O Brasil, como sabemos, é um país onde qualquer coisa pode acontecer – inclusive nada.
Este ano começou com um rotundo nada. Ou, se preferem, com um pouco menos que nada. No que diz respeito ao Orçamento, começamos com um déficit de R$ 232 bilhões, dos quais R$ 57 bilhões se referem às chamadas “emendas parlamentares”. Para quem, como nós, já está acostumado, não é grande coisa. Ou, por outra, é grande coisa porque estamos falando só deste ano – ano eleitoral, não custa lembrar. No início do próximo ano, Brasília estará se contorcendo como sempre, na esperança de promover um empate entre a arrecadação e a despesa. Tentando pensar num prazo mais longo – 15 anos, digamos –, o que temos, por enquanto, é uma célebre inspiração literária: “o futuro a Deus pertence”.
Em relação a investimentos, outro dia várias montadoras de veículos anunciaram seus planos. O CEO da Volkswagen resumiu com gentileza e precisão o que já esperávamos. “Investimentos – ele declarou – sempre acontecem, o que varia é o montante, sempre sujeito a circunstâncias”. Noves fora, o que a imprensa informou foi que, quando todas elas catarem o que resta no fundo das gavetas, para nós sobrarão US$ 25 bilhões, um pouco mais ou um pouco menos.
Mais excitante é o teatro de operações de Brasília. No Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Dias Toffoli, suponho que num assomo de caridade, sustou as multas bilionárias que a J&F e a Odebrecht já haviam concordado em pagar. Criticado por tal decisão por uma ONG internacional que o citou nominalmente, mandou investigá-la. E nós, cá da planície, não dispondo sequer de algo parecido com o ombudsman sueco, não temos um caminho seguro para solicitar a Sua Excelência uma maior transparência no tocante à sua própria movimentação patrimonial. Escarafunchei o noticiário, mas não consegui saber se o ministro suscitou junto ao CEO da Odebrecht aquela antiga questão do “departamento de operações estruturadas”. Terá sido desestruturado?
Tenho para mim que o grande problema brasileiro é não termos no Congresso Nacional uma sólida espinha vertebral, ou seja, um grande partido de centro, sério, competente e de orientação liberal. Daí a confusão em que nossos mais de 150 milhões de eleitores se encontram. Não percebendo que se trata efetivamente de uma carência, muitos julgam haver discernido tal partido quando vêm aquela chusma de siglas, qual mariposas, girando em torno de uma grande forma ameboide, mantendo-se junto a ela quando há interesses comuns, geralmente relacionados a verbas ou empregos para apaniguados na máquina pública.
Tempos atrás, era comum dizer que o “governo forte”, propiciado pelo sistema presidencial de governo, e um presidente talentoso como Lula cedo ou tarde dariam um jeito neste quadro. Já estamos no tarde, mas patinando, rodopiando, sem encontrar a porta de saída. Em nossa amebina estrutura partidária, nem Lula, nem Gengis Khan, nem Xi Jinping serão capazes de operar esse milagre. Essa afirmação tem respaldo em três esteios indiscutíveis:
1) o próprio sistema presidencial de governo, cuja congênita disfuncionalidade atualmente se evidencia de uma forma grotesca até nos Estados Unidos;
2) a aversão de nossos representantes eletivos e de grande parte das camadas altas, que poderiam atuar de fora para dentro, formando uma contraelite, um muro de arrimo capaz de escorar e balizar a pororoca entre Executivo e Legislativo que presenciamos diariamente em Brasília – mas esse potencial de uma elite de fora para dentro, convenhamos, além de exíguo, aprendeu o catecismo pelo “venha a nós o vosso reino”;
3) a ignorância no que diz respeito a alternativas institucionais viáveis. Certa vez, ouvi de um renomado ex-presidente latino-americano algo que já li em centenas de fontes: nós, latino-americanos, precisamos ter na presidência um verdadeiro chefe, porque somos todos descendentes de antigos chefes indígenas e por isso temos em nosso inconsciente coletivo a marca indelével de tal anseio. Outro dia, o próprio deputado Arthur Lira (PP-Alagoas), homem presumivelmente culto e experiente, trouxe à baila a ideia de importarmos o “semipresidencialismo francês”, deslembrado, suponho, da trágica experiência de 1961, quando improvisamos algo parecido para evitar um conflito grave, após a renúncia do desmiolado sr. Jânio Quadros.
Em tal sistema, um chefe de governo incapaz de formar maioria na Câmara se depara a todo momento com as alternativas de nada fazer ou de requerer ao presidente (chefe de Estado) a dissolução da Câmara e a convocação de novas eleições dentro de um breve período. Formar uma maioria coesa no Congresso ameboide a que anteriormente me referi é obviamente um conto da carochinha. Nunca é demais lembrar o caso da Alemanha em 1932. Confrontado com tal dilema, o presidente Marechal von Hidenburg foi obrigado a dissolver o Reichstag cinco vezes em um ano e a realizar eleições a prazos curtíssimos. Escusado dizer que cada uma delas agravou o problema subjacente e facilitou a ascensão ao poder do sr. Adolfo.
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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS