Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Três vezes Brasil


O País hoje: uma mediocridade política só comparável, no passado, às ‘ditaduras estaduais’, uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte e uma sociedade desordeira

Por Bolívar Lamounier

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

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A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse. “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazer-político, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, ex-escravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

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E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos.

*

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse. “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazer-político, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, ex-escravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse. “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazer-político, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, ex-escravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse. “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazer-político, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, ex-escravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse. “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazer-político, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, ex-escravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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