Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, Bolívar Lamounier escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Um espelho para Maduro


A diferença entre a transição da África do Sul e a estupidez em que os adeptos de Maduro insistem em permanecer é que a elite sul-africana assimilou uma noção racional de política

Por Bolívar Lamounier

A política brasileira não chega a ser um brilho, mas nela o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, encontraria um roteiro bem melhor do que o que vem seguindo para sair de sua enrascada.

O Brasil, após 21 anos, soube equacionar uma saída para o ciclo militar iniciado em 1964. Foi o que se pode apropriadamente denominar uma “abertura pela via eleitoral”. De eleição em eleição, à frente de oposições agrupadas no então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), encantoou e venceu a candidatura apoiada pelos militares no Colégio Eleitoral, geringonça que eles haviam montado logo no início justamente para impedir que um oposicionista chegasse à Presidência da República. Justiça lhes seja feita, eles foram sábios em três pontos cruciais: 1) preservaram em linhas gerais o processo eleitoral, mesmo tendo-o manipulado diversas vezes e de diversas maneiras; 2) reconheceram a legitimidade dos votos oposicionistas; 3) aceitaram a vitória final de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf na contenda de janeiro de 1985.

Parece fora de dúvida que uma chance como essa Maduro já perdeu. Deixou passar a hora. Creio mesmo que a sinuca em que se meteu deve-se à relação que estabeleceu com os militares. Comprando-os no atacado e no varejo, tornou-se refém deles. Agora estão todos no mesmo barco.

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Mas, para sorte deles, se tiverem juízo, há uma saída muito melhor. Refiro-me à democratização e ao fim do apartheid na África do Sul. Após várias décadas da mais desvairada opressão e matanças sem fim, os dois esteios do racismo (os brancos descendentes de ingleses e os afrikaners, descendentes dos holandeses) começaram a cair na real. Foram se dando conta de que o apartheid seria derrubado. E de que Nelson Mandela, preso havia 27 anos, cedo ou tarde assumiria a presidência da república mediante eleições limpas e livres. O que tinham de si não era um simples partido eleitoral como o MDB, é bem verdade que conduzido por líderes lúcidos, hábeis e pacientes, mas uma vasta frente que já os enfrentara no terreno das armas, e não hesitaria em o fazer novamente. Sabiam que seu país, uma nação potencialmente rica e culta, tornara-se um pária internacional.

Foi então que, em 1990, ao tomar posse na presidência, dirigindo-se a um plenário quase exclusivamente ocupado pelos ex-ingleses e afrikaners, Frederik de Klerk tomou uma decisão histórica. Livrando-se pura e simplesmente do passado racista de sua família, engatou um discurso de 45 minutos, decidido a transformar o país de alto a baixo. Disse, sem gaguejar, que no dia seguinte não haveria mais apartheid. Todos os sul-africanos, membros de uma mesma nação, estariam livres para ir aonde quisessem, sem qualquer restrição. Que todos, como cidadãos iguais que passariam a ser, estariam aptos a votar. E que Nelson Mandela seria imediatamente libertado.

Contada assim, a história parece simples. Tive o privilégio de visitar o país em diversas ocasiões, a primeira uns 20 dias antes da eleição de Mandela. Como sempre fazia em minhas andanças, logo ao chegar ao hotel tirei o paletó e a gravata, desci e chamei um táxi. Disse ao motorista que queria ir ao Soweto, a enorme e temida favela de Johannesburgo. “O senhor tem noção do que está falando?”, ele me perguntou. Respondi que sim, tinha plena ciência de meu objetivo, e continuei: “Por falar nisso, como o senhor está vendo a situação política?”. A réplica dele não poderia ter sido mais concisa: “É eleição ou guerra civil”.

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A dificuldade principal era o sr. Mangosuthu Buthelezi, adversário figadal de Mandela e chefe tribal da província de KwaZulu-Natal, historicamente ocupada pelos zulus, situada na parte sul do litoral do Oceano Índico. Mandela insistia na participação de todos os partidos, para assegurar o máximo possível de legitimidade para o pleito. Buthelezi recusava-se a inscrever seu partido, o Inkatha. O impasse persistiu até a antevéspera da eleição. Quando Buthelezi finalmente assentiu, 80 milhões de cédulas já estavam impressas. A Justiça decidiu que o processo seria válido se uma etiqueta com a sigla Inkatha fosse anexada à cédula oficial. E assim se fez. Em três dias, etiquetas produzidas no mais absoluto improviso foram anexadas às cédulas oficiais. Essa, sem dúvida, foi a mais brilhante das transições de regimes autoritários para democracias no século 20.

