Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Em torno do STF


Para que adquira a plenitude de sua repercussão geral, é fundamental que a colegialidade institucional seja resguardada

Por Celso Lafer

A justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito por causa da força de um sentimento forte, mas impreciso, que atravessa os tempos: o Direito, como uma ordenação de convivência humana, deve ser permeado e regulado nas suas normas e aplicação pela justiça.

Na administração da justiça, o dever ser desta “ideia a realizar” é, em nosso país, uma responsabilidade institucional do Supremo Tribunal Federal (STF). Pedro Lessa, notável professor de Filosofia do Direito no Largo de São Francisco e admirável ministro do STF, apontou para a relevância do sentimento de justiça e do seu vínculo com o Judiciário, no clássico Do Poder Judiciário (1915). Destacou que o Judiciário é o primeiro poder que aparece na sociedade, pois é pela administração da justiça que se satisfaz a primeira necessidade sentida pelas agremiações humanas. É o que reverbera em passagens do Deuteronômio.

O desafio do exercício desta missão, que está nas mãos do STF, não é tarefa fácil. São múltiplas as vertentes do justo, o papel do Direito nas sociedades contemporâneas tem uma função de gestão de convivência humana e a guarda da Constituição de 1988 é muito abrangente à luz do disposto nas matérias que contempla.

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Essa abrangência é fruto das aspirações de justiça da sociedade brasileira que as constitucionalizou em 1988 na lógica do pacto de redemocratização da qual se originou a Constituição. É o que vem ensejando a significativa judicialização da política e levando o STF a decidir muitas questões conflitivas. Daí a proeminência atual do STF na vida brasileira. É o que o expõe a críticas, muitas válidas, outras não, e às insatisfações que provêm de setores de uma sociedade que é hoje muito mais polarizada e fragmentada do que em 1988.

Essa insatisfação expressa uma visão de que decisões do Supremo têm sido fundamentadas em motivações políticas e proferidas sobre assuntos políticos que extravasam a lógica da separação dos Poderes. Cabe pontuar que decisões que julguem constitucionalmente inválidas normas emanadas do Congresso ou inexequíveis atos do Poder Executivo são da competência do STF, nos termos da Constituição e da nossa tradição constitucional.

O exercício desta função tem um inegável caráter político num Estado Democrático de Direito. Por isso, o poder jurídico do STF de se pronunciar sobre a nulidade de atos de outros Poderes no exercício de sua função pode implicar, pela natureza sobre a qual se exerce, o tomar parte, na ação política de governo, na clássica lição de Pedro Lessa.

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É o que caracterizou julgados do STF na pandemia, que possibilitaram a ampla vacinação da população brasileira, e os que contiveram as efetivas ameaças à democracia brasileira. Pode-se deles dizer que, com base na Constituição, responderam ao sentimento de justiça e fulminaram os desmandos dos excessos negacionistas.

A preeminência do STF na vida brasileira é pauta da agenda política do País. Responder a este desafio requer que o STF, na pluralidade de seus ministros, seja a expressão da ação conjunta de uma instituição que tem um objetivo comum, que se expressa pela sua colegialidade. Precisa transmitir como o saber de seus votos atende às exigências da administração da justiça. Nesta linha cabe evocar o que diz Pe. Antonio Vieira no Sermão da Sexagésima: “O que só sai da boca para nos ouvidos; o que nasce em juízo penetra e convence o entendimento”.

O discurso de Rosa Weber, ao término de sua gestão, e o de Luís Roberto Barroso, na sua posse na presidência, enfrentam este desafio com uma pertinência não identificável nas propostas das PECs apresentadas no Congresso que tratam de questões relacionadas ao STF.

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O de Weber tem a auctoritas de quem exerceu a função com o decoro da dignidade, o lastro da experiência de longos anos de judicatura e, inter alia, o mérito de quem reforçou a colegialidade com emendas regimentais que circunscrevem a latitude da ação individual dos ministros.

O discurso de Barroso articula a visão de um magistrado que é reconhecido e qualificado professor universitário. Entre as diretrizes de sua gestão voltada para a administração da justiça, pontua a relevância da segurança jurídica, asseguradora da previsibilidade das condutas e, lembro aqui, seguindo a lição de Bobbio, que a coerência é uma virtude jurídica que cabe ao STF resguardar.

O STF não é um tribunal de consensos plenos. Comporta, na sua pluralidade, válidos e diferentes pontos de observação. No entanto, para que adquira a plenitude de sua repercussão geral, é fundamental que a colegialidade institucional seja resguardada. Esta é uma responsabilidade que cabe ao presidente do STF, como Barroso deixa claro no seu discurso de posse, concluído com a metáfora de um equilibrista que, sem rede, caminha pela vida e seus desafios.

