Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O fio da lâmina


Como compreender que um país facilmente governável permaneça neste estado de miséria e malquerenças políticas estúpidas como a que teve início na eleição presidencial de 2018?

Por Bolívar Lamounier

Alguns dos leitores que me honram com sua atenção consideram como “exagerado” o meu pessimismo sobre o Brasil atual.

Não sei se pessimismo é o termo adequado, mas reconheço a relevância do questionamento, pois, de fato, exageros (pessimistas ou otimistas) comprometem a objetividade de qualquer reflexão sobre as condições da sociedade. Assíduo leitor das publicações diárias, admito que raramente encontro nelas alguma razão para alívio. Um exemplo: na página A8 da edição de 11 do corrente mês, este jornal estampou a seguinte manchete: Com RS em crise, Lula envia texto ao Congresso que eleva salários no STF. Não ficaria chocado se entendesse que os mais altos magistrados vivem como miseráveis, mas esse não me parece ser o caso. Na edição de 16 de maio, na primeira página, o jornal voltou ao tema: No RS, Lula anuncia ajuda federal aos gaúchos com tom de comício. Por aí se vê que nosso principal aspirante a estadista não se preocupa sequer em disfarçar sua sensibilidade meramente eleitoreira.

Claro, o problema não é só brasileiro. Numa vigorosa série de ensaios, a jornalista Anne Applebaum, redatora da revista mensal norte-americana The Atlantic, tem afirmado que “as democracias estão perdendo a guerra da propaganda”. Na edição de maio passado, ela lembrou que, “na era soviética, a propaganda comunista pintava um paraíso ao alcance da mão. Hoje, ao contrário, a propaganda antidemocrática procura convencer o Ocidente de que a democracia degenerou de vez, que toda eleição é ilegítima e que a civilização está à beira da morte”. Ninguém contesta o talento da eminente jornalista, mas peço vênia para algumas ressalvas. Opino que, se os Estados Unidos e as demais democracias ocidentais se abrissem completamente à imigração (hipótese fantasiosa, claro), no mínimo metade dos cidadãos que hoje vivem sob o jugo de Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Narendra Modi (Índia) e outros menos votados formariam longas filas nos aeroportos, ansiosos por desembarcar em alguma “democracia degenerada”.

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A questão é simples. A propaganda antidemocrática não sai da cabeça de gente que mal sabe o que vai comer amanhã, de analfabetos, ou de subcidadãos que nunca fizeram uma viagem ao exterior. Ela é produzida pelos dirigentes de países autoritários e pelos exércitos de assessores e publicitários que todo governante tem ao seu dispor.

Voltemos ao Brasil. Penso que as desgraças que corroem nossa sociedade não são propriamente um sentimento de pessimismo, mas uma mescla de três coisas: primeiro, uma observação realista do poço em que nos afundamos; segundo, uma profunda decepção com o que não fizemos em mais de dois séculos como nação independente; terceiro, uma sensação de perplexidade por não conseguirmos compreender a conexão entre os dois pontos precedentes.

A observação pode ser condensada em poucas linhas. No Brasil, um pequeno número de bilionários controla metade da renda e da riqueza; no mínimo, 30% dos cidadãos de mais de 15 anos são analfabetos funcionais; a criminalidade e o crime organizado crescem a toda brida; milionários recusam-se a pagar a anuidade de seus filhos em universidades públicas, mas não abrem mão de um breve séjour anual na Europa.

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A decepção decorre da certeza de que, em última análise, somos um país fácil de governar. Recursos naturais não nos faltam. Não somos um país dividido por dezenas de idiomas oficiais e diversas tribos acidamente belicosas entre si, como ocorre, por exemplo, na África do Sul; e não vivemos (como a Ucrânia) à mercê de vizinhos grosseiramente imperialistas, como a Rússia sempre foi.

