “Farol alto, governador, farol alto”. Durante a risadinha que se seguiu, coisa de um minuto, Montoro não deixou a bola cair: engatou a terceira nos grandes problemas do País, no moribundo arbítrio militar, nos projetos “faraônicos” da era Geisel, que haviam aberto as portas do País para a “década perdida” – e, claro, foi efusivamente aplaudido.

Àquela altura, Dante de Oliveira, deputado federal pelo Mato Grosso, vinha solitariamente cogitando uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tornaria direto o processo sucessório do general João Baptista Figueiredo, cujo mandato expiraria no final de 1984. Proposta moderada, já se vê, pois tinha em vista apenas o pleito posterior à saída de Figueiredo. O assunto rarissimamente aparecia na imprensa escrita e nunca, ça va sans dire, na Rede Globo. Mas, como certa vez sentenciou uma ilustre figura da política nacional, “o futuro a Deus pertence”. E tanto isso é verdade que a reunião do Hotel Ouro Verde foi a sementinha que, paulatinamente, deu origem à campanha das Diretas Já, o maior movimento de massas que o Brasil conheceu, cujo ponto culminante viria a ser o colossal comício realizado na Praça da Sé no dia 25 de abril de 1984.

Nesta altura, é oportuno recordar que os três principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) haviam passado às mãos de candidatos de oposição (o próprio Montoro, Tancredo Neves e Leonel Brizola) na eleição de 1982. Associada ao elevado nível de fermentação criado pela campanha das Diretas Já e aos desastres do endividamento externo e da “década perdida” engendrados pela quimera da industrialização em marcha forçada por Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo na Presidência, a referida mudança nos três principais governos estaduais alterou a realidade política do País, que se converteu, como acertadamente diagnosticou o cientista político Juan Linz, numa “instável diarquia”, que não se poderia manter dentro de um quadro institucional normal.

A Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso, mas a lucidez de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e outros obteve apoio de massas para reorientar o movimento. Se a negativa do Congresso fechou o caminho da eleição direta, o enfrentamento seria levado à cova dos leões, ou seja, ao próprio Colégio Eleitoral que os militares haviam estabelecido 21 anos antes com o objetivo de blindar o acesso à Presidência por alguma oposição (no caso, o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB). E foi lá, com efeito, que Tancredo Neves bateu Paulo Maluf, o candidato da continuidade do regime militar.

Otto Lara Resende não está mais conosco, mas a necessidade de alguém que exclame “farol alto” permanece, quiçá até com mais gravidade. Onde tínhamos um amplo consenso entre grandes líderes e na sociedade, hoje, temos uma desarrazoada polarização entre Lula e Jair Bolsonaro. Onde podíamos ter começado a construir partidos políticos sérios, hoje, temos uma miríade de interesses de duvidosa legitimidade. Quando nos imergimos na esperança de mudanças que deveriam vir com a Constituinte, Suas Excelências partejaram uma Carta contra a maioria das reformas necessárias e, ela mesma, virtualmente irreformável.

A julgar pelas últimas cogitações sobre a questão fiscal trazidas a público, a hipótese de um minúsculo superávit nas contas públicas ficou para 2026, ou seja, para o final do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Daria para sorrir, não fora a também irreformável mania de que nossa economia só conseguirá crescer por meio de (inexistentes) recursos públicos.

No quadro descrito e no curto prazo, é cabível supor que não desembocaremos numa guerra civil ou em alguma monstruosa anarquia. Essa, entretanto, é uma hipótese que só um obtuso incapaz de visualizar um horizonte de 15 ou 20 anos descartaria sem a devida reflexão. Até porque, enfrentar desafios não é o nosso forte. Cabe, aqui, uma analogia com o conceito de produtividade em economia. Se cada cidadão dotado de recursos (pecuniários, educacionais, de liderança ou qualquer outro que se queira cogitar) se dispuser a participar mais e, assim, substituir nossos amebianos partidos políticos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno. Se não, ele pertencerá a Deus, como sempre pertenceu.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O fato que narro a seguir ocorreu no segundo semestre de 1983, no Rio de Janeiro, numa sala espaçosa do terceiro andar do Hotel Ouro Verde.