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O seu desafio na presidência do STF é o da coragem da liderança, no apontar rumos, animado pela paciência de consultar, tendo a sabedoria de avaliar qual é o tempo certo para cada uma destas duas atividades.

*

PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

A justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito por causa da força de um sentimento forte, mas impreciso, que atravessa os tempos: o Direito, como uma ordenação de convivência humana, deve ser permeado e regulado nas suas normas e aplicação pela justiça.

Na administração da justiça, o dever ser desta “ideia a realizar” é, em nosso país, uma responsabilidade institucional do Supremo Tribunal Federal (STF). Pedro Lessa, notável professor de Filosofia do Direito no Largo de São Francisco e admirável ministro do STF, apontou para a relevância do sentimento de justiça e do seu vínculo com o Judiciário, no clássico Do Poder Judiciário (1915). Destacou que o Judiciário é o primeiro poder que aparece na sociedade, pois é pela administração da justiça que se satisfaz a primeira necessidade sentida pelas agremiações humanas. É o que reverbera em passagens do Deuteronômio.

O desafio do exercício desta missão, que está nas mãos do STF, não é tarefa fácil. São múltiplas as vertentes do justo, o papel do Direito nas sociedades contemporâneas tem uma função de gestão de convivência humana e a guarda da Constituição de 1988 é muito abrangente à luz do disposto nas matérias que contempla.

Essa abrangência é fruto das aspirações de justiça da sociedade brasileira que as constitucionalizou em 1988 na lógica do pacto de redemocratização da qual se originou a Constituição. É o que vem ensejando a significativa judicialização da política e levando o STF a decidir muitas questões conflitivas. Daí a proeminência atual do STF na vida brasileira. É o que o expõe a críticas, muitas válidas, outras não, e às insatisfações que provêm de setores de uma sociedade que é hoje muito mais polarizada e fragmentada do que em 1988.

Essa insatisfação expressa uma visão de que decisões do Supremo têm sido fundamentadas em motivações políticas e proferidas sobre assuntos políticos que extravasam a lógica da separação dos Poderes. Cabe pontuar que decisões que julguem constitucionalmente inválidas normas emanadas do Congresso ou inexequíveis atos do Poder Executivo são da competência do STF, nos termos da Constituição e da nossa tradição constitucional.

O exercício desta função tem um inegável caráter político num Estado Democrático de Direito. Por isso, o poder jurídico do STF de se pronunciar sobre a nulidade de atos de outros Poderes no exercício de sua função pode implicar, pela natureza sobre a qual se exerce, o tomar parte, na ação política de governo, na clássica lição de Pedro Lessa.

É o que caracterizou julgados do STF na pandemia, que possibilitaram a ampla vacinação da população brasileira, e os que contiveram as efetivas ameaças à democracia brasileira. Pode-se deles dizer que, com base na Constituição, responderam ao sentimento de justiça e fulminaram os desmandos dos excessos negacionistas.

A preeminência do STF na vida brasileira é pauta da agenda política do País. Responder a este desafio requer que o STF, na pluralidade de seus ministros, seja a expressão da ação conjunta de uma instituição que tem um objetivo comum, que se expressa pela sua colegialidade. Precisa transmitir como o saber de seus votos atende às exigências da administração da justiça. Nesta linha cabe evocar o que diz Pe. Antonio Vieira no Sermão da Sexagésima: “O que só sai da boca para nos ouvidos; o que nasce em juízo penetra e convence o entendimento”.

O discurso de Rosa Weber, ao término de sua gestão, e o de Luís Roberto Barroso, na sua posse na presidência, enfrentam este desafio com uma pertinência não identificável nas propostas das PECs apresentadas no Congresso que tratam de questões relacionadas ao STF.

O de Weber tem a auctoritas de quem exerceu a função com o decoro da dignidade, o lastro da experiência de longos anos de judicatura e, inter alia, o mérito de quem reforçou a colegialidade com emendas regimentais que circunscrevem a latitude da ação individual dos ministros.

O discurso de Barroso articula a visão de um magistrado que é reconhecido e qualificado professor universitário. Entre as diretrizes de sua gestão voltada para a administração da justiça, pontua a relevância da segurança jurídica, asseguradora da previsibilidade das condutas e, lembro aqui, seguindo a lição de Bobbio, que a coerência é uma virtude jurídica que cabe ao STF resguardar.

O STF não é um tribunal de consensos plenos. Comporta, na sua pluralidade, válidos e diferentes pontos de observação. No entanto, para que adquira a plenitude de sua repercussão geral, é fundamental que a colegialidade institucional seja resguardada. Esta é uma responsabilidade que cabe ao presidente do STF, como Barroso deixa claro no seu discurso de posse, concluído com a metáfora de um equilibrista que, sem rede, caminha pela vida e seus desafios.

