Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Rui Barbosa – internacionalista


Resultaram de seu empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional

Por Celso Lafer

Rui é um paradigma de advogado que soube valer-se do Direito como instrumento estratégico da sua ação política. Foi o que o singularizou no cenário nacional, mas é também a relevante marca de sua atuação internacional. Dela advém o seu legado para a construção do capital diplomático do Brasil e a contribuição para pioneiramente afirmar o lugar do nosso país no mundo.

A Conferência de Paz de Haia de 1907 foi o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral do século 20, pela abrangência dos 44 Estados soberanos da época que dela participaram. Foi também a primeira expressão da “diplomacia aberta”, sensível às aspirações pacifistas da opinião pública internacional da época.

Rui foi o chefe da delegação brasileira e atuou em estreita coordenação com o chanceler Rio Branco. Tinha todas as qualidades para o novo da diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno domínio dos assuntos da pauta, a vocação de infatigável trabalhador, a capacidade de exprimir-se – inclusive de improviso e com perfeição – em francês, a língua oficial da conferência. A isso se conjugou a combatividade, que sempre o caracterizou, como advogado, político e parlamentar.

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Rui em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou a igualdade dos Estados lastreada no Direito. Essa contestação colocou em questão o exclusivismo até então preponderante das grandes potências na ordem mundial. Sua posição representou a primeira formulação do Brasil em prol da democratização do sistema internacional. Abriu espaço para respaldar inovadora perspectiva da nossa política externa: a pauta diplomática do País não se circunscreve a questões específicas; transita pelos seus “interesses gerais” na dinâmica do funcionamento da ordem mundial.

Em Haia, Rui valeu-se do Direito como instrumento de sua ação. Tinha muita consciência da interação política/Direito. “Não há nada mais eminentemente político do que a soberania.” A diplomacia, dizia, “outra coisa não é que a política (...) sob a mais elegante de suas formas (...)”.

Traçou neste contexto para o Brasil uma política do Direito Internacional. Esta retém plena atualidade na sintonia com os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Em Haia, encontrou o tom certo de um estilo diplomático para afirmar com firmeza e sobriedade a posição independente do País, cuja especificidade era distinta dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio de sua pequenez”.

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Rui fez uma observação que antecipou o tema da credibilidade internacional e do soft power: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.

Outra ação diplomática de Rui foi em Buenos Aires, onde representou o Brasil no centenário da independência da Argentina. Ali, destacou a relevância do potencial de cooperação entre Argentina e Brasil na “ideia a realizar” de uma vasta construção política, econômica e jurídica. É, assim, um patrono da parceria que antecipou a atualidade de um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.

Em conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires, analisou o impacto no Direito da escalada da violência que estava caracterizando a 1.ª Guerra. Observou que, dada a “interdependência em que as nações mais remotas vivem uma das outras, a guerra não pode isolar-se nos Estados entre os quais se abre o conflito”. Seus estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos povos mais distantes. Antecipou, assim, o tema da indivisibilidade da paz, cuja atualidade a guerra da Ucrânia realça.

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Rui extraiu de sua avaliação da guerra um novo papel para a neutralidade: “A imparcialidade na justiça, a solidariedade no Direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis a nova neutralidade”.

E mais: “Entre os que quebram a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade, e não há imparcialidade entre o Direito e a injustiça. Quando entre ele e ela existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la”. Foi nesta moldura jurídica que o Brasil se incorporou aos aliados em 1917. Da lição de Rui tenho me valido para indicar qual deve ser a posição do Brasil na guerra da Ucrânia.