A diferença entre a transição efetivada pelos sul-africanos e a estupidez em que os venezuelanos adeptos de Maduro insistem em permanecer por certo não se deve a razões naturais ou transcendentais. Não aconteceu não por que os sul-africanos sejam anjos e os venezuelanos tenham parte com o demônio. Não, nada disso. A razão, evidentemente, é que a elite sul-africana assimilou uma noção racional de política. Esta, numa definição concisa, é o empenho dos líderes em equacionar os problemas e conflitos da sociedade com o mínimo possível de violência. A obsessão pela violência não é política; é guerra civil ou genocídio. Essa distinção parece nunca ter passado pela cabeça de Maduro ou pela de seu antecessor, Hugo Chávez.

*

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A política brasileira não chega a ser um brilho, mas nela o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, encontraria um roteiro bem melhor do que o que vem seguindo para sair de sua enrascada.

O Brasil, após 21 anos, soube equacionar uma saída para o ciclo militar iniciado em 1964. Foi o que se pode apropriadamente denominar uma “abertura pela via eleitoral”. De eleição em eleição, à frente de oposições agrupadas no então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), encantoou e venceu a candidatura apoiada pelos militares no Colégio Eleitoral, geringonça que eles haviam montado logo no início justamente para impedir que um oposicionista chegasse à Presidência da República. Justiça lhes seja feita, eles foram sábios em três pontos cruciais: 1) preservaram em linhas gerais o processo eleitoral, mesmo tendo-o manipulado diversas vezes e de diversas maneiras; 2) reconheceram a legitimidade dos votos oposicionistas; 3) aceitaram a vitória final de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf na contenda de janeiro de 1985.

Parece fora de dúvida que uma chance como essa Maduro já perdeu. Deixou passar a hora. Creio mesmo que a sinuca em que se meteu deve-se à relação que estabeleceu com os militares. Comprando-os no atacado e no varejo, tornou-se refém deles. Agora estão todos no mesmo barco.

Mas, para sorte deles, se tiverem juízo, há uma saída muito melhor. Refiro-me à democratização e ao fim do apartheid na África do Sul. Após várias décadas da mais desvairada opressão e matanças sem fim, os dois esteios do racismo (os brancos descendentes de ingleses e os afrikaners, descendentes dos holandeses) começaram a cair na real. Foram se dando conta de que o apartheid seria derrubado. E de que Nelson Mandela, preso havia 27 anos, cedo ou tarde assumiria a presidência da república mediante eleições limpas e livres. O que tinham de si não era um simples partido eleitoral como o MDB, é bem verdade que conduzido por líderes lúcidos, hábeis e pacientes, mas uma vasta frente que já os enfrentara no terreno das armas, e não hesitaria em o fazer novamente. Sabiam que seu país, uma nação potencialmente rica e culta, tornara-se um pária internacional.

Foi então que, em 1990, ao tomar posse na presidência, dirigindo-se a um plenário quase exclusivamente ocupado pelos ex-ingleses e afrikaners, Frederik de Klerk tomou uma decisão histórica. Livrando-se pura e simplesmente do passado racista de sua família, engatou um discurso de 45 minutos, decidido a transformar o país de alto a baixo. Disse, sem gaguejar, que no dia seguinte não haveria mais apartheid. Todos os sul-africanos, membros de uma mesma nação, estariam livres para ir aonde quisessem, sem qualquer restrição. Que todos, como cidadãos iguais que passariam a ser, estariam aptos a votar. E que Nelson Mandela seria imediatamente libertado.

Contada assim, a história parece simples. Tive o privilégio de visitar o país em diversas ocasiões, a primeira uns 20 dias antes da eleição de Mandela. Como sempre fazia em minhas andanças, logo ao chegar ao hotel tirei o paletó e a gravata, desci e chamei um táxi. Disse ao motorista que queria ir ao Soweto, a enorme e temida favela de Johannesburgo. “O senhor tem noção do que está falando?”, ele me perguntou. Respondi que sim, tinha plena ciência de meu objetivo, e continuei: “Por falar nisso, como o senhor está vendo a situação política?”. A réplica dele não poderia ter sido mais concisa: “É eleição ou guerra civil”.