Um grupo de amigos – literatos, políticos, jornalistas – convidou Franco Montoro, governador de São Paulo, para um bate-papo. Com seu insuperável bom humor, Montoro cumprimentou-os um por um e se propôs a fazer uma exposição sobre seu governo. Começou pelas valiosas contribuições que recebia de Dona Lucy, sua esposa, e prosseguiu discorrendo sobre seus projetos: hortas comunitárias, a até então esquecida área das estradas vicinais e por aí afora. A certa altura, foi interpelado pelo saudoso Otto Lara Resende: “Farol alto, governador, farol alto”. Durante a risadinha que se seguiu, coisa de um minuto, Montoro não deixou a bola cair: engatou a terceira nos grandes problemas do País, no moribundo arbítrio militar, nos projetos “faraônicos” da era Geisel, que haviam aberto as portas do País para a “década perdida” – e, claro, foi efusivamente aplaudido.

Àquela altura, Dante de Oliveira, deputado federal pelo Mato Grosso, vinha solitariamente cogitando uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tornaria direto o processo sucessório do general João Baptista Figueiredo, cujo mandato expiraria no final de 1984. Proposta moderada, já se vê, pois tinha em vista apenas o pleito posterior à saída de Figueiredo. O assunto rarissimamente aparecia na imprensa escrita e nunca, ça va sans dire, na Rede Globo. Mas, como certa vez sentenciou uma ilustre figura da política nacional, “o futuro a Deus pertence”. E tanto isso é verdade que a reunião do Hotel Ouro Verde foi a sementinha que, paulatinamente, deu origem à campanha das Diretas Já, o maior movimento de massas que o Brasil conheceu, cujo ponto culminante viria a ser o colossal comício realizado na Praça da Sé no dia 25 de abril de 1984.

Nesta altura, é oportuno recordar que os três principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) haviam passado às mãos de candidatos de oposição (o próprio Montoro, Tancredo Neves e Leonel Brizola) na eleição de 1982. Associada ao elevado nível de fermentação criado pela campanha das Diretas Já e aos desastres do endividamento externo e da “década perdida” engendrados pela quimera da industrialização em marcha forçada por Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo na Presidência, a referida mudança nos três principais governos estaduais alterou a realidade política do País, que se converteu, como acertadamente diagnosticou o cientista político Juan Linz, numa “instável diarquia”, que não se poderia manter dentro de um quadro institucional normal.

A Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso, mas a lucidez de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e outros obteve apoio de massas para reorientar o movimento. Se a negativa do Congresso fechou o caminho da eleição direta, o enfrentamento seria levado à cova dos leões, ou seja, ao próprio Colégio Eleitoral que os militares haviam estabelecido 21 anos antes com o objetivo de blindar o acesso à Presidência por alguma oposição (no caso, o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB). E foi lá, com efeito, que Tancredo Neves bateu Paulo Maluf, o candidato da continuidade do regime militar.

Otto Lara Resende não está mais conosco, mas a necessidade de alguém que exclame “farol alto” permanece, quiçá até com mais gravidade. Onde tínhamos um amplo consenso entre grandes líderes e na sociedade, hoje, temos uma desarrazoada polarização entre Lula e Jair Bolsonaro. Onde podíamos ter começado a construir partidos políticos sérios, hoje, temos uma miríade de interesses de duvidosa legitimidade. Quando nos imergimos na esperança de mudanças que deveriam vir com a Constituinte, Suas Excelências partejaram uma Carta contra a maioria das reformas necessárias e, ela mesma, virtualmente irreformável.

A julgar pelas últimas cogitações sobre a questão fiscal trazidas a público, a hipótese de um minúsculo superávit nas contas públicas ficou para 2026, ou seja, para o final do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Daria para sorrir, não fora a também irreformável mania de que nossa economia só conseguirá crescer por meio de (inexistentes) recursos públicos.

No quadro descrito e no curto prazo, é cabível supor que não desembocaremos numa guerra civil ou em alguma monstruosa anarquia. Essa, entretanto, é uma hipótese que só um obtuso incapaz de visualizar um horizonte de 15 ou 20 anos descartaria sem a devida reflexão. Até porque, enfrentar desafios não é o nosso forte. Cabe, aqui, uma analogia com o conceito de produtividade em economia. Se cada cidadão dotado de recursos (pecuniários, educacionais, de liderança ou qualquer outro que se queira cogitar) se dispuser a participar mais e, assim, substituir nossos amebianos partidos políticos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno. Se não, ele pertencerá a Deus, como sempre pertenceu.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O fato que narro a seguir ocorreu no segundo semestre de 1983, no Rio de Janeiro, numa sala espaçosa do terceiro andar do Hotel Ouro Verde.

