Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Kissinger aos 100


Henry Kissinger é um exemplo do alcance estratégico do papel da palavra do intelectual na vida pública

Por Celso Lafer

Henry Kissinger, aos cem anos, é caso único no cenário diplomático internacional. Sabe sempre mesclar a capacidade de pensar com a de indicar rumos do agir. Reuniu com sucesso reflexão e ação no exercício do poder.

É também caso singular de quem, tendo deixado de exercer diretamente a gestão da diplomacia norte-americana, nunca deixou de ter nas décadas subsequentes às presidências Nixon e Ford relevante poder de influência. Em seus livros pós-governo, aprofundou seus temas recorrentes, como o papel das personalidades e da liderança na condução da política externa e do significado da China. Enfrentou o “novo” na dinâmica da ordem mundial, proveniente do advento da era digital e da inteligência artificial.

Kissinger é um exemplo do alcance estratégico do papel da palavra do intelectual na vida pública. Sua duradoura trajetória, no entanto, mais do que a de qualquer outro no seu campo, suscita tanto a animosidade das paixões quanto o sentimento de admiração.

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A admiração está presente entre os que reconhecem a alta envergadura de sua obra de pensador e nos que exercem responsabilidades na condução da política externa e prezam a destreza do seu domínio do ofício diplomático.

A animosidade provém de facetas de seu exercício de poder, norteado pela perspectiva organizadora dos interesses mundiais de uma grande potência. Um país, como ele disse, que exige a perfeição moral na condução de sua política externa não obterá nem a perfeição moral nem a segurança.

Daí o seu realismo que não é autocentrado. Tem pontos de contato com o de Morgenthau, que o antecedeu como estudioso da política entre as nações e de participante da agenda pública de seu debate.

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Soube apreciar nas suas elaborações a interlocução com Raymond Aron e valorizar a qualidade analítica de sua obra e do seu papel de observador participante da política internacional.

Seu realismo parte do reconhecimento das complexidades e da análise da efetiva relação existente de forças e de poder, e do que ensinam as lições da História pelo discernimento da validade das analogias. Caracteriza-se pela afirmação da diplomacia e sua função na acomodação de interesses num quadro comum de referências, no qual destaca que a busca da segurança absoluta de um Estado gera a instabilidade da insegurança relativa dos demais. Daí sua permanente preocupação em conter os riscos de uma guerra nuclear. Levou em conta de maneira generalizada no seu trato diplomático com atores internacionais a especificidade dos seus interesses e a variedade dos estilos de negociação.

Na condução da política externa, está sempre latente o uso da força. No caso de Kissinger, foram as suas decisões sobre o uso da força e as suas consequências que geraram hostilidades.

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Antonio Candido, ao tratar do mando e transgressão no Ricardo II de Shakespeare, adverte: “Não se manda impunemente”. Daí as vigorosas críticas a Kissinger pelas violações dos direitos humanos que resultaram do apoio dado à derrubada de Allende, no Chile, e o respaldo a Pinochet, na lógica da guerra fria. Também foram contestadas as decisões do bombardeio ao Camboja e Vietnã e do prolongamento da guerra na região, situações nas quais os custos humanos foram deixados de lado para sustentar a credibilidade dos EUA.

As animosidades não obscurecem suas bem-sucedidas e inovadoras realizações de ator diplomático. Seu maior e inconteste sucesso foi a aproximação dos EUA com a China, que assinalou o fim da ordem bipolar criada em Yalta e cujos desdobramentos são um dado da atual cena internacional.

Kissinger discute sua gestão nos substanciosos, bem documentados e bem escritos volumes de suas Memórias. Estas inserem os fatos numa visão global dos acontecimentos. Combinam o impulso de se explicar e se defender, pontuando que a perspectiva do ator permite esclarecer, na vastidão dos documentos disponíveis, quais os temas que efetivamente influenciaram o processo decisório à luz dos eventos.

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Aponta que o exercício de altas responsabilidades governamentais ensina a decidir, mas não o que decidir. A substância das decisões tem o lastro das intuições e conhecimentos das coisas de quem decide. No seu caso, foi o domínio do campo das relações internacionais e de uma visão estratégica que não circunscreveu sua ação apenas ao curto prazo da agenda dos acontecimentos e das rotinas burocráticas. Diferenciava a urgência e as imprecisões do tempo da decisão no calor da hora do tempo mais longo da reflexão acadêmica.

Concluo realçando a envergadura clássica de seu livro Diplomacia. Nele, retoma os fatores de estabilidade e instabilidade da ordem mundial na perspectiva da sempre precária segurança dos Estados no mundo. A estes temas dá renovada abrangência com o fundamento dos seus conhecimentos de grande universitário, vivificado pela sua experiência de homem de Estado.