A dificuldade principal era o sr. Mangosuthu Buthelezi, adversário figadal de Mandela e chefe tribal da província de KwaZulu-Natal, historicamente ocupada pelos zulus, situada na parte sul do litoral do Oceano Índico. Mandela insistia na participação de todos os partidos, para assegurar o máximo possível de legitimidade para o pleito. Buthelezi recusava-se a inscrever seu partido, o Inkatha. O impasse persistiu até a antevéspera da eleição. Quando Buthelezi finalmente assentiu, 80 milhões de cédulas já estavam impressas. A Justiça decidiu que o processo seria válido se uma etiqueta com a sigla Inkatha fosse anexada à cédula oficial. E assim se fez. Em três dias, etiquetas produzidas no mais absoluto improviso foram anexadas às cédulas oficiais. Essa, sem dúvida, foi a mais brilhante das transições de regimes autoritários para democracias no século 20.

A diferença entre a transição efetivada pelos sul-africanos e a estupidez em que os venezuelanos adeptos de Maduro insistem em permanecer por certo não se deve a razões naturais ou transcendentais. Não aconteceu não por que os sul-africanos sejam anjos e os venezuelanos tenham parte com o demônio. Não, nada disso. A razão, evidentemente, é que a elite sul-africana assimilou uma noção racional de política. Esta, numa definição concisa, é o empenho dos líderes em equacionar os problemas e conflitos da sociedade com o mínimo possível de violência. A obsessão pela violência não é política; é guerra civil ou genocídio. Essa distinção parece nunca ter passado pela cabeça de Maduro ou pela de seu antecessor, Hugo Chávez.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A política brasileira não chega a ser um brilho, mas nela o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, encontraria um roteiro bem melhor do que o que vem seguindo para sair de sua enrascada.

O Brasil, após 21 anos, soube equacionar uma saída para o ciclo militar iniciado em 1964. Foi o que se pode apropriadamente denominar uma “abertura pela via eleitoral”. De eleição em eleição, à frente de oposições agrupadas no então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), encantoou e venceu a candidatura apoiada pelos militares no Colégio Eleitoral, geringonça que eles haviam montado logo no início justamente para impedir que um oposicionista chegasse à Presidência da República. Justiça lhes seja feita, eles foram sábios em três pontos cruciais: 1) preservaram em linhas gerais o processo eleitoral, mesmo tendo-o manipulado diversas vezes e de diversas maneiras; 2) reconheceram a legitimidade dos votos oposicionistas; 3) aceitaram a vitória final de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf na contenda de janeiro de 1985.

Parece fora de dúvida que uma chance como essa Maduro já perdeu. Deixou passar a hora. Creio mesmo que a sinuca em que se meteu deve-se à relação que estabeleceu com os militares. Comprando-os no atacado e no varejo, tornou-se refém deles. Agora estão todos no mesmo barco.

Mas, para sorte deles, se tiverem juízo, há uma saída muito melhor. Refiro-me à democratização e ao fim do apartheid na África do Sul. Após várias décadas da mais desvairada opressão e matanças sem fim, os dois esteios do racismo (os brancos descendentes de ingleses e os afrikaners, descendentes dos holandeses) começaram a cair na real. Foram se dando conta de que o apartheid seria derrubado. E de que Nelson Mandela, preso havia 27 anos, cedo ou tarde assumiria a presidência da república mediante eleições limpas e livres. O que tinham de si não era um simples partido eleitoral como o MDB, é bem verdade que conduzido por líderes lúcidos, hábeis e pacientes, mas uma vasta frente que já os enfrentara no terreno das armas, e não hesitaria em o fazer novamente. Sabiam que seu país, uma nação potencialmente rica e culta, tornara-se um pária internacional.

