Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Reflexões à margem de uma crise anunciada


Não estranha havermos chegado a uma estrutura disfuncional, incompatível com uma boa gestão das contas públicas e irrelevante na função de representar os cidadãos

Por Bolívar Lamounier

O Brasil nunca teve, não tem e nada sugere que venha a ter uma estrutura de partidos consistente e confiável.

Acrescente-se que, na situação em que nos encontramos, é imperativo contextualizar essa questão no quadro da séria crise com que nos iremos deparar num horizonte de 15 ou 20 anos. Comecemos, então, pelos partidos políticos. Aqui, o que interessa não é o simples número de siglas, mas esse número ponderado pelo número de assentos que cada uma delas detém na Câmara federal. É sabido que nossos maiores partidos nunca ultrapassam 20% do número de assentos. Desse ponto de vista, estamos tratando do grau de fragmentação da estrutura partidária, e ninguém contesta que a nossa é uma das mais fragmentadas do mundo. Daí decorre que o Executivo só consegue o apoio da maioria recorrendo deslavadamente ao clientelismo e ao contorcionismo fiscal para fechar anualmente as contas públicas.

Escusado acrescentar que o acoplamento de tal maçaroca partidária ao sistema presidencialista de governo não tem como chegar a bom porto. Escrevendo em 1983 – na era pré-Donald Trump, portanto –, mestre Maurice Duverger sentenciou que o sistema presidencial de governo “só funcionava a contento nos Estados Unidos”; noutros países, “ele sempre descambou para o presidencialismo, ou seja, para a ditadura”.

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Outro ponto essencial a ressaltar sobre a vida partidária brasileira é o de que, entre nós, a debilidade tem se manifestado não apenas no âmbito de um ou de uns poucos partidos, mas nas próprias estruturas que se sucederam ao longo da História. A República dissolveu os partidos do Segundo Reinado; a Revolução de 1930 agiu da mesma forma em relação aos partidos “republicanos” (regimes estaduais de partido único) da Primeira República; o golpe militar de 1964 substituiu os partidos originários da Constituição de 1946 pelo bipartidarismo compulsório (Arena x MDB) de 1965 até a reforma de 1979. Os constituintes de 1988 fizeram pior: abriram a porteira para a boiada passar.

É igualmente necessário lembrar que nosso sistema eleitoral combina o princípio da proporcionalidade com o voto em candidatos individuais, contrariando assim, em sua essência, a lógica dos sistemas proporcionais, que é a de estimular a formação de partidos lastreados em princípios doutrinários. Não estranha, pois, o fato de havermos chegado a uma estrutura disfuncional, incompatível com uma boa gestão das contas públicas e irrelevante na função de representar as preferências dos cidadãos. Por ignorância ou cinismo, recorremos, ano após ano, à lenga-lenga da reforma política e à panaceia do “semipresidencialismo” de inspiração francesa. Este ponto requer uma reflexão pausada.

Pior que o soneto foi a emenda de 1961. Naquele ano, como se recorda, a desastrada renúncia do presidente Jânio Quadros deu ensejo a uma igualmente desastrada ação dos ministros militares com o objetivo de impedir a posse do sr. João Goulart, legitimamente eleito para a Vice-Presidência. Recorreu-se então ao “semipresidencialismo”, com os resultados que se poderia prever, inclusive o golpe militar de 1964.

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No Brasil, a discussão sobre uma possível transição ao sistema parlamentarista invariavelmente desemboca em dois disparates. Um, o de que somos psicologicamente dependentes de “governos fortes”, ergo do presidencialismo. Outro, o de que os plebiscitos de 1961 e 1963 desqualificaram ad aeternum tal discussão. Excogitações medíocres demais até para um país que até hoje pouco fez para merecer coisa melhor.

Dá-se, entretanto, que o tempo (e a economia) não para.

Sabemos que, devido à “armadilha do baixo crescimento”, mesmo com o Produto Interno Bruto (PIB) crescendo 3% ao ano, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa pífia renda anual por habitante, e muito mais que isso para superar nossos obscenos índices de desigualdade social. Que fazer, então? Uma reforma política séria? Hipótese, como sabemos, de quase impossível execução. Os constituintes de 1988 produziram uma Carta virtualmente irreformável, a começar pela exigência de convocação do “poder constituinte originário”, vale dizer, de uma nova Assembleia Constituinte.

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Óbvio, portanto, que uma solução plausível terá que emergir de fora para dentro e não de dentro para fora da atual mecânica institucional. Precisará resultar de uma participação muito mais intensa – e ao mesmo tempo moderada, regular e lúcida –, da parte de todos aqueles que detêm recursos para tanto (recursos pecuniários, vocação de liderança e até mesmo disponibilidade de tempo para participar da vida pública). Falo de uma ação análoga à perestroika de Gorbachev, que, ao suspender a censura e o controle das comunicações pelo Partido Comunista da União Soviética, quase chegou a criar uma opinião pública dentro da milenária autocracia russa.