Chegamos, assim, à perplexidade. Como compreender que um país facilmente governável permaneça neste estado de miséria e malquerenças políticas estúpidas como a que teve início na eleição presidencial de 2018? Divisões ideológicas por certo não explicam esse fenômeno, pois sabemos que nossos soit-disant líderes políticos trocam de ideologia como quem troca de camisa, ou na mera expectativa de um cargo na administração pública. Penso que a resposta está na leviandade com que mediocrizamos os pilares fundamentais da democracia representativa, principalmente os partidos políticos e o Legislativo. Nessas condições – como observou no início do século o grande pensador Max Weber –, nenhum país é capaz de produzir líderes políticos que mereçam o respeito da sociedade. Atingido esse ponto, é comum surgir, mesmo nas camadas mais esclarecidas de qualquer país, a ilusão do “governo forte”, vale dizer, do populismo, do ditador benévolo, do “cesarismo”.

O maior temor de Max Weber em relação às sociedades modernas era o estiolamento da vida política pelas burocracias. O único antídoto confiável para esse mal seriam, para ele, líderes políticos de envergadura, formados nos embates parlamentares. Políticos que vivessem “para a política”, e não “da política”, ou seja, políticos por vocação, e não meros aproveitadores. Se assim é, na entressafra política que nos assola, temos lamentavelmente fortes motivos para pessimismo.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Alguns dos leitores que me honram com sua atenção consideram como “exagerado” o meu pessimismo sobre o Brasil atual.

Não sei se pessimismo é o termo adequado, mas reconheço a relevância do questionamento, pois, de fato, exageros (pessimistas ou otimistas) comprometem a objetividade de qualquer reflexão sobre as condições da sociedade. Assíduo leitor das publicações diárias, admito que raramente encontro nelas alguma razão para alívio. Um exemplo: na página A8 da edição de 11 do corrente mês, este jornal estampou a seguinte manchete: Com RS em crise, Lula envia texto ao Congresso que eleva salários no STF. Não ficaria chocado se entendesse que os mais altos magistrados vivem como miseráveis, mas esse não me parece ser o caso. Na edição de 16 de maio, na primeira página, o jornal voltou ao tema: No RS, Lula anuncia ajuda federal aos gaúchos com tom de comício. Por aí se vê que nosso principal aspirante a estadista não se preocupa sequer em disfarçar sua sensibilidade meramente eleitoreira.

Claro, o problema não é só brasileiro. Numa vigorosa série de ensaios, a jornalista Anne Applebaum, redatora da revista mensal norte-americana The Atlantic, tem afirmado que “as democracias estão perdendo a guerra da propaganda”. Na edição de maio passado, ela lembrou que, “na era soviética, a propaganda comunista pintava um paraíso ao alcance da mão. Hoje, ao contrário, a propaganda antidemocrática procura convencer o Ocidente de que a democracia degenerou de vez, que toda eleição é ilegítima e que a civilização está à beira da morte”. Ninguém contesta o talento da eminente jornalista, mas peço vênia para algumas ressalvas. Opino que, se os Estados Unidos e as demais democracias ocidentais se abrissem completamente à imigração (hipótese fantasiosa, claro), no mínimo metade dos cidadãos que hoje vivem sob o jugo de Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Narendra Modi (Índia) e outros menos votados formariam longas filas nos aeroportos, ansiosos por desembarcar em alguma “democracia degenerada”.

A questão é simples. A propaganda antidemocrática não sai da cabeça de gente que mal sabe o que vai comer amanhã, de analfabetos, ou de subcidadãos que nunca fizeram uma viagem ao exterior. Ela é produzida pelos dirigentes de países autoritários e pelos exércitos de assessores e publicitários que todo governante tem ao seu dispor.

Voltemos ao Brasil. Penso que as desgraças que corroem nossa sociedade não são propriamente um sentimento de pessimismo, mas uma mescla de três coisas: primeiro, uma observação realista do poço em que nos afundamos; segundo, uma profunda decepção com o que não fizemos em mais de dois séculos como nação independente; terceiro, uma sensação de perplexidade por não conseguirmos compreender a conexão entre os dois pontos precedentes.

A observação pode ser condensada em poucas linhas. No Brasil, um pequeno número de bilionários controla metade da renda e da riqueza; no mínimo, 30% dos cidadãos de mais de 15 anos são analfabetos funcionais; a criminalidade e o crime organizado crescem a toda brida; milionários recusam-se a pagar a anuidade de seus filhos em universidades públicas, mas não abrem mão de um breve séjour anual na Europa.