Kissinger tem na sua vida o corajoso sentimento de suas próprias forças. Subjaz em surdina na sua leitura do mundo o trágico da história, fruto, na sua formação, da experiência do nazismo.

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PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Henry Kissinger, aos cem anos, é caso único no cenário diplomático internacional. Sabe sempre mesclar a capacidade de pensar com a de indicar rumos do agir. Reuniu com sucesso reflexão e ação no exercício do poder.

É também caso singular de quem, tendo deixado de exercer diretamente a gestão da diplomacia norte-americana, nunca deixou de ter nas décadas subsequentes às presidências Nixon e Ford relevante poder de influência. Em seus livros pós-governo, aprofundou seus temas recorrentes, como o papel das personalidades e da liderança na condução da política externa e do significado da China. Enfrentou o “novo” na dinâmica da ordem mundial, proveniente do advento da era digital e da inteligência artificial.

Kissinger é um exemplo do alcance estratégico do papel da palavra do intelectual na vida pública. Sua duradoura trajetória, no entanto, mais do que a de qualquer outro no seu campo, suscita tanto a animosidade das paixões quanto o sentimento de admiração.

A admiração está presente entre os que reconhecem a alta envergadura de sua obra de pensador e nos que exercem responsabilidades na condução da política externa e prezam a destreza do seu domínio do ofício diplomático.

A animosidade provém de facetas de seu exercício de poder, norteado pela perspectiva organizadora dos interesses mundiais de uma grande potência. Um país, como ele disse, que exige a perfeição moral na condução de sua política externa não obterá nem a perfeição moral nem a segurança.

Daí o seu realismo que não é autocentrado. Tem pontos de contato com o de Morgenthau, que o antecedeu como estudioso da política entre as nações e de participante da agenda pública de seu debate.

Soube apreciar nas suas elaborações a interlocução com Raymond Aron e valorizar a qualidade analítica de sua obra e do seu papel de observador participante da política internacional.

Seu realismo parte do reconhecimento das complexidades e da análise da efetiva relação existente de forças e de poder, e do que ensinam as lições da História pelo discernimento da validade das analogias. Caracteriza-se pela afirmação da diplomacia e sua função na acomodação de interesses num quadro comum de referências, no qual destaca que a busca da segurança absoluta de um Estado gera a instabilidade da insegurança relativa dos demais. Daí sua permanente preocupação em conter os riscos de uma guerra nuclear. Levou em conta de maneira generalizada no seu trato diplomático com atores internacionais a especificidade dos seus interesses e a variedade dos estilos de negociação.

Na condução da política externa, está sempre latente o uso da força. No caso de Kissinger, foram as suas decisões sobre o uso da força e as suas consequências que geraram hostilidades.

Antonio Candido, ao tratar do mando e transgressão no Ricardo II de Shakespeare, adverte: “Não se manda impunemente”. Daí as vigorosas críticas a Kissinger pelas violações dos direitos humanos que resultaram do apoio dado à derrubada de Allende, no Chile, e o respaldo a Pinochet, na lógica da guerra fria. Também foram contestadas as decisões do bombardeio ao Camboja e Vietnã e do prolongamento da guerra na região, situações nas quais os custos humanos foram deixados de lado para sustentar a credibilidade dos EUA.

As animosidades não obscurecem suas bem-sucedidas e inovadoras realizações de ator diplomático. Seu maior e inconteste sucesso foi a aproximação dos EUA com a China, que assinalou o fim da ordem bipolar criada em Yalta e cujos desdobramentos são um dado da atual cena internacional.

Kissinger discute sua gestão nos substanciosos, bem documentados e bem escritos volumes de suas Memórias. Estas inserem os fatos numa visão global dos acontecimentos. Combinam o impulso de se explicar e se defender, pontuando que a perspectiva do ator permite esclarecer, na vastidão dos documentos disponíveis, quais os temas que efetivamente influenciaram o processo decisório à luz dos eventos.

Aponta que o exercício de altas responsabilidades governamentais ensina a decidir, mas não o que decidir. A substância das decisões tem o lastro das intuições e conhecimentos das coisas de quem decide. No seu caso, foi o domínio do campo das relações internacionais e de uma visão estratégica que não circunscreveu sua ação apenas ao curto prazo da agenda dos acontecimentos e das rotinas burocráticas. Diferenciava a urgência e as imprecisões do tempo da decisão no calor da hora do tempo mais longo da reflexão acadêmica.

Concluo realçando a envergadura clássica de seu livro Diplomacia. Nele, retoma os fatores de estabilidade e instabilidade da ordem mundial na perspectiva da sempre precária segurança dos Estados no mundo. A estes temas dá renovada abrangência com o fundamento dos seus conhecimentos de grande universitário, vivificado pela sua experiência de homem de Estado.

Kissinger tem na sua vida o corajoso sentimento de suas próprias forças. Subjaz em surdina na sua leitura do mundo o trágico da história, fruto, na sua formação, da experiência do nazismo.