É plausível supor que a entrada efetiva de mais 10% (cerca de 15 milhões de eleitores) no sistema político poderia escorar adequadamente a conduta das instituições formais de governo, provendo-lhes o indispensável balizamento e controlando seus eventuais desatinos.

*

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O Brasil nunca teve, não tem e nada sugere que venha a ter uma estrutura de partidos consistente e confiável.

Acrescente-se que, na situação em que nos encontramos, é imperativo contextualizar essa questão no quadro da séria crise com que nos iremos deparar num horizonte de 15 ou 20 anos. Comecemos, então, pelos partidos políticos. Aqui, o que interessa não é o simples número de siglas, mas esse número ponderado pelo número de assentos que cada uma delas detém na Câmara federal. É sabido que nossos maiores partidos nunca ultrapassam 20% do número de assentos. Desse ponto de vista, estamos tratando do grau de fragmentação da estrutura partidária, e ninguém contesta que a nossa é uma das mais fragmentadas do mundo. Daí decorre que o Executivo só consegue o apoio da maioria recorrendo deslavadamente ao clientelismo e ao contorcionismo fiscal para fechar anualmente as contas públicas.

Escusado acrescentar que o acoplamento de tal maçaroca partidária ao sistema presidencialista de governo não tem como chegar a bom porto. Escrevendo em 1983 – na era pré-Donald Trump, portanto –, mestre Maurice Duverger sentenciou que o sistema presidencial de governo “só funcionava a contento nos Estados Unidos”; noutros países, “ele sempre descambou para o presidencialismo, ou seja, para a ditadura”.

Outro ponto essencial a ressaltar sobre a vida partidária brasileira é o de que, entre nós, a debilidade tem se manifestado não apenas no âmbito de um ou de uns poucos partidos, mas nas próprias estruturas que se sucederam ao longo da História. A República dissolveu os partidos do Segundo Reinado; a Revolução de 1930 agiu da mesma forma em relação aos partidos “republicanos” (regimes estaduais de partido único) da Primeira República; o golpe militar de 1964 substituiu os partidos originários da Constituição de 1946 pelo bipartidarismo compulsório (Arena x MDB) de 1965 até a reforma de 1979. Os constituintes de 1988 fizeram pior: abriram a porteira para a boiada passar.

É igualmente necessário lembrar que nosso sistema eleitoral combina o princípio da proporcionalidade com o voto em candidatos individuais, contrariando assim, em sua essência, a lógica dos sistemas proporcionais, que é a de estimular a formação de partidos lastreados em princípios doutrinários. Não estranha, pois, o fato de havermos chegado a uma estrutura disfuncional, incompatível com uma boa gestão das contas públicas e irrelevante na função de representar as preferências dos cidadãos. Por ignorância ou cinismo, recorremos, ano após ano, à lenga-lenga da reforma política e à panaceia do “semipresidencialismo” de inspiração francesa. Este ponto requer uma reflexão pausada.

Pior que o soneto foi a emenda de 1961. Naquele ano, como se recorda, a desastrada renúncia do presidente Jânio Quadros deu ensejo a uma igualmente desastrada ação dos ministros militares com o objetivo de impedir a posse do sr. João Goulart, legitimamente eleito para a Vice-Presidência. Recorreu-se então ao “semipresidencialismo”, com os resultados que se poderia prever, inclusive o golpe militar de 1964.

No Brasil, a discussão sobre uma possível transição ao sistema parlamentarista invariavelmente desemboca em dois disparates. Um, o de que somos psicologicamente dependentes de “governos fortes”, ergo do presidencialismo. Outro, o de que os plebiscitos de 1961 e 1963 desqualificaram ad aeternum tal discussão. Excogitações medíocres demais até para um país que até hoje pouco fez para merecer coisa melhor.

Dá-se, entretanto, que o tempo (e a economia) não para.

Sabemos que, devido à “armadilha do baixo crescimento”, mesmo com o Produto Interno Bruto (PIB) crescendo 3% ao ano, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa pífia renda anual por habitante, e muito mais que isso para superar nossos obscenos índices de desigualdade social. Que fazer, então? Uma reforma política séria? Hipótese, como sabemos, de quase impossível execução. Os constituintes de 1988 produziram uma Carta virtualmente irreformável, a começar pela exigência de convocação do “poder constituinte originário”, vale dizer, de uma nova Assembleia Constituinte.

Óbvio, portanto, que uma solução plausível terá que emergir de fora para dentro e não de dentro para fora da atual mecânica institucional. Precisará resultar de uma participação muito mais intensa – e ao mesmo tempo moderada, regular e lúcida –, da parte de todos aqueles que detêm recursos para tanto (recursos pecuniários, vocação de liderança e até mesmo disponibilidade de tempo para participar da vida pública). Falo de uma ação análoga à perestroika de Gorbachev, que, ao suspender a censura e o controle das comunicações pelo Partido Comunista da União Soviética, quase chegou a criar uma opinião pública dentro da milenária autocracia russa.