A decepção decorre da certeza de que, em última análise, somos um país fácil de governar. Recursos naturais não nos faltam. Não somos um país dividido por dezenas de idiomas oficiais e diversas tribos acidamente belicosas entre si, como ocorre, por exemplo, na África do Sul; e não vivemos (como a Ucrânia) à mercê de vizinhos grosseiramente imperialistas, como a Rússia sempre foi.

Chegamos, assim, à perplexidade. Como compreender que um país facilmente governável permaneça neste estado de miséria e malquerenças políticas estúpidas como a que teve início na eleição presidencial de 2018? Divisões ideológicas por certo não explicam esse fenômeno, pois sabemos que nossos soit-disant líderes políticos trocam de ideologia como quem troca de camisa, ou na mera expectativa de um cargo na administração pública. Penso que a resposta está na leviandade com que mediocrizamos os pilares fundamentais da democracia representativa, principalmente os partidos políticos e o Legislativo. Nessas condições – como observou no início do século o grande pensador Max Weber –, nenhum país é capaz de produzir líderes políticos que mereçam o respeito da sociedade. Atingido esse ponto, é comum surgir, mesmo nas camadas mais esclarecidas de qualquer país, a ilusão do “governo forte”, vale dizer, do populismo, do ditador benévolo, do “cesarismo”.

O maior temor de Max Weber em relação às sociedades modernas era o estiolamento da vida política pelas burocracias. O único antídoto confiável para esse mal seriam, para ele, líderes políticos de envergadura, formados nos embates parlamentares. Políticos que vivessem “para a política”, e não “da política”, ou seja, políticos por vocação, e não meros aproveitadores. Se assim é, na entressafra política que nos assola, temos lamentavelmente fortes motivos para pessimismo.

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Alguns dos leitores que me honram com sua atenção consideram como “exagerado” o meu pessimismo sobre o Brasil atual.

Não sei se pessimismo é o termo adequado, mas reconheço a relevância do questionamento, pois, de fato, exageros (pessimistas ou otimistas) comprometem a objetividade de qualquer reflexão sobre as condições da sociedade. Assíduo leitor das publicações diárias, admito que raramente encontro nelas alguma razão para alívio. Um exemplo: na página A8 da edição de 11 do corrente mês, este jornal estampou a seguinte manchete: Com RS em crise, Lula envia texto ao Congresso que eleva salários no STF. Não ficaria chocado se entendesse que os mais altos magistrados vivem como miseráveis, mas esse não me parece ser o caso. Na edição de 16 de maio, na primeira página, o jornal voltou ao tema: No RS, Lula anuncia ajuda federal aos gaúchos com tom de comício. Por aí se vê que nosso principal aspirante a estadista não se preocupa sequer em disfarçar sua sensibilidade meramente eleitoreira.

Claro, o problema não é só brasileiro. Numa vigorosa série de ensaios, a jornalista Anne Applebaum, redatora da revista mensal norte-americana The Atlantic, tem afirmado que “as democracias estão perdendo a guerra da propaganda”. Na edição de maio passado, ela lembrou que, “na era soviética, a propaganda comunista pintava um paraíso ao alcance da mão. Hoje, ao contrário, a propaganda antidemocrática procura convencer o Ocidente de que a democracia degenerou de vez, que toda eleição é ilegítima e que a civilização está à beira da morte”. Ninguém contesta o talento da eminente jornalista, mas peço vênia para algumas ressalvas. Opino que, se os Estados Unidos e as demais democracias ocidentais se abrissem completamente à imigração (hipótese fantasiosa, claro), no mínimo metade dos cidadãos que hoje vivem sob o jugo de Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Narendra Modi (Índia) e outros menos votados formariam longas filas nos aeroportos, ansiosos por desembarcar em alguma “democracia degenerada”.

A questão é simples. A propaganda antidemocrática não sai da cabeça de gente que mal sabe o que vai comer amanhã, de analfabetos, ou de subcidadãos que nunca fizeram uma viagem ao exterior. Ela é produzida pelos dirigentes de países autoritários e pelos exércitos de assessores e publicitários que todo governante tem ao seu dispor.