Foi então que, em 1990, ao tomar posse na presidência, dirigindo-se a um plenário quase exclusivamente ocupado pelos ex-ingleses e afrikaners, Frederik de Klerk tomou uma decisão histórica. Livrando-se pura e simplesmente do passado racista de sua família, engatou um discurso de 45 minutos, decidido a transformar o país de alto a baixo. Disse, sem gaguejar, que no dia seguinte não haveria mais apartheid. Todos os sul-africanos, membros de uma mesma nação, estariam livres para ir aonde quisessem, sem qualquer restrição. Que todos, como cidadãos iguais que passariam a ser, estariam aptos a votar. E que Nelson Mandela seria imediatamente libertado.

Contada assim, a história parece simples. Tive o privilégio de visitar o país em diversas ocasiões, a primeira uns 20 dias antes da eleição de Mandela. Como sempre fazia em minhas andanças, logo ao chegar ao hotel tirei o paletó e a gravata, desci e chamei um táxi. Disse ao motorista que queria ir ao Soweto, a enorme e temida favela de Johannesburgo. “O senhor tem noção do que está falando?”, ele me perguntou. Respondi que sim, tinha plena ciência de meu objetivo, e continuei: “Por falar nisso, como o senhor está vendo a situação política?”. A réplica dele não poderia ter sido mais concisa: “É eleição ou guerra civil”.

A dificuldade principal era o sr. Mangosuthu Buthelezi, adversário figadal de Mandela e chefe tribal da província de KwaZulu-Natal, historicamente ocupada pelos zulus, situada na parte sul do litoral do Oceano Índico. Mandela insistia na participação de todos os partidos, para assegurar o máximo possível de legitimidade para o pleito. Buthelezi recusava-se a inscrever seu partido, o Inkatha. O impasse persistiu até a antevéspera da eleição. Quando Buthelezi finalmente assentiu, 80 milhões de cédulas já estavam impressas. A Justiça decidiu que o processo seria válido se uma etiqueta com a sigla Inkatha fosse anexada à cédula oficial. E assim se fez. Em três dias, etiquetas produzidas no mais absoluto improviso foram anexadas às cédulas oficiais. Essa, sem dúvida, foi a mais brilhante das transições de regimes autoritários para democracias no século 20.

A diferença entre a transição efetivada pelos sul-africanos e a estupidez em que os venezuelanos adeptos de Maduro insistem em permanecer por certo não se deve a razões naturais ou transcendentais. Não aconteceu não por que os sul-africanos sejam anjos e os venezuelanos tenham parte com o demônio. Não, nada disso. A razão, evidentemente, é que a elite sul-africana assimilou uma noção racional de política. Esta, numa definição concisa, é o empenho dos líderes em equacionar os problemas e conflitos da sociedade com o mínimo possível de violência. A obsessão pela violência não é política; é guerra civil ou genocídio. Essa distinção parece nunca ter passado pela cabeça de Maduro ou pela de seu antecessor, Hugo Chávez.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A política brasileira não chega a ser um brilho, mas nela o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, encontraria um roteiro bem melhor do que o que vem seguindo para sair de sua enrascada.

O Brasil, após 21 anos, soube equacionar uma saída para o ciclo militar iniciado em 1964. Foi o que se pode apropriadamente denominar uma “abertura pela via eleitoral”. De eleição em eleição, à frente de oposições agrupadas no então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), encantoou e venceu a candidatura apoiada pelos militares no Colégio Eleitoral, geringonça que eles haviam montado logo no início justamente para impedir que um oposicionista chegasse à Presidência da República. Justiça lhes seja feita, eles foram sábios em três pontos cruciais: 1) preservaram em linhas gerais o processo eleitoral, mesmo tendo-o manipulado diversas vezes e de diversas maneiras; 2) reconheceram a legitimidade dos votos oposicionistas; 3) aceitaram a vitória final de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf na contenda de janeiro de 1985.

Parece fora de dúvida que uma chance como essa Maduro já perdeu. Deixou passar a hora. Creio mesmo que a sinuca em que se meteu deve-se à relação que estabeleceu com os militares. Comprando-os no atacado e no varejo, tornou-se refém deles. Agora estão todos no mesmo barco.