Rui internacionalista voltou-se para a afirmação e a legitimação do lugar do Brasil no mundo. Resultaram de seu empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional e, ao mesmo tempo, a validade mais abrangente da domesticação pelo Direito da Força e do Poder, assim como o do benefício da juridicidade nas relações internacionais. Valeu-se neste empenho do Direito com ideias próprias, fruto da transformação reflexiva da abrangência dos seus conhecimentos jurídicos na condução diplomática.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

Rui é um paradigma de advogado que soube valer-se do Direito como instrumento estratégico da sua ação política. Foi o que o singularizou no cenário nacional, mas é também a relevante marca de sua atuação internacional. Dela advém o seu legado para a construção do capital diplomático do Brasil e a contribuição para pioneiramente afirmar o lugar do nosso país no mundo.

A Conferência de Paz de Haia de 1907 foi o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral do século 20, pela abrangência dos 44 Estados soberanos da época que dela participaram. Foi também a primeira expressão da “diplomacia aberta”, sensível às aspirações pacifistas da opinião pública internacional da época.

Rui foi o chefe da delegação brasileira e atuou em estreita coordenação com o chanceler Rio Branco. Tinha todas as qualidades para o novo da diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno domínio dos assuntos da pauta, a vocação de infatigável trabalhador, a capacidade de exprimir-se – inclusive de improviso e com perfeição – em francês, a língua oficial da conferência. A isso se conjugou a combatividade, que sempre o caracterizou, como advogado, político e parlamentar.

Rui em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou a igualdade dos Estados lastreada no Direito. Essa contestação colocou em questão o exclusivismo até então preponderante das grandes potências na ordem mundial. Sua posição representou a primeira formulação do Brasil em prol da democratização do sistema internacional. Abriu espaço para respaldar inovadora perspectiva da nossa política externa: a pauta diplomática do País não se circunscreve a questões específicas; transita pelos seus “interesses gerais” na dinâmica do funcionamento da ordem mundial.

Em Haia, Rui valeu-se do Direito como instrumento de sua ação. Tinha muita consciência da interação política/Direito. “Não há nada mais eminentemente político do que a soberania.” A diplomacia, dizia, “outra coisa não é que a política (...) sob a mais elegante de suas formas (...)”.

Traçou neste contexto para o Brasil uma política do Direito Internacional. Esta retém plena atualidade na sintonia com os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Em Haia, encontrou o tom certo de um estilo diplomático para afirmar com firmeza e sobriedade a posição independente do País, cuja especificidade era distinta dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio de sua pequenez”.

Rui fez uma observação que antecipou o tema da credibilidade internacional e do soft power: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.

Outra ação diplomática de Rui foi em Buenos Aires, onde representou o Brasil no centenário da independência da Argentina. Ali, destacou a relevância do potencial de cooperação entre Argentina e Brasil na “ideia a realizar” de uma vasta construção política, econômica e jurídica. É, assim, um patrono da parceria que antecipou a atualidade de um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.

Em conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires, analisou o impacto no Direito da escalada da violência que estava caracterizando a 1.ª Guerra. Observou que, dada a “interdependência em que as nações mais remotas vivem uma das outras, a guerra não pode isolar-se nos Estados entre os quais se abre o conflito”. Seus estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos povos mais distantes. Antecipou, assim, o tema da indivisibilidade da paz, cuja atualidade a guerra da Ucrânia realça.

Rui extraiu de sua avaliação da guerra um novo papel para a neutralidade: “A imparcialidade na justiça, a solidariedade no Direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis a nova neutralidade”.

E mais: “Entre os que quebram a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade, e não há imparcialidade entre o Direito e a injustiça. Quando entre ele e ela existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la”. Foi nesta moldura jurídica que o Brasil se incorporou aos aliados em 1917. Da lição de Rui tenho me valido para indicar qual deve ser a posição do Brasil na guerra da Ucrânia.

Rui internacionalista voltou-se para a afirmação e a legitimação do lugar do Brasil no mundo. Resultaram de seu empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional e, ao mesmo tempo, a validade mais abrangente da domesticação pelo Direito da Força e do Poder, assim como o do benefício da juridicidade nas relações internacionais. Valeu-se neste empenho do Direito com ideias próprias, fruto da transformação reflexiva da abrangência dos seus conhecimentos jurídicos na condução diplomática.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

Rui é um paradigma de advogado que soube valer-se do Direito como instrumento estratégico da sua ação política. Foi o que o singularizou no cenário nacional, mas é também a relevante marca de sua atuação internacional. Dela advém o seu legado para a construção do capital diplomático do Brasil e a contribuição para pioneiramente afirmar o lugar do nosso país no mundo.