Voltemos ao Brasil. Penso que as desgraças que corroem nossa sociedade não são propriamente um sentimento de pessimismo, mas uma mescla de três coisas: primeiro, uma observação realista do poço em que nos afundamos; segundo, uma profunda decepção com o que não fizemos em mais de dois séculos como nação independente; terceiro, uma sensação de perplexidade por não conseguirmos compreender a conexão entre os dois pontos precedentes.

A observação pode ser condensada em poucas linhas. No Brasil, um pequeno número de bilionários controla metade da renda e da riqueza; no mínimo, 30% dos cidadãos de mais de 15 anos são analfabetos funcionais; a criminalidade e o crime organizado crescem a toda brida; milionários recusam-se a pagar a anuidade de seus filhos em universidades públicas, mas não abrem mão de um breve séjour anual na Europa.

A decepção decorre da certeza de que, em última análise, somos um país fácil de governar. Recursos naturais não nos faltam. Não somos um país dividido por dezenas de idiomas oficiais e diversas tribos acidamente belicosas entre si, como ocorre, por exemplo, na África do Sul; e não vivemos (como a Ucrânia) à mercê de vizinhos grosseiramente imperialistas, como a Rússia sempre foi.

Chegamos, assim, à perplexidade. Como compreender que um país facilmente governável permaneça neste estado de miséria e malquerenças políticas estúpidas como a que teve início na eleição presidencial de 2018? Divisões ideológicas por certo não explicam esse fenômeno, pois sabemos que nossos soit-disant líderes políticos trocam de ideologia como quem troca de camisa, ou na mera expectativa de um cargo na administração pública. Penso que a resposta está na leviandade com que mediocrizamos os pilares fundamentais da democracia representativa, principalmente os partidos políticos e o Legislativo. Nessas condições – como observou no início do século o grande pensador Max Weber –, nenhum país é capaz de produzir líderes políticos que mereçam o respeito da sociedade. Atingido esse ponto, é comum surgir, mesmo nas camadas mais esclarecidas de qualquer país, a ilusão do “governo forte”, vale dizer, do populismo, do ditador benévolo, do “cesarismo”.

O maior temor de Max Weber em relação às sociedades modernas era o estiolamento da vida política pelas burocracias. O único antídoto confiável para esse mal seriam, para ele, líderes políticos de envergadura, formados nos embates parlamentares. Políticos que vivessem “para a política”, e não “da política”, ou seja, políticos por vocação, e não meros aproveitadores. Se assim é, na entressafra política que nos assola, temos lamentavelmente fortes motivos para pessimismo.

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Alguns dos leitores que me honram com sua atenção consideram como “exagerado” o meu pessimismo sobre o Brasil atual.

Não sei se pessimismo é o termo adequado, mas reconheço a relevância do questionamento, pois, de fato, exageros (pessimistas ou otimistas) comprometem a objetividade de qualquer reflexão sobre as condições da sociedade. Assíduo leitor das publicações diárias, admito que raramente encontro nelas alguma razão para alívio. Um exemplo: na página A8 da edição de 11 do corrente mês, este jornal estampou a seguinte manchete: Com RS em crise, Lula envia texto ao Congresso que eleva salários no STF. Não ficaria chocado se entendesse que os mais altos magistrados vivem como miseráveis, mas esse não me parece ser o caso. Na edição de 16 de maio, na primeira página, o jornal voltou ao tema: No RS, Lula anuncia ajuda federal aos gaúchos com tom de comício. Por aí se vê que nosso principal aspirante a estadista não se preocupa sequer em disfarçar sua sensibilidade meramente eleitoreira.

Claro, o problema não é só brasileiro. Numa vigorosa série de ensaios, a jornalista Anne Applebaum, redatora da revista mensal norte-americana The Atlantic, tem afirmado que “as democracias estão perdendo a guerra da propaganda”. Na edição de maio passado, ela lembrou que, “na era soviética, a propaganda comunista pintava um paraíso ao alcance da mão. Hoje, ao contrário, a propaganda antidemocrática procura convencer o Ocidente de que a democracia degenerou de vez, que toda eleição é ilegítima e que a civilização está à beira da morte”. Ninguém contesta o talento da eminente jornalista, mas peço vênia para algumas ressalvas. Opino que, se os Estados Unidos e as demais democracias ocidentais se abrissem completamente à imigração (hipótese fantasiosa, claro), no mínimo metade dos cidadãos que hoje vivem sob o jugo de Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Narendra Modi (Índia) e outros menos votados formariam longas filas nos aeroportos, ansiosos por desembarcar em alguma “democracia degenerada”.