Mas, para sorte deles, se tiverem juízo, há uma saída muito melhor. Refiro-me à democratização e ao fim do apartheid na África do Sul. Após várias décadas da mais desvairada opressão e matanças sem fim, os dois esteios do racismo (os brancos descendentes de ingleses e os afrikaners, descendentes dos holandeses) começaram a cair na real. Foram se dando conta de que o apartheid seria derrubado. E de que Nelson Mandela, preso havia 27 anos, cedo ou tarde assumiria a presidência da república mediante eleições limpas e livres. O que tinham de si não era um simples partido eleitoral como o MDB, é bem verdade que conduzido por líderes lúcidos, hábeis e pacientes, mas uma vasta frente que já os enfrentara no terreno das armas, e não hesitaria em o fazer novamente. Sabiam que seu país, uma nação potencialmente rica e culta, tornara-se um pária internacional.

Foi então que, em 1990, ao tomar posse na presidência, dirigindo-se a um plenário quase exclusivamente ocupado pelos ex-ingleses e afrikaners, Frederik de Klerk tomou uma decisão histórica. Livrando-se pura e simplesmente do passado racista de sua família, engatou um discurso de 45 minutos, decidido a transformar o país de alto a baixo. Disse, sem gaguejar, que no dia seguinte não haveria mais apartheid. Todos os sul-africanos, membros de uma mesma nação, estariam livres para ir aonde quisessem, sem qualquer restrição. Que todos, como cidadãos iguais que passariam a ser, estariam aptos a votar. E que Nelson Mandela seria imediatamente libertado.

Contada assim, a história parece simples. Tive o privilégio de visitar o país em diversas ocasiões, a primeira uns 20 dias antes da eleição de Mandela. Como sempre fazia em minhas andanças, logo ao chegar ao hotel tirei o paletó e a gravata, desci e chamei um táxi. Disse ao motorista que queria ir ao Soweto, a enorme e temida favela de Johannesburgo. “O senhor tem noção do que está falando?”, ele me perguntou. Respondi que sim, tinha plena ciência de meu objetivo, e continuei: “Por falar nisso, como o senhor está vendo a situação política?”. A réplica dele não poderia ter sido mais concisa: “É eleição ou guerra civil”.

A dificuldade principal era o sr. Mangosuthu Buthelezi, adversário figadal de Mandela e chefe tribal da província de KwaZulu-Natal, historicamente ocupada pelos zulus, situada na parte sul do litoral do Oceano Índico. Mandela insistia na participação de todos os partidos, para assegurar o máximo possível de legitimidade para o pleito. Buthelezi recusava-se a inscrever seu partido, o Inkatha. O impasse persistiu até a antevéspera da eleição. Quando Buthelezi finalmente assentiu, 80 milhões de cédulas já estavam impressas. A Justiça decidiu que o processo seria válido se uma etiqueta com a sigla Inkatha fosse anexada à cédula oficial. E assim se fez. Em três dias, etiquetas produzidas no mais absoluto improviso foram anexadas às cédulas oficiais. Essa, sem dúvida, foi a mais brilhante das transições de regimes autoritários para democracias no século 20.

A diferença entre a transição efetivada pelos sul-africanos e a estupidez em que os venezuelanos adeptos de Maduro insistem em permanecer por certo não se deve a razões naturais ou transcendentais. Não aconteceu não por que os sul-africanos sejam anjos e os venezuelanos tenham parte com o demônio. Não, nada disso. A razão, evidentemente, é que a elite sul-africana assimilou uma noção racional de política. Esta, numa definição concisa, é o empenho dos líderes em equacionar os problemas e conflitos da sociedade com o mínimo possível de violência. A obsessão pela violência não é política; é guerra civil ou genocídio. Essa distinção parece nunca ter passado pela cabeça de Maduro ou pela de seu antecessor, Hugo Chávez.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A política brasileira não chega a ser um brilho, mas nela o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, encontraria um roteiro bem melhor do que o que vem seguindo para sair de sua enrascada.

O Brasil, após 21 anos, soube equacionar uma saída para o ciclo militar iniciado em 1964. Foi o que se pode apropriadamente denominar uma “abertura pela via eleitoral”. De eleição em eleição, à frente de oposições agrupadas no então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), encantoou e venceu a candidatura apoiada pelos militares no Colégio Eleitoral, geringonça que eles haviam montado logo no início justamente para impedir que um oposicionista chegasse à Presidência da República. Justiça lhes seja feita, eles foram sábios em três pontos cruciais: 1) preservaram em linhas gerais o processo eleitoral, mesmo tendo-o manipulado diversas vezes e de diversas maneiras; 2) reconheceram a legitimidade dos votos oposicionistas; 3) aceitaram a vitória final de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf na contenda de janeiro de 1985.