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PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Henry Kissinger, aos cem anos, é caso único no cenário diplomático internacional. Sabe sempre mesclar a capacidade de pensar com a de indicar rumos do agir. Reuniu com sucesso reflexão e ação no exercício do poder.

É também caso singular de quem, tendo deixado de exercer diretamente a gestão da diplomacia norte-americana, nunca deixou de ter nas décadas subsequentes às presidências Nixon e Ford relevante poder de influência. Em seus livros pós-governo, aprofundou seus temas recorrentes, como o papel das personalidades e da liderança na condução da política externa e do significado da China. Enfrentou o “novo” na dinâmica da ordem mundial, proveniente do advento da era digital e da inteligência artificial.

Kissinger é um exemplo do alcance estratégico do papel da palavra do intelectual na vida pública. Sua duradoura trajetória, no entanto, mais do que a de qualquer outro no seu campo, suscita tanto a animosidade das paixões quanto o sentimento de admiração.

A admiração está presente entre os que reconhecem a alta envergadura de sua obra de pensador e nos que exercem responsabilidades na condução da política externa e prezam a destreza do seu domínio do ofício diplomático.

A animosidade provém de facetas de seu exercício de poder, norteado pela perspectiva organizadora dos interesses mundiais de uma grande potência. Um país, como ele disse, que exige a perfeição moral na condução de sua política externa não obterá nem a perfeição moral nem a segurança.

Daí o seu realismo que não é autocentrado. Tem pontos de contato com o de Morgenthau, que o antecedeu como estudioso da política entre as nações e de participante da agenda pública de seu debate.

Soube apreciar nas suas elaborações a interlocução com Raymond Aron e valorizar a qualidade analítica de sua obra e do seu papel de observador participante da política internacional.

Seu realismo parte do reconhecimento das complexidades e da análise da efetiva relação existente de forças e de poder, e do que ensinam as lições da História pelo discernimento da validade das analogias. Caracteriza-se pela afirmação da diplomacia e sua função na acomodação de interesses num quadro comum de referências, no qual destaca que a busca da segurança absoluta de um Estado gera a instabilidade da insegurança relativa dos demais. Daí sua permanente preocupação em conter os riscos de uma guerra nuclear. Levou em conta de maneira generalizada no seu trato diplomático com atores internacionais a especificidade dos seus interesses e a variedade dos estilos de negociação.

Na condução da política externa, está sempre latente o uso da força. No caso de Kissinger, foram as suas decisões sobre o uso da força e as suas consequências que geraram hostilidades.

Antonio Candido, ao tratar do mando e transgressão no Ricardo II de Shakespeare, adverte: “Não se manda impunemente”. Daí as vigorosas críticas a Kissinger pelas violações dos direitos humanos que resultaram do apoio dado à derrubada de Allende, no Chile, e o respaldo a Pinochet, na lógica da guerra fria. Também foram contestadas as decisões do bombardeio ao Camboja e Vietnã e do prolongamento da guerra na região, situações nas quais os custos humanos foram deixados de lado para sustentar a credibilidade dos EUA.

As animosidades não obscurecem suas bem-sucedidas e inovadoras realizações de ator diplomático. Seu maior e inconteste sucesso foi a aproximação dos EUA com a China, que assinalou o fim da ordem bipolar criada em Yalta e cujos desdobramentos são um dado da atual cena internacional.

Kissinger discute sua gestão nos substanciosos, bem documentados e bem escritos volumes de suas Memórias. Estas inserem os fatos numa visão global dos acontecimentos. Combinam o impulso de se explicar e se defender, pontuando que a perspectiva do ator permite esclarecer, na vastidão dos documentos disponíveis, quais os temas que efetivamente influenciaram o processo decisório à luz dos eventos.

Aponta que o exercício de altas responsabilidades governamentais ensina a decidir, mas não o que decidir. A substância das decisões tem o lastro das intuições e conhecimentos das coisas de quem decide. No seu caso, foi o domínio do campo das relações internacionais e de uma visão estratégica que não circunscreveu sua ação apenas ao curto prazo da agenda dos acontecimentos e das rotinas burocráticas. Diferenciava a urgência e as imprecisões do tempo da decisão no calor da hora do tempo mais longo da reflexão acadêmica.

Concluo realçando a envergadura clássica de seu livro Diplomacia. Nele, retoma os fatores de estabilidade e instabilidade da ordem mundial na perspectiva da sempre precária segurança dos Estados no mundo. A estes temas dá renovada abrangência com o fundamento dos seus conhecimentos de grande universitário, vivificado pela sua experiência de homem de Estado.

Kissinger tem na sua vida o corajoso sentimento de suas próprias forças. Subjaz em surdina na sua leitura do mundo o trágico da história, fruto, na sua formação, da experiência do nazismo.

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PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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