A questão é simples. A propaganda antidemocrática não sai da cabeça de gente que mal sabe o que vai comer amanhã, de analfabetos, ou de subcidadãos que nunca fizeram uma viagem ao exterior. Ela é produzida pelos dirigentes de países autoritários e pelos exércitos de assessores e publicitários que todo governante tem ao seu dispor.

Voltemos ao Brasil. Penso que as desgraças que corroem nossa sociedade não são propriamente um sentimento de pessimismo, mas uma mescla de três coisas: primeiro, uma observação realista do poço em que nos afundamos; segundo, uma profunda decepção com o que não fizemos em mais de dois séculos como nação independente; terceiro, uma sensação de perplexidade por não conseguirmos compreender a conexão entre os dois pontos precedentes.

A observação pode ser condensada em poucas linhas. No Brasil, um pequeno número de bilionários controla metade da renda e da riqueza; no mínimo, 30% dos cidadãos de mais de 15 anos são analfabetos funcionais; a criminalidade e o crime organizado crescem a toda brida; milionários recusam-se a pagar a anuidade de seus filhos em universidades públicas, mas não abrem mão de um breve séjour anual na Europa.

A decepção decorre da certeza de que, em última análise, somos um país fácil de governar. Recursos naturais não nos faltam. Não somos um país dividido por dezenas de idiomas oficiais e diversas tribos acidamente belicosas entre si, como ocorre, por exemplo, na África do Sul; e não vivemos (como a Ucrânia) à mercê de vizinhos grosseiramente imperialistas, como a Rússia sempre foi.

Chegamos, assim, à perplexidade. Como compreender que um país facilmente governável permaneça neste estado de miséria e malquerenças políticas estúpidas como a que teve início na eleição presidencial de 2018? Divisões ideológicas por certo não explicam esse fenômeno, pois sabemos que nossos soit-disant líderes políticos trocam de ideologia como quem troca de camisa, ou na mera expectativa de um cargo na administração pública. Penso que a resposta está na leviandade com que mediocrizamos os pilares fundamentais da democracia representativa, principalmente os partidos políticos e o Legislativo. Nessas condições – como observou no início do século o grande pensador Max Weber –, nenhum país é capaz de produzir líderes políticos que mereçam o respeito da sociedade. Atingido esse ponto, é comum surgir, mesmo nas camadas mais esclarecidas de qualquer país, a ilusão do “governo forte”, vale dizer, do populismo, do ditador benévolo, do “cesarismo”.

O maior temor de Max Weber em relação às sociedades modernas era o estiolamento da vida política pelas burocracias. O único antídoto confiável para esse mal seriam, para ele, líderes políticos de envergadura, formados nos embates parlamentares. Políticos que vivessem “para a política”, e não “da política”, ou seja, políticos por vocação, e não meros aproveitadores. Se assim é, na entressafra política que nos assola, temos lamentavelmente fortes motivos para pessimismo.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Alguns dos leitores que me honram com sua atenção consideram como “exagerado” o meu pessimismo sobre o Brasil atual.

Não sei se pessimismo é o termo adequado, mas reconheço a relevância do questionamento, pois, de fato, exageros (pessimistas ou otimistas) comprometem a objetividade de qualquer reflexão sobre as condições da sociedade. Assíduo leitor das publicações diárias, admito que raramente encontro nelas alguma razão para alívio. Um exemplo: na página A8 da edição de 11 do corrente mês, este jornal estampou a seguinte manchete: Com RS em crise, Lula envia texto ao Congresso que eleva salários no STF. Não ficaria chocado se entendesse que os mais altos magistrados vivem como miseráveis, mas esse não me parece ser o caso. Na edição de 16 de maio, na primeira página, o jornal voltou ao tema: No RS, Lula anuncia ajuda federal aos gaúchos com tom de comício. Por aí se vê que nosso principal aspirante a estadista não se preocupa sequer em disfarçar sua sensibilidade meramente eleitoreira.