O seu desafio na presidência do STF é o da coragem da liderança, no apontar rumos, animado pela paciência de consultar, tendo a sabedoria de avaliar qual é o tempo certo para cada uma destas duas atividades.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

A justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito por causa da força de um sentimento forte, mas impreciso, que atravessa os tempos: o Direito, como uma ordenação de convivência humana, deve ser permeado e regulado nas suas normas e aplicação pela justiça.

Na administração da justiça, o dever ser desta “ideia a realizar” é, em nosso país, uma responsabilidade institucional do Supremo Tribunal Federal (STF). Pedro Lessa, notável professor de Filosofia do Direito no Largo de São Francisco e admirável ministro do STF, apontou para a relevância do sentimento de justiça e do seu vínculo com o Judiciário, no clássico Do Poder Judiciário (1915). Destacou que o Judiciário é o primeiro poder que aparece na sociedade, pois é pela administração da justiça que se satisfaz a primeira necessidade sentida pelas agremiações humanas. É o que reverbera em passagens do Deuteronômio.

O desafio do exercício desta missão, que está nas mãos do STF, não é tarefa fácil. São múltiplas as vertentes do justo, o papel do Direito nas sociedades contemporâneas tem uma função de gestão de convivência humana e a guarda da Constituição de 1988 é muito abrangente à luz do disposto nas matérias que contempla.

Essa abrangência é fruto das aspirações de justiça da sociedade brasileira que as constitucionalizou em 1988 na lógica do pacto de redemocratização da qual se originou a Constituição. É o que vem ensejando a significativa judicialização da política e levando o STF a decidir muitas questões conflitivas. Daí a proeminência atual do STF na vida brasileira. É o que o expõe a críticas, muitas válidas, outras não, e às insatisfações que provêm de setores de uma sociedade que é hoje muito mais polarizada e fragmentada do que em 1988.

Essa insatisfação expressa uma visão de que decisões do Supremo têm sido fundamentadas em motivações políticas e proferidas sobre assuntos políticos que extravasam a lógica da separação dos Poderes. Cabe pontuar que decisões que julguem constitucionalmente inválidas normas emanadas do Congresso ou inexequíveis atos do Poder Executivo são da competência do STF, nos termos da Constituição e da nossa tradição constitucional.

O exercício desta função tem um inegável caráter político num Estado Democrático de Direito. Por isso, o poder jurídico do STF de se pronunciar sobre a nulidade de atos de outros Poderes no exercício de sua função pode implicar, pela natureza sobre a qual se exerce, o tomar parte, na ação política de governo, na clássica lição de Pedro Lessa.

É o que caracterizou julgados do STF na pandemia, que possibilitaram a ampla vacinação da população brasileira, e os que contiveram as efetivas ameaças à democracia brasileira. Pode-se deles dizer que, com base na Constituição, responderam ao sentimento de justiça e fulminaram os desmandos dos excessos negacionistas.

A preeminência do STF na vida brasileira é pauta da agenda política do País. Responder a este desafio requer que o STF, na pluralidade de seus ministros, seja a expressão da ação conjunta de uma instituição que tem um objetivo comum, que se expressa pela sua colegialidade. Precisa transmitir como o saber de seus votos atende às exigências da administração da justiça. Nesta linha cabe evocar o que diz Pe. Antonio Vieira no Sermão da Sexagésima: “O que só sai da boca para nos ouvidos; o que nasce em juízo penetra e convence o entendimento”.

O discurso de Rosa Weber, ao término de sua gestão, e o de Luís Roberto Barroso, na sua posse na presidência, enfrentam este desafio com uma pertinência não identificável nas propostas das PECs apresentadas no Congresso que tratam de questões relacionadas ao STF.

O de Weber tem a auctoritas de quem exerceu a função com o decoro da dignidade, o lastro da experiência de longos anos de judicatura e, inter alia, o mérito de quem reforçou a colegialidade com emendas regimentais que circunscrevem a latitude da ação individual dos ministros.

O discurso de Barroso articula a visão de um magistrado que é reconhecido e qualificado professor universitário. Entre as diretrizes de sua gestão voltada para a administração da justiça, pontua a relevância da segurança jurídica, asseguradora da previsibilidade das condutas e, lembro aqui, seguindo a lição de Bobbio, que a coerência é uma virtude jurídica que cabe ao STF resguardar.

O STF não é um tribunal de consensos plenos. Comporta, na sua pluralidade, válidos e diferentes pontos de observação. No entanto, para que adquira a plenitude de sua repercussão geral, é fundamental que a colegialidade institucional seja resguardada. Esta é uma responsabilidade que cabe ao presidente do STF, como Barroso deixa claro no seu discurso de posse, concluído com a metáfora de um equilibrista que, sem rede, caminha pela vida e seus desafios.

O seu desafio na presidência do STF é o da coragem da liderança, no apontar rumos, animado pela paciência de consultar, tendo a sabedoria de avaliar qual é o tempo certo para cada uma destas duas atividades.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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