É plausível supor que a entrada efetiva de mais 10% (cerca de 15 milhões de eleitores) no sistema político poderia escorar adequadamente a conduta das instituições formais de governo, provendo-lhes o indispensável balizamento e controlando seus eventuais desatinos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O Brasil nunca teve, não tem e nada sugere que venha a ter uma estrutura de partidos consistente e confiável.

Acrescente-se que, na situação em que nos encontramos, é imperativo contextualizar essa questão no quadro da séria crise com que nos iremos deparar num horizonte de 15 ou 20 anos. Comecemos, então, pelos partidos políticos. Aqui, o que interessa não é o simples número de siglas, mas esse número ponderado pelo número de assentos que cada uma delas detém na Câmara federal. É sabido que nossos maiores partidos nunca ultrapassam 20% do número de assentos. Desse ponto de vista, estamos tratando do grau de fragmentação da estrutura partidária, e ninguém contesta que a nossa é uma das mais fragmentadas do mundo. Daí decorre que o Executivo só consegue o apoio da maioria recorrendo deslavadamente ao clientelismo e ao contorcionismo fiscal para fechar anualmente as contas públicas.

Escusado acrescentar que o acoplamento de tal maçaroca partidária ao sistema presidencialista de governo não tem como chegar a bom porto. Escrevendo em 1983 – na era pré-Donald Trump, portanto –, mestre Maurice Duverger sentenciou que o sistema presidencial de governo “só funcionava a contento nos Estados Unidos”; noutros países, “ele sempre descambou para o presidencialismo, ou seja, para a ditadura”.

Outro ponto essencial a ressaltar sobre a vida partidária brasileira é o de que, entre nós, a debilidade tem se manifestado não apenas no âmbito de um ou de uns poucos partidos, mas nas próprias estruturas que se sucederam ao longo da História. A República dissolveu os partidos do Segundo Reinado; a Revolução de 1930 agiu da mesma forma em relação aos partidos “republicanos” (regimes estaduais de partido único) da Primeira República; o golpe militar de 1964 substituiu os partidos originários da Constituição de 1946 pelo bipartidarismo compulsório (Arena x MDB) de 1965 até a reforma de 1979. Os constituintes de 1988 fizeram pior: abriram a porteira para a boiada passar.

É igualmente necessário lembrar que nosso sistema eleitoral combina o princípio da proporcionalidade com o voto em candidatos individuais, contrariando assim, em sua essência, a lógica dos sistemas proporcionais, que é a de estimular a formação de partidos lastreados em princípios doutrinários. Não estranha, pois, o fato de havermos chegado a uma estrutura disfuncional, incompatível com uma boa gestão das contas públicas e irrelevante na função de representar as preferências dos cidadãos. Por ignorância ou cinismo, recorremos, ano após ano, à lenga-lenga da reforma política e à panaceia do “semipresidencialismo” de inspiração francesa. Este ponto requer uma reflexão pausada.

Pior que o soneto foi a emenda de 1961. Naquele ano, como se recorda, a desastrada renúncia do presidente Jânio Quadros deu ensejo a uma igualmente desastrada ação dos ministros militares com o objetivo de impedir a posse do sr. João Goulart, legitimamente eleito para a Vice-Presidência. Recorreu-se então ao “semipresidencialismo”, com os resultados que se poderia prever, inclusive o golpe militar de 1964.

No Brasil, a discussão sobre uma possível transição ao sistema parlamentarista invariavelmente desemboca em dois disparates. Um, o de que somos psicologicamente dependentes de “governos fortes”, ergo do presidencialismo. Outro, o de que os plebiscitos de 1961 e 1963 desqualificaram ad aeternum tal discussão. Excogitações medíocres demais até para um país que até hoje pouco fez para merecer coisa melhor.

Dá-se, entretanto, que o tempo (e a economia) não para.

Sabemos que, devido à “armadilha do baixo crescimento”, mesmo com o Produto Interno Bruto (PIB) crescendo 3% ao ano, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa pífia renda anual por habitante, e muito mais que isso para superar nossos obscenos índices de desigualdade social. Que fazer, então? Uma reforma política séria? Hipótese, como sabemos, de quase impossível execução. Os constituintes de 1988 produziram uma Carta virtualmente irreformável, a começar pela exigência de convocação do “poder constituinte originário”, vale dizer, de uma nova Assembleia Constituinte.

Óbvio, portanto, que uma solução plausível terá que emergir de fora para dentro e não de dentro para fora da atual mecânica institucional. Precisará resultar de uma participação muito mais intensa – e ao mesmo tempo moderada, regular e lúcida –, da parte de todos aqueles que detêm recursos para tanto (recursos pecuniários, vocação de liderança e até mesmo disponibilidade de tempo para participar da vida pública). Falo de uma ação análoga à perestroika de Gorbachev, que, ao suspender a censura e o controle das comunicações pelo Partido Comunista da União Soviética, quase chegou a criar uma opinião pública dentro da milenária autocracia russa.

É plausível supor que a entrada efetiva de mais 10% (cerca de 15 milhões de eleitores) no sistema político poderia escorar adequadamente a conduta das instituições formais de governo, provendo-lhes o indispensável balizamento e controlando seus eventuais desatinos.

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