Parece fora de dúvida que uma chance como essa Maduro já perdeu. Deixou passar a hora. Creio mesmo que a sinuca em que se meteu deve-se à relação que estabeleceu com os militares. Comprando-os no atacado e no varejo, tornou-se refém deles. Agora estão todos no mesmo barco.

Mas, para sorte deles, se tiverem juízo, há uma saída muito melhor. Refiro-me à democratização e ao fim do apartheid na África do Sul. Após várias décadas da mais desvairada opressão e matanças sem fim, os dois esteios do racismo (os brancos descendentes de ingleses e os afrikaners, descendentes dos holandeses) começaram a cair na real. Foram se dando conta de que o apartheid seria derrubado. E de que Nelson Mandela, preso havia 27 anos, cedo ou tarde assumiria a presidência da república mediante eleições limpas e livres. O que tinham de si não era um simples partido eleitoral como o MDB, é bem verdade que conduzido por líderes lúcidos, hábeis e pacientes, mas uma vasta frente que já os enfrentara no terreno das armas, e não hesitaria em o fazer novamente. Sabiam que seu país, uma nação potencialmente rica e culta, tornara-se um pária internacional.

Foi então que, em 1990, ao tomar posse na presidência, dirigindo-se a um plenário quase exclusivamente ocupado pelos ex-ingleses e afrikaners, Frederik de Klerk tomou uma decisão histórica. Livrando-se pura e simplesmente do passado racista de sua família, engatou um discurso de 45 minutos, decidido a transformar o país de alto a baixo. Disse, sem gaguejar, que no dia seguinte não haveria mais apartheid. Todos os sul-africanos, membros de uma mesma nação, estariam livres para ir aonde quisessem, sem qualquer restrição. Que todos, como cidadãos iguais que passariam a ser, estariam aptos a votar. E que Nelson Mandela seria imediatamente libertado.

Contada assim, a história parece simples. Tive o privilégio de visitar o país em diversas ocasiões, a primeira uns 20 dias antes da eleição de Mandela. Como sempre fazia em minhas andanças, logo ao chegar ao hotel tirei o paletó e a gravata, desci e chamei um táxi. Disse ao motorista que queria ir ao Soweto, a enorme e temida favela de Johannesburgo. “O senhor tem noção do que está falando?”, ele me perguntou. Respondi que sim, tinha plena ciência de meu objetivo, e continuei: “Por falar nisso, como o senhor está vendo a situação política?”. A réplica dele não poderia ter sido mais concisa: “É eleição ou guerra civil”.

A dificuldade principal era o sr. Mangosuthu Buthelezi, adversário figadal de Mandela e chefe tribal da província de KwaZulu-Natal, historicamente ocupada pelos zulus, situada na parte sul do litoral do Oceano Índico. Mandela insistia na participação de todos os partidos, para assegurar o máximo possível de legitimidade para o pleito. Buthelezi recusava-se a inscrever seu partido, o Inkatha. O impasse persistiu até a antevéspera da eleição. Quando Buthelezi finalmente assentiu, 80 milhões de cédulas já estavam impressas. A Justiça decidiu que o processo seria válido se uma etiqueta com a sigla Inkatha fosse anexada à cédula oficial. E assim se fez. Em três dias, etiquetas produzidas no mais absoluto improviso foram anexadas às cédulas oficiais. Essa, sem dúvida, foi a mais brilhante das transições de regimes autoritários para democracias no século 20.

A diferença entre a transição efetivada pelos sul-africanos e a estupidez em que os venezuelanos adeptos de Maduro insistem em permanecer por certo não se deve a razões naturais ou transcendentais. Não aconteceu não por que os sul-africanos sejam anjos e os venezuelanos tenham parte com o demônio. Não, nada disso. A razão, evidentemente, é que a elite sul-africana assimilou uma noção racional de política. Esta, numa definição concisa, é o empenho dos líderes em equacionar os problemas e conflitos da sociedade com o mínimo possível de violência. A obsessão pela violência não é política; é guerra civil ou genocídio. Essa distinção parece nunca ter passado pela cabeça de Maduro ou pela de seu antecessor, Hugo Chávez.

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