O tema desta coluna foi suscitado por sugestivo editorial do jornal Gazeta do Povo. Fahrenheit 451 é um romance fascinante e perturbador. Seu autor, Ray Bradbury, descreve uma sociedade opressiva em que ler é proibido e bombeiros queimam livros. Parece assustador. Prepare-se para a realidade. Ela já está aí graças a uma recente canetada de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Como salientou, atônito, o editorialista do diário paranaense, “quatro obscuras obras jurídicas acabam de inaugurar, no Brasil, a prática da queima de livros”. O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, determinou a censura dos livros Curso Avançado de Biodireito, Teoria e Prática do Direito Penal, Curso Avançado de Direito do Consumidor e Manual de Prática Trabalhista, todos de autoria do advogado Luciano Dalvi; eles devem ser retirados de circulação, recolhidos em quaisquer livrarias ou bibliotecas onde sejam encontrados, e destruídos. A editora só poderá voltar a comercializá-los se forem devidamente editados. Por fim, o autor terá de pagar multa de R$ 150 mil. A decisão de Dino reverte julgamento da primeira instância e do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4), que haviam negado todos os pedidos do Ministério Público (MP) após as obras terem sido descobertas por estudantes da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná..
O ministro Flávio Dino, um homem inteligente, com boa formação jurídica, mas alma de político, empunhou a tesoura da censura. Mandou eliminar livros que teriam teor homofóbico e sexista. E avisou que não estava praticando censura. Independentemente do conteúdo criticável e condenável, é cerceamento da liberdade de expressão. A censura, sempre em nome de boas causas, é a principal ferramenta do autoritarismo. Flávio Dino, talvez sem se dar conta, está encarnando o Estado dono e tutor da liberdade de expressão. Isso é muito perigoso.
A forma escolhida por Flávio Dino para lidar com os absurdos escritos por Dalvi foi a mais incorreta possível. A começar pelo recurso (cada vez mais frequente) ao dito “discurso de ódio”, conceito que não está definido na legislação e cuja existência, no caso em tela, foi negada pela maioria dos desembargadores do TRF4, que analisaram o caso e confirmaram a sentença de primeira instância. “Não obstante os aspectos estilísticos pouco elegantes, as obras em análise não têm potencial para disseminar o ódio social, sexista ou homofóbico”, escrevera o juiz que negou o pedido do MP, acrescentando ser “totalmente inadequado patrulhar a produção jurídica, histórica, científica ou artística de quem quer seja, pinçando aqui e ali trechos para reuni-los e daí extrair a caracterização de hipótese de plataforma de disseminação de ódio, ofensiva à dignidade humana”.
Tenho respeito pelo ministro Flávio Dino. Entendo seu propósito de proteger as minorias. Mas discordo da terapia e da dose do remédio aplicado. A proteção das minorias não pode ser feita com medidas de censura e de comprometimento da liberdade de expressão, valor maior da nossa Constituição.
Jamais poderia imaginar que um dos pilares do Estado Democrático de Direito pudesse, em nome da democracia, ser gravemente solapado por aqueles que têm o dever de preservá-lo e defendê-lo. A credibilidade da Corte Suprema vai sendo perigosamente corroída por decisões tomadas de costas para a Constituição.
Não há democracia quando os cidadãos se veem em estado de constante insegurança sobre o que podem ou não dizer, e críticas ou perguntas que desagradem a um político ou a um juiz podem render um cala-boca (aquele que já havia morrido, nas palavras de Cármen Lúcia). Não há democracia quando conversas privadas sem qualquer espécie de conspiração ou incitação ao crime dão margem para quebras de sigilo e bloqueios de contas bancárias. Não há democracia quando um tribunal ressuscita a censura prévia.
Não se combatem fake news com censura, limitações à liberdade de expressão e prisões arbitrárias e ilegais. Quem vai dizer o que podemos ou não consumir? Quem vai definir o que são ou não fake news? O Estado? O ministro Dino? Transferir para o Estado a tutela da liberdade é muito perigoso. Nós vivemos isso na ditadura militar. Ninguém quer uma ditadura camuflada.
Estamos assistindo à desconstrução da liberdade de expressão. Atualmente, qualquer ofensa, real ou imaginária, passa a ser resolvida em clima de rito sumário. O ministro “ofendido”, como se não fizesse parte de um poder democrático, assume o papel de polícia, promotor e juiz da própria causa. É exatamente isso que, atônitos, estamos vendo no chamado inquérito das fake news.
O fato é que, objetivamente, o nível de repressão à liberdade de expressão adotado antes, durante e depois do período eleitoral – censura, censura prévia, desmonetização, proibição de criação de perfis, proibição de fatos sabidamente verdadeiros – nos colocou mais perto das nações autocráticas que das nações livres. Opiniões perfeitamente legítimas em um regime de liberdade foram banidas pelo aparato judicial brasileiro.
Caros ministros do STF, conversem, revejam posições e pensem no bem maior do Brasil.
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JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR