Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Em torno do desconcerto do mundo


O componente de indeterminação e imprevisibilidade hoje se agudiza num mundo crescentemente hobbesiano, no qual o tema da paz e da guerra adquire renovada urgência

Por Celso Lafer

O cerne da política internacional, destaca Raymond Aron no seu clássico Paz e Guerra entre as Nações, são as relações interestatais. Estas se dão no unificado campo diplomático de um sistema internacional global, heterogêneo e descentralizado. Caracteriza-se pela distribuição individual e assimétrica de poder entre os Estados e está permeado pela vigência da situação-limite paz/guerra.

A guerra é aquela calamidade composta por todas as calamidades, como apontou o padre Antonio Vieira, e a guerra em andamento na Ucrânia e no Oriente Médio, pela indivisibilidade de seu impacto, torna visível a ameaça da sua recorrência histórica. Um dos seus desdobramentos é a deterioração dos muitos mecanismos de cooperação engendrados em função da necessidade de gestionar multilateralmente, com base na reciprocidade dos interesses, as complexas interdependências de um mundo planetário.

A ONU é um grande paradigma do esforço de lidar com as interdependências e os conflitos pelos caminhos do multilateralismo. Foi concebida como um institucionalizado centro de coordenação entre os Estados, voltado para manter a paz e a segurança, desenvolver as relações amistosas entre os Estados e promover a cooperação internacional. A ONU não detém um poder de governança. É um tertius institucional de intermediação e negociação entre os Estados-membros.

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Conhecidas facetas do sistema internacional enredam o alcance do multilateralismo, entre elas a pluralidade constitutiva dos objetivos das políticas externas dos Estados-membros, que dificultam a unidade da ação conjunta.

Entre estas pluralidades de objetivos dos Estados, figuram, com maior ou menor ênfase, dependendo do desafio das conjunturas e da especificidade dos Estados e suas sociedades: a segurança, a afirmação do poderio, os interesses econômicos e de bem-estar, a sustentabilidade ambiental e o papel da afirmação das ideias norteadoras da conduta interna e internacional.

Da pluralidade dos objetivos da política externa dos Estados provém uma constitutiva margem de imprevisibilidade na dinâmica da vida internacional. Este componente de indeterminação e imprevisibilidade hoje se agudiza num mundo crescentemente hobbesiano, no qual o tema da paz e da guerra adquire renovada urgência.

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Com efeito, as análises estratégicas do pós-Segunda Guerra, que se prolongaram por um bom período no mundo pós guerra fria, obedeciam à lógica de racionalidade do equilíbrio da dissuasão nuclear. Foi o que levou à avaliação de que o sistema internacional, no seu cerne, se caracterizou pela precária estabilidade da paz impossível, mas da guerra improvável, para relembrar a formulação de Aron.

Este precário e esquivo equilíbrio está hoje em questão. Vem inserindo no horizonte da humanidade a marcha da insensatez da probabilidade da guerra, que é um camaleão que assume na sua indivisibilidade novas formas que afetam todos.

Para o novo de uma crescente imprevisibilidade e os seus riscos contribui não apenas a existência dos conflitos de interesse, mas a prevalência desestabilizadora da lógica da fragmentação das tensões. Atualmente, a tensão proeminente é a de hegemonia das interações entre os EUA e a China, seus desdobramentos e articulações. Passam pelo apoio da China e do Irã à Rússia na guerra da Ucrânia, que coloca em questão, com alcance geral, a segurança europeia e a redefinição do papel da Otan na qual se lastreia.

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A tensão de hegemonia alimenta as tensões regionais de equilíbrio, notadamente no conflito do Oriente Médio.

As tensões multiplicam-se pelo efeito da prevalência da geografia das paixões em escala mundial e pelo vigor da incidência organizatória da geopolítica. Este compromete o multilateralismo comercial, preconizado pela OMC pelo alcance de uma geoeconomia. Esta, na sua dinâmica, vem afastando critérios compartilhados da eficiência econômica global e das virtudes pacificadoras do espírito do comércio. É o que resulta de uma revigoradora ênfase no unilateralismo de critérios de segurança dos Estados, indutores de várias modalidades das guerras comerciais.

São indicações de que a atual multipolaridade não é estabilizadora da ordem mundial, mas sim propiciadora da erosão sublevadora da previsibilidade dos acontecimentos e de prévios parâmetros do aceitável, balizadores de limites na vida internacional – como, por exemplo, as normas do direito humanitário em matéria de emprego da destrutividade das armas.

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Para concluir: vivemos num mundo caracterizado pelos riscos manufaturados pela ação humana. Destes riscos a vida internacional é um grande paradigma. Daí um empenho continuado dos Estados na gestão de riscos que os afetam, inerentes à dinâmica do sistema internacional.

Riscos comportam esforços de mensuração, mas o que apontei neste texto são os novos riscos do risco. É o que leva à incerteza, que tem entre suas características, segundo os economistas, a dificuldade da racionalidade da mensuração.

É a incerteza que deixa o juízo quase incerto, como diz Camões, numa de suas grandes oitavas, ao “ver e notar do mundo o desconcerto”.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

O cerne da política internacional, destaca Raymond Aron no seu clássico Paz e Guerra entre as Nações, são as relações interestatais. Estas se dão no unificado campo diplomático de um sistema internacional global, heterogêneo e descentralizado. Caracteriza-se pela distribuição individual e assimétrica de poder entre os Estados e está permeado pela vigência da situação-limite paz/guerra.

A guerra é aquela calamidade composta por todas as calamidades, como apontou o padre Antonio Vieira, e a guerra em andamento na Ucrânia e no Oriente Médio, pela indivisibilidade de seu impacto, torna visível a ameaça da sua recorrência histórica. Um dos seus desdobramentos é a deterioração dos muitos mecanismos de cooperação engendrados em função da necessidade de gestionar multilateralmente, com base na reciprocidade dos interesses, as complexas interdependências de um mundo planetário.

A ONU é um grande paradigma do esforço de lidar com as interdependências e os conflitos pelos caminhos do multilateralismo. Foi concebida como um institucionalizado centro de coordenação entre os Estados, voltado para manter a paz e a segurança, desenvolver as relações amistosas entre os Estados e promover a cooperação internacional. A ONU não detém um poder de governança. É um tertius institucional de intermediação e negociação entre os Estados-membros.

Conhecidas facetas do sistema internacional enredam o alcance do multilateralismo, entre elas a pluralidade constitutiva dos objetivos das políticas externas dos Estados-membros, que dificultam a unidade da ação conjunta.

Entre estas pluralidades de objetivos dos Estados, figuram, com maior ou menor ênfase, dependendo do desafio das conjunturas e da especificidade dos Estados e suas sociedades: a segurança, a afirmação do poderio, os interesses econômicos e de bem-estar, a sustentabilidade ambiental e o papel da afirmação das ideias norteadoras da conduta interna e internacional.

Da pluralidade dos objetivos da política externa dos Estados provém uma constitutiva margem de imprevisibilidade na dinâmica da vida internacional. Este componente de indeterminação e imprevisibilidade hoje se agudiza num mundo crescentemente hobbesiano, no qual o tema da paz e da guerra adquire renovada urgência.

Com efeito, as análises estratégicas do pós-Segunda Guerra, que se prolongaram por um bom período no mundo pós guerra fria, obedeciam à lógica de racionalidade do equilíbrio da dissuasão nuclear. Foi o que levou à avaliação de que o sistema internacional, no seu cerne, se caracterizou pela precária estabilidade da paz impossível, mas da guerra improvável, para relembrar a formulação de Aron.

Este precário e esquivo equilíbrio está hoje em questão. Vem inserindo no horizonte da humanidade a marcha da insensatez da probabilidade da guerra, que é um camaleão que assume na sua indivisibilidade novas formas que afetam todos.

Para o novo de uma crescente imprevisibilidade e os seus riscos contribui não apenas a existência dos conflitos de interesse, mas a prevalência desestabilizadora da lógica da fragmentação das tensões. Atualmente, a tensão proeminente é a de hegemonia das interações entre os EUA e a China, seus desdobramentos e articulações. Passam pelo apoio da China e do Irã à Rússia na guerra da Ucrânia, que coloca em questão, com alcance geral, a segurança europeia e a redefinição do papel da Otan na qual se lastreia.

A tensão de hegemonia alimenta as tensões regionais de equilíbrio, notadamente no conflito do Oriente Médio.

As tensões multiplicam-se pelo efeito da prevalência da geografia das paixões em escala mundial e pelo vigor da incidência organizatória da geopolítica. Este compromete o multilateralismo comercial, preconizado pela OMC pelo alcance de uma geoeconomia. Esta, na sua dinâmica, vem afastando critérios compartilhados da eficiência econômica global e das virtudes pacificadoras do espírito do comércio. É o que resulta de uma revigoradora ênfase no unilateralismo de critérios de segurança dos Estados, indutores de várias modalidades das guerras comerciais.

São indicações de que a atual multipolaridade não é estabilizadora da ordem mundial, mas sim propiciadora da erosão sublevadora da previsibilidade dos acontecimentos e de prévios parâmetros do aceitável, balizadores de limites na vida internacional – como, por exemplo, as normas do direito humanitário em matéria de emprego da destrutividade das armas.

Para concluir: vivemos num mundo caracterizado pelos riscos manufaturados pela ação humana. Destes riscos a vida internacional é um grande paradigma. Daí um empenho continuado dos Estados na gestão de riscos que os afetam, inerentes à dinâmica do sistema internacional.

Riscos comportam esforços de mensuração, mas o que apontei neste texto são os novos riscos do risco. É o que leva à incerteza, que tem entre suas características, segundo os economistas, a dificuldade da racionalidade da mensuração.

É a incerteza que deixa o juízo quase incerto, como diz Camões, numa de suas grandes oitavas, ao “ver e notar do mundo o desconcerto”.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

O cerne da política internacional, destaca Raymond Aron no seu clássico Paz e Guerra entre as Nações, são as relações interestatais. Estas se dão no unificado campo diplomático de um sistema internacional global, heterogêneo e descentralizado. Caracteriza-se pela distribuição individual e assimétrica de poder entre os Estados e está permeado pela vigência da situação-limite paz/guerra.

A guerra é aquela calamidade composta por todas as calamidades, como apontou o padre Antonio Vieira, e a guerra em andamento na Ucrânia e no Oriente Médio, pela indivisibilidade de seu impacto, torna visível a ameaça da sua recorrência histórica. Um dos seus desdobramentos é a deterioração dos muitos mecanismos de cooperação engendrados em função da necessidade de gestionar multilateralmente, com base na reciprocidade dos interesses, as complexas interdependências de um mundo planetário.

A ONU é um grande paradigma do esforço de lidar com as interdependências e os conflitos pelos caminhos do multilateralismo. Foi concebida como um institucionalizado centro de coordenação entre os Estados, voltado para manter a paz e a segurança, desenvolver as relações amistosas entre os Estados e promover a cooperação internacional. A ONU não detém um poder de governança. É um tertius institucional de intermediação e negociação entre os Estados-membros.

Conhecidas facetas do sistema internacional enredam o alcance do multilateralismo, entre elas a pluralidade constitutiva dos objetivos das políticas externas dos Estados-membros, que dificultam a unidade da ação conjunta.

Entre estas pluralidades de objetivos dos Estados, figuram, com maior ou menor ênfase, dependendo do desafio das conjunturas e da especificidade dos Estados e suas sociedades: a segurança, a afirmação do poderio, os interesses econômicos e de bem-estar, a sustentabilidade ambiental e o papel da afirmação das ideias norteadoras da conduta interna e internacional.

Da pluralidade dos objetivos da política externa dos Estados provém uma constitutiva margem de imprevisibilidade na dinâmica da vida internacional. Este componente de indeterminação e imprevisibilidade hoje se agudiza num mundo crescentemente hobbesiano, no qual o tema da paz e da guerra adquire renovada urgência.

Com efeito, as análises estratégicas do pós-Segunda Guerra, que se prolongaram por um bom período no mundo pós guerra fria, obedeciam à lógica de racionalidade do equilíbrio da dissuasão nuclear. Foi o que levou à avaliação de que o sistema internacional, no seu cerne, se caracterizou pela precária estabilidade da paz impossível, mas da guerra improvável, para relembrar a formulação de Aron.

Este precário e esquivo equilíbrio está hoje em questão. Vem inserindo no horizonte da humanidade a marcha da insensatez da probabilidade da guerra, que é um camaleão que assume na sua indivisibilidade novas formas que afetam todos.

Para o novo de uma crescente imprevisibilidade e os seus riscos contribui não apenas a existência dos conflitos de interesse, mas a prevalência desestabilizadora da lógica da fragmentação das tensões. Atualmente, a tensão proeminente é a de hegemonia das interações entre os EUA e a China, seus desdobramentos e articulações. Passam pelo apoio da China e do Irã à Rússia na guerra da Ucrânia, que coloca em questão, com alcance geral, a segurança europeia e a redefinição do papel da Otan na qual se lastreia.

A tensão de hegemonia alimenta as tensões regionais de equilíbrio, notadamente no conflito do Oriente Médio.

As tensões multiplicam-se pelo efeito da prevalência da geografia das paixões em escala mundial e pelo vigor da incidência organizatória da geopolítica. Este compromete o multilateralismo comercial, preconizado pela OMC pelo alcance de uma geoeconomia. Esta, na sua dinâmica, vem afastando critérios compartilhados da eficiência econômica global e das virtudes pacificadoras do espírito do comércio. É o que resulta de uma revigoradora ênfase no unilateralismo de critérios de segurança dos Estados, indutores de várias modalidades das guerras comerciais.

São indicações de que a atual multipolaridade não é estabilizadora da ordem mundial, mas sim propiciadora da erosão sublevadora da previsibilidade dos acontecimentos e de prévios parâmetros do aceitável, balizadores de limites na vida internacional – como, por exemplo, as normas do direito humanitário em matéria de emprego da destrutividade das armas.

Para concluir: vivemos num mundo caracterizado pelos riscos manufaturados pela ação humana. Destes riscos a vida internacional é um grande paradigma. Daí um empenho continuado dos Estados na gestão de riscos que os afetam, inerentes à dinâmica do sistema internacional.

Riscos comportam esforços de mensuração, mas o que apontei neste texto são os novos riscos do risco. É o que leva à incerteza, que tem entre suas características, segundo os economistas, a dificuldade da racionalidade da mensuração.

É a incerteza que deixa o juízo quase incerto, como diz Camões, numa de suas grandes oitavas, ao “ver e notar do mundo o desconcerto”.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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