A Conferência de Paz de Haia de 1907 foi o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral do século 20, pela abrangência dos 44 Estados soberanos da época que dela participaram. Foi também a primeira expressão da “diplomacia aberta”, sensível às aspirações pacifistas da opinião pública internacional da época.

Rui foi o chefe da delegação brasileira e atuou em estreita coordenação com o chanceler Rio Branco. Tinha todas as qualidades para o novo da diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno domínio dos assuntos da pauta, a vocação de infatigável trabalhador, a capacidade de exprimir-se – inclusive de improviso e com perfeição – em francês, a língua oficial da conferência. A isso se conjugou a combatividade, que sempre o caracterizou, como advogado, político e parlamentar.

Rui em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou a igualdade dos Estados lastreada no Direito. Essa contestação colocou em questão o exclusivismo até então preponderante das grandes potências na ordem mundial. Sua posição representou a primeira formulação do Brasil em prol da democratização do sistema internacional. Abriu espaço para respaldar inovadora perspectiva da nossa política externa: a pauta diplomática do País não se circunscreve a questões específicas; transita pelos seus “interesses gerais” na dinâmica do funcionamento da ordem mundial.

Em Haia, Rui valeu-se do Direito como instrumento de sua ação. Tinha muita consciência da interação política/Direito. “Não há nada mais eminentemente político do que a soberania.” A diplomacia, dizia, “outra coisa não é que a política (...) sob a mais elegante de suas formas (...)”.

Traçou neste contexto para o Brasil uma política do Direito Internacional. Esta retém plena atualidade na sintonia com os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Em Haia, encontrou o tom certo de um estilo diplomático para afirmar com firmeza e sobriedade a posição independente do País, cuja especificidade era distinta dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio de sua pequenez”.

Rui fez uma observação que antecipou o tema da credibilidade internacional e do soft power: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.

Outra ação diplomática de Rui foi em Buenos Aires, onde representou o Brasil no centenário da independência da Argentina. Ali, destacou a relevância do potencial de cooperação entre Argentina e Brasil na “ideia a realizar” de uma vasta construção política, econômica e jurídica. É, assim, um patrono da parceria que antecipou a atualidade de um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.

Em conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires, analisou o impacto no Direito da escalada da violência que estava caracterizando a 1.ª Guerra. Observou que, dada a “interdependência em que as nações mais remotas vivem uma das outras, a guerra não pode isolar-se nos Estados entre os quais se abre o conflito”. Seus estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos povos mais distantes. Antecipou, assim, o tema da indivisibilidade da paz, cuja atualidade a guerra da Ucrânia realça.

Rui extraiu de sua avaliação da guerra um novo papel para a neutralidade: “A imparcialidade na justiça, a solidariedade no Direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis a nova neutralidade”.

E mais: “Entre os que quebram a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade, e não há imparcialidade entre o Direito e a injustiça. Quando entre ele e ela existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la”. Foi nesta moldura jurídica que o Brasil se incorporou aos aliados em 1917. Da lição de Rui tenho me valido para indicar qual deve ser a posição do Brasil na guerra da Ucrânia.

Rui internacionalista voltou-se para a afirmação e a legitimação do lugar do Brasil no mundo. Resultaram de seu empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional e, ao mesmo tempo, a validade mais abrangente da domesticação pelo Direito da Força e do Poder, assim como o do benefício da juridicidade nas relações internacionais. Valeu-se neste empenho do Direito com ideias próprias, fruto da transformação reflexiva da abrangência dos seus conhecimentos jurídicos na condução diplomática.

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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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