Um grupo de amigos – literatos, políticos, jornalistas – convidou Franco Montoro, governador de São Paulo, para um bate-papo. Com seu insuperável bom humor, Montoro cumprimentou-os um por um e se propôs a fazer uma exposição sobre seu governo. Começou pelas valiosas contribuições que recebia de Dona Lucy, sua esposa, e prosseguiu discorrendo sobre seus projetos: hortas comunitárias, a até então esquecida área das estradas vicinais e por aí afora. A certa altura, foi interpelado pelo saudoso Otto Lara Resende: “Farol alto, governador, farol alto”. Durante a risadinha que se seguiu, coisa de um minuto, Montoro não deixou a bola cair: engatou a terceira nos grandes problemas do País, no moribundo arbítrio militar, nos projetos “faraônicos” da era Geisel, que haviam aberto as portas do País para a “década perdida” – e, claro, foi efusivamente aplaudido.

Àquela altura, Dante de Oliveira, deputado federal pelo Mato Grosso, vinha solitariamente cogitando uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tornaria direto o processo sucessório do general João Baptista Figueiredo, cujo mandato expiraria no final de 1984. Proposta moderada, já se vê, pois tinha em vista apenas o pleito posterior à saída de Figueiredo. O assunto rarissimamente aparecia na imprensa escrita e nunca, ça va sans dire, na Rede Globo. Mas, como certa vez sentenciou uma ilustre figura da política nacional, “o futuro a Deus pertence”. E tanto isso é verdade que a reunião do Hotel Ouro Verde foi a sementinha que, paulatinamente, deu origem à campanha das Diretas Já, o maior movimento de massas que o Brasil conheceu, cujo ponto culminante viria a ser o colossal comício realizado na Praça da Sé no dia 25 de abril de 1984.

Nesta altura, é oportuno recordar que os três principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) haviam passado às mãos de candidatos de oposição (o próprio Montoro, Tancredo Neves e Leonel Brizola) na eleição de 1982. Associada ao elevado nível de fermentação criado pela campanha das Diretas Já e aos desastres do endividamento externo e da “década perdida” engendrados pela quimera da industrialização em marcha forçada por Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo na Presidência, a referida mudança nos três principais governos estaduais alterou a realidade política do País, que se converteu, como acertadamente diagnosticou o cientista político Juan Linz, numa “instável diarquia”, que não se poderia manter dentro de um quadro institucional normal.

A Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso, mas a lucidez de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e outros obteve apoio de massas para reorientar o movimento. Se a negativa do Congresso fechou o caminho da eleição direta, o enfrentamento seria levado à cova dos leões, ou seja, ao próprio Colégio Eleitoral que os militares haviam estabelecido 21 anos antes com o objetivo de blindar o acesso à Presidência por alguma oposição (no caso, o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB). E foi lá, com efeito, que Tancredo Neves bateu Paulo Maluf, o candidato da continuidade do regime militar.

Otto Lara Resende não está mais conosco, mas a necessidade de alguém que exclame “farol alto” permanece, quiçá até com mais gravidade. Onde tínhamos um amplo consenso entre grandes líderes e na sociedade, hoje, temos uma desarrazoada polarização entre Lula e Jair Bolsonaro. Onde podíamos ter começado a construir partidos políticos sérios, hoje, temos uma miríade de interesses de duvidosa legitimidade. Quando nos imergimos na esperança de mudanças que deveriam vir com a Constituinte, Suas Excelências partejaram uma Carta contra a maioria das reformas necessárias e, ela mesma, virtualmente irreformável.

A julgar pelas últimas cogitações sobre a questão fiscal trazidas a público, a hipótese de um minúsculo superávit nas contas públicas ficou para 2026, ou seja, para o final do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Daria para sorrir, não fora a também irreformável mania de que nossa economia só conseguirá crescer por meio de (inexistentes) recursos públicos.

No quadro descrito e no curto prazo, é cabível supor que não desembocaremos numa guerra civil ou em alguma monstruosa anarquia. Essa, entretanto, é uma hipótese que só um obtuso incapaz de visualizar um horizonte de 15 ou 20 anos descartaria sem a devida reflexão. Até porque, enfrentar desafios não é o nosso forte. Cabe, aqui, uma analogia com o conceito de produtividade em economia. Se cada cidadão dotado de recursos (pecuniários, educacionais, de liderança ou qualquer outro que se queira cogitar) se dispuser a participar mais e, assim, substituir nossos amebianos partidos políticos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno. Se não, ele pertencerá a Deus, como sempre pertenceu.

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