Claro, o problema não é só brasileiro. Numa vigorosa série de ensaios, a jornalista Anne Applebaum, redatora da revista mensal norte-americana The Atlantic, tem afirmado que “as democracias estão perdendo a guerra da propaganda”. Na edição de maio passado, ela lembrou que, “na era soviética, a propaganda comunista pintava um paraíso ao alcance da mão. Hoje, ao contrário, a propaganda antidemocrática procura convencer o Ocidente de que a democracia degenerou de vez, que toda eleição é ilegítima e que a civilização está à beira da morte”. Ninguém contesta o talento da eminente jornalista, mas peço vênia para algumas ressalvas. Opino que, se os Estados Unidos e as demais democracias ocidentais se abrissem completamente à imigração (hipótese fantasiosa, claro), no mínimo metade dos cidadãos que hoje vivem sob o jugo de Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Narendra Modi (Índia) e outros menos votados formariam longas filas nos aeroportos, ansiosos por desembarcar em alguma “democracia degenerada”.

A questão é simples. A propaganda antidemocrática não sai da cabeça de gente que mal sabe o que vai comer amanhã, de analfabetos, ou de subcidadãos que nunca fizeram uma viagem ao exterior. Ela é produzida pelos dirigentes de países autoritários e pelos exércitos de assessores e publicitários que todo governante tem ao seu dispor.

Voltemos ao Brasil. Penso que as desgraças que corroem nossa sociedade não são propriamente um sentimento de pessimismo, mas uma mescla de três coisas: primeiro, uma observação realista do poço em que nos afundamos; segundo, uma profunda decepção com o que não fizemos em mais de dois séculos como nação independente; terceiro, uma sensação de perplexidade por não conseguirmos compreender a conexão entre os dois pontos precedentes.

A observação pode ser condensada em poucas linhas. No Brasil, um pequeno número de bilionários controla metade da renda e da riqueza; no mínimo, 30% dos cidadãos de mais de 15 anos são analfabetos funcionais; a criminalidade e o crime organizado crescem a toda brida; milionários recusam-se a pagar a anuidade de seus filhos em universidades públicas, mas não abrem mão de um breve séjour anual na Europa.

A decepção decorre da certeza de que, em última análise, somos um país fácil de governar. Recursos naturais não nos faltam. Não somos um país dividido por dezenas de idiomas oficiais e diversas tribos acidamente belicosas entre si, como ocorre, por exemplo, na África do Sul; e não vivemos (como a Ucrânia) à mercê de vizinhos grosseiramente imperialistas, como a Rússia sempre foi.

Chegamos, assim, à perplexidade. Como compreender que um país facilmente governável permaneça neste estado de miséria e malquerenças políticas estúpidas como a que teve início na eleição presidencial de 2018? Divisões ideológicas por certo não explicam esse fenômeno, pois sabemos que nossos soit-disant líderes políticos trocam de ideologia como quem troca de camisa, ou na mera expectativa de um cargo na administração pública. Penso que a resposta está na leviandade com que mediocrizamos os pilares fundamentais da democracia representativa, principalmente os partidos políticos e o Legislativo. Nessas condições – como observou no início do século o grande pensador Max Weber –, nenhum país é capaz de produzir líderes políticos que mereçam o respeito da sociedade. Atingido esse ponto, é comum surgir, mesmo nas camadas mais esclarecidas de qualquer país, a ilusão do “governo forte”, vale dizer, do populismo, do ditador benévolo, do “cesarismo”.

O maior temor de Max Weber em relação às sociedades modernas era o estiolamento da vida política pelas burocracias. O único antídoto confiável para esse mal seriam, para ele, líderes políticos de envergadura, formados nos embates parlamentares. Políticos que vivessem “para a política”, e não “da política”, ou seja, políticos por vocação, e não meros aproveitadores. Se assim é, na entressafra política que nos assola, temos lamentavelmente fortes motivos para pessimismo.

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